Um continente perdido

Vida de Menina (2003) esconde, pelo menos, três Helenas: a Solberg, que o dirige; a Morley, que escreve o texto base; e a suicida, adaptada por Paulo Emílio Salles Gomes, no roteiro do Memória de Helena (1969), de David Neves. Todas flutuam em torno de Minha Vida de Menina, o livro que Alice Dayrell Caldeira Brant, sob o pseudônimo de Helena Morley, publicou aos 62 anos, em 1942. Era uma senhora idosa no Brasil getulista. Abriu as páginas do tempo, contou as peripécias dos seus… CONTINUA

Miragem na montanha

Como na abertura de Casa Grande (Fellipe Barbosa, 2014), o primeiro plano de Gabriel e a Montanha é de uma eloquência cristalina. Uma panorâmica segura, ritmada e imponente revela dois homens que recolhem capim no alto de uma montanha, até que um deles encontra algo na mata. Gradualmente, a câmera abandona os corpos dos trabalhadores e a paisagem inicial, aproximando-se lentamente do rosto de um rapaz branco, morto em um buraco na pedra. O que acompanharemos a seguir são os 70 dias de aventuras que… CONTINUA

A pornografia e a écriture do fora de campo: o fantasma do olho do cu

(Nota do Editor: Este texto é ilustrado por imagens de conteúdo sexual que podem ser inapropriadas ou ofensivas para menores de 18 anos.) A Theodor Adorno e Adolfo Arrieta O que Lilith sussurra ao ouvido: interdito e latência Em Lilith (1964), de Robert Rossen, há um torneio de cavaleiros no qual o demônio esquizo Lilith, que seduz o personagem de Warren Beatty, apronta outra das suas: ela se aproxima de um menino e lhe promete algo ao ouvido que o deixa de olhos sequiosos e… CONTINUA

Meditação para um novo tempo

De 2006 até aqui, muitas mudanças ocorreram na Cinética, dos diferentes layouts ao longo desses anos, marcando as intenções da editoria quanto ao modo de abordar os filmes e pensar o cinema naquele momento, às diversas configurações do grupo de redatores e colaboradores da revista. Como lembrado em editorial anterior, hoje nenhum membro fundador encontra-se ativo na Cinética – ainda que eventuais colaborações especiais de ex-redatores tenham acontecido nos últimos anos. Contudo, este ano guarda a mais significativa das mudanças da história da revista: a… CONTINUA

Tudo acontece

O livro escrito pela acadêmica e pesquisadora brasileira Ivone Margulies sobre a obra da cineasta belga Chantal Akerman, recentemente editado no Brasil pela EdUSP, traz em seu título uma síntese do estado de espírito requisitado ao espectador por um filme como Jeanne Dielman, 23 Quai du Commerce, 1080 Bruxelles: nada acontece. Há, no título do livro, um chiste com o tom jocoso facilmente aplicado aos filmes de Chantal Akerman que, na secura de seu minimalismo, podem gerar a impressão de serem narrativas – muitas vezes… CONTINUA

Uma noite de “facas longas”

Uma das maiores virtudes de O Animal Cordial, primeiro longa da Gabriela Amaral Almeida (que conta com vários curtas no currículo, entre eles Uma Primavera, A Mão que Afaga ou Estátua, de 2011, 2012 e 2014, respectivamente), é a de saber articular uma intenção de produzir um discurso sobre o Brasil – um Brasil atual, dos dias de hoje, mas no qual o patrimônio histórico, com todas as suas problemáticas e nuances (políticas, culturais, sociais, raciais), está permanentemente presente – com um olhar reflexivo, inteligente… CONTINUA

O ritmo dos contrastes

O grosso da literatura dedicada ao Cinema Novo brasileiro alinhavou os filmes, especialmente a fase inicial de 1959 a 1962, a partir de dois vetores: o debate político em torno da realidade brasileira como princípio da feitura dos filmes, e a representação do povo, seus problemas e cultura como temas centrais à narrativa. Partindo da conjunção desses dois princípios seria possível, pelo olhar autoral dos artistas, chegar a uma “linguagem brasileira”, nova e única, expressão legítima desse povo representado na tela. A busca da realidade… CONTINUA

Viver em desencaixe

Após um curto prólogo, As Duas Irenes convida a câmera à mesa, onde quatro mulheres de idades diferentes gravitam em torno de um patriarca que olha pela janela. A decupagem inaugura o nó dramático com um plano médio que coloca Tonico (Marco Ricca) na cabeceira da família, olhando para fora daquela casa (e, no cinema, todo olhar é uma forma de desejo). O filme não será sobre ele, assumindo seu ponto de vista, e o corte seguinte anuncia que suas ações deflagrarão (ou melhor, deflagraram)… CONTINUA

Gameplay no apocalipse

Nenhuma leitura que tente dar conta dos significados e alegorias de Mãe! é párea para o arsenal de ilustrações, simbologias e aproximações psicanalíticas que o longa de Darren Aronofsky propõe. O filme, que vem sendo acusado de ser óbvio demais em sua parábola, é, antes de tudo, um emaranhado de referências tão aleatórias que, inevitavelmente, nunca se fecha em um sentido universal. Mãe! não parece nada interessado em uma unidade referencial – pelo contrário, ao lançar mão de todo um encadeamento de menções em uma… CONTINUA

A revanche das sinhás

Festival de Cannes, 2006. Sofia Coppola, à altura ainda trajando os louros de nova auteur pelo sucesso estrondoso de Encontros e Desencontros (2003), aporta no tapete vermelho com uma bomba-relógio sob o vestido. Dali a duas horas, Maria Antonieta – seu extraordinário terceiro longa-metragem – conquistaria lugar para todo o sempre nos inventários de incompreensão acrítica da grande imprensa: “11 filmes que foram vaiados em Cannes”, listou o Telegraph dez anos depois; “A França diz ‘non’ a Marie-Antoinette”, escreveu, malandramente, o today.com; uma “proto-Euro Disney… CONTINUA