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Um continente perdido

Vida de Menina (2003) esconde, pelo menos, três Helenas: a Solberg, que o dirige; a Morley, que escreve o texto base; e a suicida, adaptada por Paulo Emílio Salles Gomes, no roteiro do Memória de Helena (1969), de David Neves.

Todas flutuam em torno de Minha Vida de Menina, o livro que Alice Dayrell Caldeira Brant, sob o pseudônimo de Helena Morley, publicou aos 62 anos, em 1942. Era uma senhora idosa no Brasil getulista. Abriu as páginas do tempo, contou as peripécias dos seus 13, 14, 15 anos. Se estivesse na década de 1960, seria adolescente. Como falava de 1893 a 1895, era menina. Em Minas Gerais, Diamantina, cheirando a mato, barro e liberdade.

A versão criada por David e Paulo Emílio transveste a pureza do diário de Helena/Alice. Memória de Helena usa elementos urbanos – Super-8, carros, ruas – para tocar na Diamantina que era terra da mãe do diretor. Também foram inseridos outros elementos que não havia antes: suicídio, adultos jovens, bem longe do clima púbere do livro. Por sinal, Alexandre Eulálio, primo de David, foi um dos grandes defensores do opúsculo de Morley. E assim, com o tempo, Minha Vida de Menina tornou-se relicário da alma feminina e infantil. Parece aqueles livros de receitas que passam de geração em geração, encadernados, mas com uma diferença: é um diário. Um dia após dia na vida de Alice.

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Quando chega às mãos de Helena Solberg e Elena Soárez – roteirista, uma Elena –, Minha Vida de Menina tem a aura consolidada. Já é a obra respeitável, cobrada no vestibular, marco na literatura brasileira, muito embora não tenha sido cogitada de sê-lo. Alice Dayrell fala para os netos. E abre-se, de lambuja, para o público.

Solberg e Soárez foram à fonte. À história como tal. Ao bucolismo profundo do livro. Foram aos riachos, às vielas de terra batida, aos casebres, às famílias de brancos convivendo com agregados, aos arranjos do país recém-republicano, sem água encanada, sem luz, sem fausto, sem glória. A Helena de Solberg não precisava mais ser recriada em uma aventura do século XX. Assistimos a ela para nos reconectar com o passado.

As imagens parecem saídas dos quadros de Almeida Júnior – vejam um capiau pitando fumo, sorrateiramente, enquanto Helena (Ludmila Dayer) volta da escola. Há também uma sucessão de loucos, semelhantes aos de Gilberto Freyre, mas habitantes de Minas: Antonio Doido, Chichi Bombom, Carlota Pistola, Pai Filipe. Tudo distante do Rio de Janeiro, o polo que se acostumou a contar o início do período republicano. Não é o universo de Joaquim Nabuco, diplomata, narcísico, desfilando os bigodes bem curtidos. É o de uma menina diferente. Filha de mãe brasileira, católica, e pai inglês, protestante. Loira, de olhos claros. Espoleta, irascível.

Existe algo de familiar em Vida de Menina. Sobretudo porque o formato confessional bate direto na carótida do leitor e do espectador. Qualquer que seja a raça, o tempo, o estilo. Anne Frank adotou uma amiga invisível, “Kitty”, para escrever em um esconderijo, durante a Segunda Guerra. A jovem negra, Carolina de Jesus, desconstruiu a idealização das favelas – tão ao gosto de Tom Jobim e Vinícius de Moraes –, soltando um olhar plúmbico em Quarto de Despejo. Perdida nos choques culturais, Ina Von Binzer – vulgo Ulla von Eck – migrou da Alemanha para a São Paulo cafeeira dos miloitocentos, pajeando os Meus Romanos: as crianças do clã Prado – que mais tarde batizaria ruas da cidade.

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O empoderamento feminino é hoje um tema recorrente. Em Vida de Menina, Solberg não vitimiza mulheres, não vilaniza homens. Optou por falar de uma garota que saiu do óbvio, como, aliás, ela própria. Solberg é filha de norueguês e brasileira – mistura europeia e latina, que também resultou no nascimento de Alice Dayrell. Estudante da PUC-RJ, teve que sobreviver no meio do grupo chauvinista do Cinema Novo – como o próprio David Neves. Na estreia, mostrou as garras no curta-metragem A Entrevista (1967), sobre mocinhas casadoiras, quando já rolavam os debates sobre a contracultura. “Isso de querer ser/ exatamente aquilo/ que a gente é/ ainda vai/ nos levar além”. Até estourar no sucesso de público nacional em Bananas is my Business (1995), refugiou-se nos Estados Unidos. Retomou a linha do documentário em Palavra (En)cantada (2009), A Alma da Gente (2013) e Meu Corpo, Minha Vida (2017). Neste último, é a morte que abre o debate sobre as mulheres. Vida de Menina vai por outro lado. Uma beleza direta, simples, recheada de vida.

Ludmila Dayer está absolutamente adorável. O bom e velho fenômeno do cinema, com uma atriz poderosa e o requinte na reconstituição de época. Pedro Farkas, na fotografia, e Beto Manieri, na direção de arte, operam milagres. A equipe de Vida de Menina deixa claro o que todos sabemos: não é preciso orçamento de blockbuster para se construir joias. E fosse Ludmila uma protagonista simplória, não conseguiria encarnar toda a atmosfera do livro. Mesmo novata, ela rouba o filme, abrindo um abismo sobre as outras atuações, que soam medianas.

Helena Morley questiona a avó carinhosa, desacredita de Deus, debocha – como boa britânica – das superstições dos brasileiros. A princípio, existe uma proximidade de Helena com os negros. Mas o fato é que Tia Madge (Lolô Souza Pinto) e o pai da garota, Alexandre (Dalton Vigh), são explícitos no desprezo racial. Convém lembrar que 1893-1895 era a fase de ouro de Cecil Rhodes, Joseph Chamberlain e toda a panaceia WASP. Alice Dayrell também demonstra os cacoetes de praxe no livro, ao falar em “negrinhos” e congêneres, usando o diminutivo, brasileiramente.

Soa pesado para o público atual e é preciso compreender os sinais dos tempos. Se não havia ódio por parte de Helena, também é certo que a presença de nomes como Carolina de Jesus ou Luís Gama a chocaria. Afinal, ninguém ainda acredita na nossa falsa cordialidade, muito menos Solberg, que no petardo Meu Corpo, Minha Vida bate nas portas da perversidade social e familiar. Aborda o assassinato de uma moça em uma clínica de aborto, esquartejada, carbonizada e com pedaços do corpo atirados na beira da estrada.

Meu Corpo, Minha Vida (2017), Helena Solberg
                                      Meu Corpo, Minha Vida (2017), Helena Solberg

No livro, a mãe tem riso solto. No filme, é sisuda. Carolina (Daniela Escobar) joga no contraponto do amor aberto que Helena sente pelo pai. Interessante perceber que a família de Helena é pobre. Gravita ao redor do tio paterno, abastado, que estabelece uma dinâmica doentia com Alexandre. O filme é hábil em aproveitar essa desconstrução do pai herói. A cena dos dois, próxima do fim, deixa uma profissão de fé entre Alexandre e Helena.

Com essas luzes no caminho, Vida de Menina parece um sonho delicado, aproveitando a força mística das locações em Diamantina, que impregnam o filme. Helena Solberg precisou viajar para o exterior, refazer a trajetória cinemanovista longe do Brasil e, no retorno, atualizar a abordagem do colega David, que também havia seguido os passos da pequena Alice. Encharcou o filme de um outro tipo de afeto, buscou a infância de uma menina querida. Imaginária ou não, é um continente perdido, e a ele quase sempre retornamos.


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