Afinar os sentidos

  Algumas questões, sejam coletivas ou individuais, se abrem e se fecham em diferentes medidas ao longo do tempo, num percurso que aspira à dissolução, mas não sem antes terem sido vistas e terem feito os movimentos necessários. Questão de Silêncio (1982), filme de estreia da holandesa Marleen Gorris, é trazido agora novamente ao público pela Another Screen, programação temática de filmes exibidos online pelo periódico feminista de cinema Another Gaze. Marleen Gorris consegue condensar – de maneira belíssima -, questões da posição da mulher… CONTINUA

O que não se vê é quem dirige (o olhar)

Uma conversa entre Comment Ça Va (Jean-Luc Godard e Anne-Marie Miéville, 1978) e Maso e Miso Vão de Barco (Coletivo Les Insoumuses, 1975) Ok, paramos por aqui. O que se vê? Isso é visto. Isso é visto. Isso é visto. E ouvido também. Podemos voltar a conversar sobre barulho. Mas o que não se vê é quem dirige. O quê? O olhar Releia seu texto. Nós vamos rever as minhas mãos agora. Minhas mãos vão um pouco a todas as direções Mas em um espaço… CONTINUA

O caixão e a geladeira

Estamos dentro de uma casa. No meio da sala há um caixão. Não só: há castiçais, velas e flores. A diretora adverte às pessoas que já começou a filmar. O homem que se revela através do quadro diz: “mas eu nem penteei meu cabelo!”. A câmera finge se aproximar do rosto de quem estava se preparando para ser enterrado, mas se recusa a revelar tais feições: opta por se atentar às coisas e pessoas que compõem e figuram aquele rito de passagem. O que chama… CONTINUA

Senhor… senhora!

São quase exatos três mil e quinhentos os quilômetros que inscrevem, desde as nascentes do fértil rio Missouri até os vales do estado do Oregon, um risco territorial e político apelidado “Trilha do Oregon”. Outrora utilizada como rota de peregrinação e comércio para imigrantes esperançosos por uma nova vida na costa oeste – o que, no território norteamericano suscita, evidentemente, a) a “implicitez” pornográfica dos jogos de (des)apropriação e aniquilação religiosa em relação aos ditos nativos, e b) a iniciativa sagrada do lucro como sócio… CONTINUA

Uma luxuosa percepção

“Every moment of dark and light is a miracle” Walt Whitman “Aquele que foi não pode de agora em diante não ter sido: este fato misterioso e profundamente obscuro de ter vivido é seu viatico para a eternidade” Vladmir Jankelevitch, O irreversível e a nostalgia Num mundo coagido pelas leis da estrita necessidade como foi o das pantanosas rotas e montanhosos trompe l’oeil da América pioneira, First Cow acha espaço (cava espaço) para os instantâneos preciosos, as experiências faustosas da pequena jouissance de cada dia.… CONTINUA

Para habitar esta paisagem

Conheci as fotografias de Henry Bosse ao ler A field guide to getting lost (2005), um dos livros de ensaios de Rebecca Solnit. Bosse foi contratado para fotografar o alto Rio Mississipi no final do século XIX. Suas fotos eram reproduzidas com cianotipia – ou seja, em um tom predominantemente azulado, resultado de um processo mais barato de reprodução da imagem. É a cor azul, e a sua utilização para um registro paisagístico, que interessa a Solnit em seu ensaio. De fato, o azul da… CONTINUA

Uma vela acesa à luz do dia: estados alterados da ficção no cinema de realizadores indígenas

Quando o protagonista indígena de Uirá, um Índio em Busca de Deus (Gustavo Dahl, 1973) decide deixar a família para trás e partir numa corrida desenfreada em busca da divindade que o fizera abandonar a aldeia, todo o filme muda subitamente de tom, abandona o compasso da ficção realista que acompanhava o percurso de Uirá e adquire por um momento as texturas visuais e sonoras de um conto mitológico. Em Pirinop – Meu Primeiro Contato (Mari Corrêa e Karané Ikpeng, 2007), a reencenação da expedição… CONTINUA

“As frívolas arrasam!” – Entrevista com o coletivo Surto & Deslumbramento

Em meados de 2012, André Antônio, Chico Lacerda, Fabio Ramalho e Rodrigo Almeida formaram o coletivo Surto & Deslumbramento. Em menos de dez anos, realizaram um longa-metragem, A Seita (André Antônio, 2015), e dirigiram sete curtas, além de assinarem outros sete trabalhos colaborativos. Um historiador do futuro talvez encontre nos filmes do coletivo, realizados fora do mercado de distribuição e com uma presença discreta nos grandes festivais do país, uma das formulações mais conscientes e vigorosas de uma sensibilidade maneirista e paródica que tornou-se com… CONTINUA

Seja belo e faça o mínimo

Talvez assistir a um filme que acompanha uma bicha de contornos apolíneos e sensibilidade gótica transitando entre ler Baudelaire no conforto de seu mausoléu e viver a noite carioca com outros jovens não seja o mais absurdo dos conceitos para o cinema brasileiro de 2021, mas em 2014 as pessoas e os cinemas eram outros, sobretudo aquele feito em Pernambuco. E talvez seja injusto, sobretudo se levarmos em consideração a produção experimental de Jomard Muniz de Brito e Geneton Moraes Neto nos anos 70 e… CONTINUA

Tesão, tragédia e ruína

1 Em 2015, a Revista Janela me convidou para fazer parte de uma listagem coletiva de melhores documentários brasileiros. Uma das minhas escolhas foi Casa Forte, curta de Rodrigo Almeida, que eu tinha visto havia bem pouco tempo. Escrevi um parágrafo sobre a escolha para constar junto à lista de filmes: “Filme fundamental pra pensar uma sofisticação da forma ensaio hoje. Acachapante exercício sobre as sobrevivências. Pega a fetichização da luta de classes e da especulação imobiliária e lhes dá uma chave de piroca. Cada… CONTINUA