banner fist cow cesar leve

Para habitar esta paisagem

Conheci as fotografias de Henry Bosse ao ler A field guide to getting lost (2005), um dos livros de ensaios de Rebecca Solnit. Bosse foi contratado para fotografar o alto Rio Mississipi no final do século XIX. Suas fotos eram reproduzidas com cianotipia – ou seja, em um tom predominantemente azulado, resultado de um processo mais barato de reprodução da imagem. É a cor azul, e a sua utilização para um registro paisagístico, que interessa a Solnit em seu ensaio. De fato, o azul da cianotipia é um aspecto predominante do paisagismo de Bosse. O seu Mississipi nos coloca diante de um reino azulado a cortar o país, “o rio do era uma vez”, como descreve Solnit. As imagens azuladas, no entanto, informam-nos sobre um processo paisagístico que é imaginativo também de outro modo, em que essas paisagens servirão como referência para um projeto de engenharia que visa a sua transformação e adaptação, fazendo do reino em ciano do Rio Mississipi um empreendimento mais eficiente no serviço à habitação estadunidense.

Henry Bosse | Cyanotype, Landscape photography, Photography

Fotografia reproduzida com cianotipia de Henry Bosse

Imagem do filme First Cow (2020)

Menciono as fotografias de Bosse por tê-las reencontrado no primeiro plano de First Cow (2020), filme dirigido por Kelly Reichardt. A imagem, que apresenta um rio atravessado por uma navegação de grande porte, é definida por tons de azul. Embora não se trate mais do azul que resulta da cianotipia, o Mississipi de Bosse reaparece nesse plano, sugerido, para além da cor, também pelo aspect ratio de 1.37:1, um formato que insinua o da película de 35mm. Enquanto uma imagem do rio é produzida pela materialidade de determinada técnica de produção, a outra é alusiva de uma materialidade analógica que não está de fato presente, mas que constitui a imagem pela instituição de um arquivo imagético que é ali rememorado. A paisagem é portanto, nos dois casos, um produto da técnica, um fenômeno específico da organização desses espaços estadunidenses como imagem.

É preciso que isso seja reconhecido porque o cinema de Kelly Reichardt é frequentemente descrito, pelo menos desde Antiga Alegria (2006), como expressão de uma linguagem realista, associada ao cinema mundial contemporâneo (o chamado world cinema, uma classificação da qual filmografias estadunidenses raramente fazem parte) e, de maneira mais reticente, ao cinema de lentidão (slow cinema). Isso é justificado por um conjunto de artifícios fílmicos que se tornaram muito presentes em sua obra a partir de 2006, como planos mais longos, poucos diálogos, sonoridade estritamente diegética, enredos mínimos e um interesse pelos processos de precariedade que se desenvolvem na experiência de seus personagens, processos estes que frequentemente se materializam na composição da imagem e do som.

O que é entendido como realismo no cinema de Reichardt, no entanto, não aparece por uma relação de fidelidade a um mundo existente fora da imagem, mas pela afirmação de uma perspectiva – e, geralmente, uma que é comum à de seus personagens. Isso é melhor evidenciado pelo modo como a diretora justifica o aspect ratio de 1.33:1 em O Atalho, ainda mais restrito que o de First Cow. Segundo Reichardt, a definição do quadro aproxima o filme de uma experiência das suas personagens mulheres, que atravessam o deserto estadunidense cumprindo procedimentos laboriosos enquanto vestem pesados gorros sobre a cabeça, limitando a sua visão a um espaço presente, um trecho de terra após o outro. Como diz Reichardt em uma entrevista sobre o filme para o The Guardian, “Não há amanhã ou ontem no plano”.

O espaço no cinema de Reichardt aparece, assim, sempre agenciado pela configuração formal de uma perspectiva. Esse movimento da “realidade” para a perspectiva é perigoso, porque essas duas noções não são necessariamente opostas. O que busco localizar nesse movimento é a forma visual da espacialidade estadunidense como composta nos filmes de Reichardt: predominantemente pictórica, subjetivada por uma posição periférica (o olhar das mulheres, das trabalhadoras e dos desabitados) e relacionada à sua descrição em específicas tradições literárias e políticas do país. E é pela compreensão de uma forma visual que essa espacialidade vai se afirmar, enfim, como paisagem.

No livro A invenção da paisagem (1989), a filósofa da arte Anne Cauquelin defende que a paisagem surge, como fenômeno, junto à perspectiva na pintura, no momento em que os espaços não aparecem mais como uma figuração que serve a uma identificação narrativa, mas como apresentação de uma maneira de olhar, uma configuração visual que está menos associada ao que vemos do que a como vemos. A paisagem surge, portanto, quando o espaço visual passa a ser descrito por esses parâmetros do olhar. Para Cauquelin, a própria pintura, como a paisagem, depende dessa relação com a perspectiva, com a formalização de uma maneira de olhar. “Vemos quadros”, diz a autora no livro, “não vemos nem podemos ver senão de acordo com as regras artificiais estabelecidas em um momento preciso, aquele no qual, com a perspectiva, nascem a questão da pintura e a da paisagem”.

A “questão da paisagem” é uma muito pertinente para a cultura visual estadunidense. Desde o período da colonização, diferentes tradições paisagísticas disputavam uma perspectiva sobre a natureza do novo país: ora farta e idílica, ora árdua e selvagem. Esses paisagismos diversos são extensivamente estudados por autores como Leo Marx e Barbara Novak. O que se destaca, no entanto, é como essa disputa pela paisagem, por uma configuração do espaço, é parte integrante de um conjunto de disputas políticas no país, sendo central, inclusive, para a filosofia econômica de ideólogos estadunidenses como Thomas Jefferson e Henri David Thoreau.

E as paisagens de Reichardt não são uma exceção. Os espaços de seus filmes aparecem sempre vinculados a dinâmicas de economia e trabalho que atravessam tanto a geografia do país, e a perspectiva de Reichardt sobre ela, quanto o corpo dos seus personagens: corpos exauridos pela ininterrupção do trabalho e da caminhada e pelo exercício topográfico que continuamente empreendem. Mesmo o gesto de se isolar na natureza, em Reichardt, revela-se, como em Thoreau, um ato de intervenção política, inerente a uma práxis econômica. O uso da natureza em seus filmes eventualmente articula também uma contradição entre a abundância e a precariedade das paisagens e modos de vida estadunidenses. Essa articulação tem maior ênfase nos filmes Antiga Alegria (2006), Movimentos Noturnos (2013), First Cow (2020) e em um menos visto média-metragem chamado apenas Ode (1999).

Imagem do filme Antiga Alegria (2006)

C:\Users\Cesar Castanha\Pictures\MovimentosNoturnos.png

Imagens do filme Movimentos Noturnos (2013)

Imagem do filme Ode (1999)

Resgatar Ode pode ser interessante para identificar um precedente estético para First Cow no cinema de Reichardt. Adaptado do filme A Ponte do Desejo (Max Baer Jr., 1976), por sua vez adaptado da música Ode to Billy Joe, de Bobbie Gentry, o média-metragem funciona como um melodrama experimental sobre dois adolescentes no Mississipi que compartilham uma história de amor delinquente. Filmado em Super 8, a estranheza da abordagem do filme é reconhecida pelas cores solares difusas e por uma narração e diálogos expositivos. Ode é um projeto que parece tratar com muita ironia as categorias temáticas que fazem parte dos textos originais, como amor, juventude e até o Mississipi, como lugar representativo de uma identidade estadunidense. Mas é o aspecto prevalecente de formalismo nessa concepção fílmica que é mais interessante para pensar o país pela construção de uma visualidade, como voltamos a nos deparar em First Cow.

É com esse processo de pensar a criação do país a partir de parâmetros de formação pictórica que First Cow se envolve. Cores, tecidos, padrões visuais e enquadramentos definem o modo como a natureza estadunidense e os meios de habitação aparecem no filme. E é neste ponto preciso que First Cow desdobra sua compreensão do envolvimento estético-político que descreve os métodos e movimentos da colonização. Habitar o país, para Reichardt, implica em habitar a sua paisagem, o que significa fazer da imagem, do quadro fílmico e das linhas artificiais da perspectiva o próprio espaço de vida e de transformação política do país. O filme fortalece essa noção ao ampliar esse conjunto sensorial que se torna espaço de vida comum para além da imagem ou dos afetos visuais.

Não há, afinal, um melhor indício para o modo como a natureza aparece como artifício, como paisagem, do que o empreendimento de Cookie (John Magaro). Cozinheiro de um grupo de colonos, o personagem ouve seus companheiros dizerem que aquela é uma terra de abundância, mas – embora as folhas mortas formem um conjunto interessante na tela, e o formato dos cogumelos seja aprazível ao olhar – não descobre tão facilmente a fartura prometida. Os colonos passam fome quando não são forçados a se nutrir de alimentos dessaborosos, feitos com ingredientes escassos. É ao dividir a morada com King-Lu (Orion Lee) que essa falta pesa sobre a esperança de uma nova e próspera habitação nos Estados Unidos. A impossibilidade econômica de dar prazer ao paladar é o que sinaliza a precariedade da empreitada colonial. A solução encontrada, para que os personagens recuperem uma perspectiva de habitação, é roubar o leite de uma vaca importada por um distinto cavalheiro inglês (Toby Jones).

Com o leite roubado, Cookie faz pequenos bolos e os tempera com canela. A possibilidade de vida no novo país não é dada pela organicidade de uma natureza abundante, mas por um conjunto de gestos de intervenção na terra que se procura habitar. Vaca importada, leite roubado, bolos temperados com canela, é por meio desses procedimentos de artifício e de trabalho que Cookie e King-Lu habitam a paisagem estadunidense. E a questão do olhar, determinante para uma sensibilidade paisagística no país, abre-se também para outros atravessamentos sensíveis, no que a perspectiva – que é fundadora dessa habitação – incorpora, para além da visualidade, o paladar e a aproximação amistosa.

O fato de que a habitação nessa pátria “nova” ocorra por meio dessas sensibilidades não impede, porém, que ela seja também definida por dinâmicas de desigualdade e violência. A própria distribuição de tais sensibilidades já expõe por si só essas dinâmicas. Depois de venderem seus bolos em um espaço público e cativarem o interesse do devido proprietário da vaca importada, que saboreia o bolo como se o levasse de volta à Inglaterra, uma encomenda é feita a Cookie e King-Lu para ser entregue na casa do inglês. Lá, eles se deparam com os moradores, entre eles alguns indígenas, com trajes sofisticados e acessórios de requinte em uma sala cuidadosamente decorada. Entre paredes pintadas de azul, os distintos senhores, e senhora, discutem hábitos culinários, as cores da estação e a moda francesa contemporânea. De volta a seu casebre precário e monocromático (à cor do material com que é construído), King-Lu desdenha do proprietário e de suas frivolidades. “Homens como nós, Cookie, temos que fazer as coisas da nossa própria maneira”, ele diz ao amigo, “não existem silhuetas do império ou couleurs du jour para a gente. Temos que pegar o que pudermos quando for possível”.

É interessante como, na medida em que First Cow é um filme sobre a colonização (pois o movimento de habitar, nesse dado contexto, implica invariavelmente um movimento de colonizar), há uma variedade de posições coloniais que são descritas por Reichardt e Jonathan Raymond (corroteirista de longa-data da diretora e autor do romance de onde a história é adaptada). As práticas coloniais, como já aparecia em outros filmes de Reichardt (pensem nos diferentes processos de colonização engendrados por um mesmo grupo de colonos em O Atalho), não são unívocas ou baseadas em uma mesma e simples relação de poder. Tomando o que podem quando possível, King-Lu e Cookie encenam um exercício de ocupação colonial a partir de uma conduta da ilegalidade, de uma renegociação não declarada dos termos de distribuição econômica e afetiva da empreitada colonialista.

Consequentemente, não cabe apenas à branquitude (incorporação racial do poder econômico colonial) descrever essa habitação. Afinal, como diz King-Lu ao se apresentar a Cookie, “todos estão aqui”. Esse aqui é o país-terra Estados Unidos, promessa de abundância e projeto de colonização, espaço de diferentes habitações e, portanto, espaço comum de partilha política. De outro modo, no entanto, esse aqui ao qual King-Lu se refere naquele momento também é o país-paisagem de Reichardt, o regime formal de aparecimento do lugar e de seus habitantes, os parâmetros de artifício que desenham a relação entre os diversos personagens e a habitação nova. Para habitar esta paisagem, os personagens de Reichardt devem ser ao mesmo tempo sujeitos geográficos e sujeitos estéticos – eles devem definir também os parâmetros sensíveis do lugar histórico que ocupam.

Nesse sentido, o gesto de encontrar nova habitação é compartilhado no desdobramento desse espaço-comum histórico-geográfico, de modo que tanto corpos imigrantes racializados quanto sujeitos indígenas se percebem em uma reconstrução performática da habitação (que é nova mesmo se apenas porque os parâmetros desse espaço geográfico como espaço comum são recriados pela colonização). Em First Cow, vemos alguns personagens indígenas se apropriando dos hábitos do proprietário inglês enquanto inscrevem seus próprios corpos nessa encenação de uma Nova Inglaterra, habitação que esse homem procura tão desesperadamente recuperar no espaço colonial. Não é a primeira vez que essa operação de apropriação-inscrição por sujeitos indígenas do investimento colonial aparece no cinema de Reichardt; podemos lembrar de como o personagem cayuse, em O Atalho, toma para si a orientação do percurso dos colonos, interferindo na própria cartografia da colonização.

Para habitar esta paisagem, os diferentes sujeitos devem vincular os parâmetros de artifício do espaço como superfície às formas sensíveis da sua existência como corpos políticos: seus movimentos, olhares, paladares e trocas afetivas. Pode ser dito que essa vinculação é a base tanto afetiva e formal quanto histórica e narrativa de First Cow, no que o filme parte da escavação acidental dos corpos de Cookie e King-Lu na terra estadunidense e no quadro fílmico. O último plano do filme deixa implícito, pela recordação de seu prólogo, a radical materialidade do desdobramento do corpo e do espaço (e do corpo que descansa no espaço) como superfície fílmica. Nem por isso, em seu aspecto de superfície, essa materialidade estaria protegida dos processos geográficos de precariedade. Pelo contrário, como nos revela um Rio Mississipi cianotipado, as estranhas cores do artifício, as mais técnicas e pictóricas, de perspectivas imaginativas, reservam seus próprios padrões econômicos, incorporando em sua forma visual as dinâmicas de desigualdade da História.

Imagem do filme First Cow (2020)


Leia também: