Night Moves, de Kelly Reichardt (EUA, 2013)

outubro 1, 2013 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Fábio Andrade

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A cultura da natureza
por Fábio Andrade

Primeiro, a comporta de uma represa – rude, esculpida em metal de dureza tão intransponível que sequer é possível saber se tratar de uma comporta. Pouco depois, a comporta se abre e começa a jorrar água. Night Moves começa com esse plano impressionante, e, do alto da ponte, Josh (Jesse Eisenberg), impressionado, observa.

A câmera de Kelly Reichardt retoma o ambiente campestre bem podado de Old Joy (2006) com a mesma paciência e rigor. Foi-se a exploração mais agressiva e inventiva da aridez da paisagem do excelente Meek’s Cutoff (2010); foi-se também a investida mais pronunciada na dramaturgia do belo Wendy and Lucy (2008). Josh retoma a contemplação desinteressada de Mark e Kurt, personagens de Old Joy, aquele filme estranho que parecia ser sobre tantas outras coisas, mas no fundo não era sobre nada a não ser o que ele mostrava ser. E se Kelly Reichardt mostra, nós, como Josh, contemplamos, observamos, somos dados a ver.

Falta a Josh, porém, fazer a operação que a descrição impõe: comporta + água. Josh vê apenas a comporta, ou vê apenas a água. Se, naquele primeiro momento, vemos apenas Josh, que olha, ao final teremos plena compreensão de seu pecado, da falha imperdoável de ter separado o que não é separável. O spray de água a jorrar no primeiro plano se dá como um vazamento, uma infiltração – mesmo que controlada, severamente controlada – da matéria contemplada que é capaz de transformá-la por dentro. Aos poucos, acompanharemos Josh e Dena (Dakota Fanning) no que poderia ser um retiro voluntário aos lagos e às florestas coníferas do imaginário típico do retiro americano; “Walden”, Na Natureza Selvagem (2007) e algumas centenas de filmes de terror se espreitam pela névoa que se adensa entre aquelas árvores. Junto a eles, observamos Josh e Dena; contemplamos, de fato… mas cinema é feito de faro, e o nariz diz que há algo errado. Eles passam por um festival mambembe de filmes ativistas, compram um barco, se encontram com um homem mais velho (Peter Sarsgaard) e não saímos do primeiro ato sem a transparência de suas intenções: explodir a maldita represa. Liberar o fluxo de um rio que nunca deveria ter sido interrompido e salvar uma população de salmões, sacrificada pela obsessão de uma sociedade em manter seus iPods permanentemente ligados.

O campo, portanto, não aparece em Night Moves – muito expressivamente, o nome do barco – como lugar de origem, mas sim como vontade de retorno. Night Moves é um filme pós-apocalíptico em um mundo que fracassou em acabar, e seguiu existindo contra todos os prognósticos. As personagens do filme carregam esse desejo de retorno a um paraíso perdido que nunca foi conhecido, uma Rosebud sem dono, uma necessidade de se reintegrar a uma natureza à qual nunca se esteve realmente integrado. É aí que começa o gesto crítico do filme, e nesse sentido Night Moves é um caso raro no cinema recente de um filme que coloca seus personagens permanentemente em dúvida: não basta ver a água ou a comporta; é preciso percebê-los em relação, como partes de um mesmo e único processo. Os personagens de Night Moves podem ter as mais nobres intenções, mas elas partem de uma relação míope com o mundo. E essa relação míope cobrará um preço.

É nesta encruzilhada entre natureza e cultura que Kelly Reichardt coloca sua câmera, mas é clara a maior facilidade em olhar para uma das partes. De certa maneira, a câmera de Kelly Reichardt é como o olhar de Josh: vê a água com mais gosto do que a comporta. Se há, para o filme, uma necessidade de colocar esse olhar parcial em crise, à crítica cabe perceber a parcialidade desse olhar da câmera, que também larga mão de uma série de estratégias em que o lado denotativo (as panorâmicas descritivas; a generosidade com o transcorrer do tempo; a naturalidade perversa dos planos tableux) se impõe às tentativas de conotação. Conotação é explodir uma represa para libertar uma população de peixes e, como efeito colateral, afogar o sujeito que acampava ao lado do lago, no conforto rude de consciência de um saco de dormir. A diferença entre o olhar de Kelly Reichardt e o de Josh, seu protagonista, é que ela sabe de sua própria miopia.

Mas até que ponto o reconhecimento de uma deficiência não é também um gesto de conforto, na medida em que ele não se mostra capaz de transcender o buraco em que reconhece estar? Night Moves busca construir momentos muito específicos de conotação nesse olhar até certo ponto oprimido pela exuberância da natureza (ou melhor: pela exuberância na cultura de apreensão da natureza). Há momentos certeiros nesse corte, em especial com os movimentos de câmera que inventariam – ao modo godardiano – a cultura naturista que leva à bárbarie, com toda uma gama de canivetes e barracas de camping que ocupam o interior de uma megastore. Há também o final, suspenso no reflexo de si mesmo que se afirma como virtual (para quem liga o garoto que aparece no celular? Somos pendurados à mesma dúvida com a qual Josh precisará conviver pelo resto da vida, e que o lembrará do peso das escolhas que ele precisou fazer, na tentativa desesperada de apagar essa dúvida) e a panorâmica circular que descreve apenas os limites de um quarto. Mas, com exceção de momentos pontuais, nota-se uma dificuldade enorme de Reichardt em apagar a escritura dessa conotação, de investi-la com a mesma naturalidade com que as frutas repousam em um caixote de madeira.

Se estamos diante de um filme que quer colocar em crise a diferença entre dois regimes de percepção (natureza e cultura), Night Moves fracassa no que lhe é essencial: indiferenciar esses regimes. Essa indiferenciação surge aqui como um esforço de correção, de justeza até, mas que é exatamente isso: um esforço. Ouvimos a represa explodir em off como ouvimos um comentário fora-de-quadro que afirma que nada adianta explodir uma represa, pois há outras cinquenta represas só naquele rio… e a dificuldade de colocar isso em cena, de fazer com que esses arroubos de cultura se integrem à paisagem, é sintomática de que, apesar de tudo, o olhar de Kelly Reichardt é também parcial. Morre-se consciente da culpa, mas morre-se, mesmo assim. Enquanto isso, os salmões seguem nadando rio acima, retornando ao lugar de nascimento para procriar, movidos apenas pela certeza de que não sobreviverão ao processo; é tudo parte de sua natureza. 

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