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Uma luxuosa percepção

“Every moment of dark and light is a miracle”

Walt Whitman

“Aquele que foi não pode de agora em diante não ter sido: este fato misterioso e profundamente obscuro de ter vivido é seu viatico para a eternidade”

Vladmir Jankelevitch, O irreversível e a nostalgia

Num mundo coagido pelas leis da estrita necessidade como foi o das pantanosas rotas e montanhosos trompe l’oeil da América pioneira, First Cow acha espaço (cava espaço) para os instantâneos preciosos, as experiências faustosas da pequena jouissance de cada dia. O Eclesiastes, o livro mais pessimista do Antigo testamento, tinha razão, pois não há nada de novo sob o sol, mas mesmo trabalhando sob a estreiteza e aspereza dessa economia restrita de pioneiros em rota, em fuga, Kelly Reichardt nos entrega um filme feito pela labuta da luxuosa percepção, uma miríade de epifanias cerzidas pelo hebdomadário gesto, pelo cotidiano de impalpáveis ofertas.

Um velho homem avança titubeante para nós, e isto apesar dos obstáculos fenomenológicos da espessura do fumo ambiente e do tenebrismo da foto. Uma jovem índia ferve a roupa que irá adornar o seu primeiro baile, e o plano médio e quietista de Kelly Reichardt se atarda em nos ofertar as comissuras tensas de seus lábios e as franjas densamente demarcadas de seu vestuário característico. Um bebê contempla-nos ser contemplado, do fundo de sua cesta assentada sobre a mesa endomingada de um bar fumegante de uísque e socos a esmo. A rentrée serena sobre a Cena, como em um ritual panteísta hindu, da vaca, MacGuffin impassível de um neo-western cuja grande aventura reside na contemplação da derme do mundo, suas circunvoluções e exílios, contando-se o homem como a testemunha subdisiária de atalhos cujo destino ele jamais conseguirá cativar. Os movimentos, rentes ao solo e coextensivos ao ar, de um velho autóctone indígena vistos pela janela de um convalescente Cookie. E tantas vezes o gosto das folhas repisadas de manchas outonais e azáfama bandeirante, o gosto do biscoito feito de nata fresca e cingido de mel, o gosto do soco de chofre após uma provocação impertinente, o gosto do gosto…

Desde Antiga Alegria (Kelly Reichardt, 2006), o desafio estava lançado aos espectadores atentos, atenciosos, dignos desta atenção infinita do cinema de Reichardt às tramas intermitentes da duração do homem e da Natureza, origem singela no mundo-aí mas também co-partícipe à flor da epiderme da marcha incontinente sobre os elementos ônticos, de que First Cow, com O Atalho (Kelly Reichardt, 2010) – gestas silentes e ambulantes sobre o pioneirismo perceptivo e histórico – será o espécime melhor urdido ficcionalmente.

Dessa origem no espaço saturado de luz e plano da natureza a desbravar First Cow nada fará senão nos dar a posteriori a narrativa edênica de busca destes primórdios, de arqueologia e genealogia dos esqueletos lançados sobre a mesma terra, plantados como raízes e ligados como filamentos de um mesmo corpo, humano e natural, prenhe de revelações fenomenológicas. Em First Cow a Cultura nos chega, mas pelo olhar pedante e enviesado de três quartos de perfil com sotaque e valores decadentes antes do apogeu da Nova Inglaterra dos donos da vaca e seu senhorial visitante, falando de chapéus de castor e framboesas para o chá. A verdadeira origem desta América que, entre o romantismo filosófico de Emerson e o telúrico de Whitman, nos solicita para desvendá-la desde os traços calcificados de suas ossadas primevas. Pensemos nas igrejas católicas primitivas feitas de ossos humanos, e estaremos adivinhando no enigma dos corpos descobertos pelo cachorro num veio fluvial da América a mesma ideia de que o grande corpo ressoante de fé e capitalismo, ontem da eklesia, hoje da cidade próspera à beira do rio, é composto dos detritos de uma humanidade sepulta, e, portanto, guarda literalmente os resquícios dos primeiros empreendedores da terra nova e cálida que ali se soerguia.

Essa origem nos chega através das duas figuras proletárias e imigrantes, alteridade candente sempre destinada a fecundar o Mesmo, de designar-lhe uma trajetória épica e patética que o filme espreita sem aprofundar, pois, afinal, não tem como agenda inspiradora a Histoire des annales. Do cozinheiro Cookie e do chinês King-Lu, como em Antiga Alegria, mas também Wendy e Lucy (Kelly Reichardt, 2008), a amizade é a experiência de reconciliação sem as arestas tormentosas do amor romântico: é o selo autêntico do melting pot.

Mesmo quando degenera num thriller paranoico em surdina com subtexto ecológico como Movimentos Noturnos (Kelly Reichardt, 2013), na obra de Kelly Reichardt a amizade é, mais que o amor romântico, um experimento/experiência de alterização do Mesmo pelas graças fecundantes destes momentos de suspensão extática (em First Cow, Antiga Alegria, Movimentos Noturnos), de quietude apaziguada de poder habitar um mesmo mundo sem precisar falar, sem justificar ou legitimar a presença a dois com a logorréia perversa do Logos, aquele que espreita pelo buraco da fechadura para, inquisitivo, perturbar a harmonia do casal (de amigos) com questionamentos de fundamento que aliciam a presença para as garras do princípio de razão, e portanto lhe carcomem a epifania: onde, quem, quando?

Quando amigos, estamos solidariamente solicitados pela bonomia malsã de vivermos e morrermos sob o mesmo sol, sem prestar contas à Razão calculista ou à diligência do prático-inerte: mesmo que sob as duríssimas condições de vida e trabalho com que se inaugura o Novo Mundo que Colombo um dia sonhou, First Cow nos leva a experimentar a amizade como o refúgio mais nobremente arquitetado para o encontro e compreensão recíprocas de duas almas exiladas em corpos e histórias desvalidas, desoladas, no limiar da des-figuração ontológica, como esta foto tenebrosa, atenta aos vultos da noite infinita, nos revela com dificuldade.

Nas conversas e nos silêncios de simpática bonomia entre ambos os protagonistas de First Cow espreita a digressão que dá ao neo-classicismo temperado de Kelly Reichardt um verniz de modernismo crepuscular, que vive de calmarias e passos ausentes, que ausculta a paisagem e ressoa o silêncio, que modula o gesto em sua desmedida mesura, que não necessita dos acessos histéricos de uma retórica tardia para, com gravidade e tintas de uma longínqua mas presente elegia, nos descrever um cosmo nascituro. First Cow antes é um catálogo de impressões primevas sobre um mundo que nasce e dois homens que vão morrer, antes que uma trama narrativa consequente e radicular sobre a América pioneira, entrincheirada pelos mananciais da Natura, mais-valia exuberante que, no entanto, de nada serve a estes originários homens e animais, que só podem usufruir do seu quinhão de miséria sobre a terra e da bona fides de um futuro no céu para os entes, ainda demasiado amealhados pelas artimanhas da necessidade para, como nos ensina esta parábola simples como uma fímbria de pele dourada pelo sol, poder dar-se ao luxo de um biscoito quaker.

Neste mundo escuro e sussurrante que se inicia suntuosamente captado pela câmera mediúnica de Reichardt, o único luxo, como dito no começo do texto, é o sensório-motor dos tráficos e trajetos sob o sol e a chuva, na iminência do nascer, do negociar e do morrer. Se a démarche primordial do filme consiste em descrever um modus vivendi regido pela necessidade, mas por isto mesmo aberto sem trégua à intempestiva revelação da natureza, é relevante notar que First Cow só se torna mais densamente narrativo nos seus estertores, quando este e os amigos estiverem na iminência da morte – e, portanto, do seu Princípio, arredondando o círculo das esparsas observações citadinas, dos gestos evasivos e das palavras em suspenso. É aí, quando com Cookie e King-Lu habitamos a sombra mais espessa da espreita espavorida pelo próximo tiro, e com eles adormecemos apesar da noite avariada, pela fortuidade da morte violenta, que a narrativa se configura de forma mais veemente, e surge finalmente o suspense, no terço final desta aventura anti-climática. Morrer, como já nos dizia o Daney em seu texto sobre A Cidade dos Piratas (Raúl Ruiz, 1983), não é sempre narrar uma história, e com a eternidade à espreita para apodrecer? Até lá, First Cow alinhava os instantes extraviados, os gestos por acabar, os silêncios prenhes de futuro, talvez com a esperança de que este inventário taciturno e minimalista de impressões sobre os desaparecidos que aqui jazem possa servir de emblema mnemônico aos pósteros dos pósteros – nós, os espectadores de cinema, arte funerária do fantasma presentificado, mas cuja infinita dívida para com a figura humana, de que é o receptáculo in vitro, animado pelo tempo, seja suficiente para justificar a nossa vida, como a própria vida.


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