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Senhor… senhora!

São quase exatos três mil e quinhentos os quilômetros que inscrevem, desde as nascentes do fértil rio Missouri até os vales do estado do Oregon, um risco territorial e político apelidado “Trilha do Oregon”. Outrora utilizada como rota de peregrinação e comércio para imigrantes esperançosos por uma nova vida na costa oeste – o que, no território norteamericano suscita, evidentemente, a) a “implicitez” pornográfica dos jogos de (des)apropriação e aniquilação religiosa em relação aos ditos nativos, e b) a iniciativa sagrada do lucro como sócio das esperanças praticadas –, o que esta trilha significa para a simbologia estadunidense é sem dúvidas um plano, um tabuleiro para os mitos fundacionais onde estão sob risco de sobrevivência aqueles melhores negociantes, aqueles melhores empreiteiros das rotas corretas. A fundação do futuro tem preço, mas, especificamente, se tomamos o emigrado como aquele que, desconhecendo os mapas do lugar por vir, tampouco está munido dos códigos através dos quais se sabe em quem confiar para cortar caminho ao lugar zero, estando duas vezes atrasado em relação à fé, fica a nós cada vez mais perceptível por que no cinema de Kelly Reichardt o amical é o mais sofisticado favorecimento e preparação para todo ato migratório.

Momentânea troca de destinos cuja resultante é mais uma possibilidade astral aberta no tempo do que uma identidade duplicada ou semelhante capaz de produz repetições, a colocação do estatuto da fraternidade amical à altura da fundação de uma comunidade de contra-respostas ao real inunda de desafios a imposição social dos gêneros neste O Atalho (Meek’s Cutoff, 2010). Suas peculiaridades seguramente aumentam ao sabermos se tratar de um faroeste, gênero (cinematográfico, agora) minado de signos que não só sedimentavam o que devia caber às mulheres e aos homens, como delineavam, por consequência e com muita clareza, a transferência de outros signos, estes decisórios de um social “ativo” e “manejável”, àqueles primeiros. De forma que, a nós que temos Reichardt, não nos pode mais parecer assim tão chocante, camp ou excessivamente luxuoso que Joan Crawford detenha uma pistola em Johnny Guitar (idem, Nicholas Ray, 1954), mas que lhe retirem o salão de que era proprietária, sendo mulher, às chamas. Que ela domine a arma significaria, no máximo, a apropriação de um termo lançado ao homem, e a equação se encerraria onde é agora ela quem detém o poder.

Mas o que aconteceria, “no tempo das diligências”, se à mulher fosse dada a possibilidade de soerguer uma propriedade, não só de seus recursos, mas interesseira de expansões financeiras, de responsabilidades férreas e populacionais, e de receptividade a estrangeiros? Ora, a pergunta de Ray é transportada à peregrinação de três famílias far-west, oeste e fundo adentro do desconhecido novo, com duas vezes mais força: e se a estratégia desta mulher consistir em encontrar propriedades do amical neste estrangeiro que é também paradoxalmente “nativo”? Evitamos a palavra “amizade” até aqui pelo que a língua inglesa preserva de encantatória em seus contratos, onde os interesses circulam como rêmoras atadas às ligações. Diz-se, nela, befriend: ato de fazer a amizade ser um SER; deixar que a lógica dos ligantes veja extrapolado o racionamento originário do rolamento que é relação. Numa das cenas mais desconcertantes e dissidentes do filme, Emily Tetherow (Michelle Williams) simula o primeiríssimo acontecimento de generosidade e sacrifício “aos céus” que pode garantir àquele punhado de famílias perdidas num deserto o favorecimento do único estrangeiro que pode lhes guiar fora da via-crúcis.

Ela se lança ao chão, retira-lhe o sapato rasgado à força, uma vez que não se entendem de todo, e o costura à sua cara, chegando ainda a lhe pedir, no idioma indecifrável, paciência. Uma espectadora os acompanha boquiaberta atrás de uma rocha, e, consciente de que a frágil Millie (Zoe Kazan) a assiste supondo ter arriscado o plano de todos com uma exigência inconcebível diante de um “selvagem”, a sra. Tetherow não se importunará em responder àquela que está às suas costas: “estou criando uma amizade com ele; preciso que ele me (nos) veja como alguém que o quer bem”.

Por mais estapafúrdia que pareça sua hipótese, por mais que sequer precisemos supor que um indivíduo amarrado e sob a mira de espingardas não pense por um minuto que sairá vivo dali – é no entanto diante do caos que todos eles se encontram, não podendo senão manter como opção do grupo a esperança de que um “nativo”, também conhecendo, como eles, a “raiz”, o “nuclear”, o “pertencimento”, possa suspender seu estatuto de incivilizado e ausente de alma para se tornar, momentaneamente, um cão-guia. Optativa, aliás, contrária à de Stephen Meek (Bruce Greenwood), o célebre guia que já arrombara a previsão limite da travessia em três semanas, totalizando mais de um mês de divagação e inaptidão às cegas, como se nos meados do século XIX pudessem sobreviver os antigos ecos das tribos espalhadas em nossas mais resistentes mitologias, guiando a si mesmas por territórios do mais distante longínquo e por vias de uma profecia ouvida, e tendo como norte a expectativa dos mandamentos e riquezas que esta mesma voz prometeu.

Mais próxima quem sabe de uma espiritualista ou de uma etnóloga do que de uma historiadora do “continente americano”, ainda que parte de seus longas seja dedicada a esses acontecimentos e acidentes míticos de povoamento do que viria a ser o país em questão, o que acontece aqui é radicalmente diferente do que se passa em seu mais recente First Cow: A Primeira Vaca da América (First Cow, 2019), mas também dos eventos de uma obra anterior como Antiga Alegria (Old Joy, 2006). Se, no caso do primeiro, a amizade deseja progredir numa forma excepcional de tempo, num “quando” em que o empreendimento da homoafetividade dinâmica e empregatícia durará como sucesso empresarial para ambos, e, no segundo, a forte afeição amical parece se inclinar à religiosidade de uma boa vida, exclusiva e comum, mas que ficou para trás, afastada do casamento com aquela mulher, neste insólito faroeste o fraternal é uma subespécie de crença que estipula dimensões muito além do real, dimensões como que pré-linguísticas que nos impõem a artificialidade de um de nossos próprios mitos originários: o que de que protegerei os naturalmente meus, mas também aqueles que, em provação, por mim prezarem. Isto – ela acredita que ele entende.

Curioso, um filme em que a protagonista, agora quase literalmente, roubará para si a cena: ao erguer uma espingarda para Meek, que por sua vez estava prestes a matar aquele da tribo Cayuse, ela ergue também um triângulo instável de messianismo, e não tão-somente uma liderança. Ali, mais do que qualquer ato de inteligência complexificado como xeque-mate ou dispositivo das obras de mistério para as quais o final tudo-revela, ela nos está inserindo num pacto de entendimento extraordinário, apropriando-se, o que é ainda melhor, das palavras (do direito de decidir e de saber ao mesmo tempo) do próprio guia de travessias. Naquele impedimento de assassinato ela afirma que, “encontrem eles a água ou o sangue”, como havia tentado profetizar a dúvida cujo peso penderia para o extermínio, é a formação de oração dele que se encontrava errada, e não a dúvida em si. Água E sangue, sem dúvidas, é o que eles iriam encontrar e sempre estiveram “destinados” a encontrar. Todos sabemos, afinal, quem acabaria morto. Mas todos sabemos, também, quem, num contra-golpe do destino, poderia vir a ser poupado, caso os agouros intercedessem noutro lance final.

É por esse mesmo ato que ela será convidada a entender, pelo rumo daquele máximo estrangeiro, uma condição que pode muito lhe ser, e a todos eles, a face desnuda do mais supremo horror. Como se o religioso e o verbal fossem dimensões por via do fato esburacadas e desposadas entre si, na ausência da palavra e na presença do Mistério o tal pele-vermelha a “evangeliza” pela culatra: ele des-substancializa a gramática nativa e fá-la ver uma natividade menos como apropriação ou extorquir, e mais como permuta e transitoriedade. Como nos adventos do movimento de conversão, “a coisa” não pode ser ensinada – ou se a viu onde não se dava a ninguém para vê-la, ou não há partilha. É já por um terceiro termo, então, que eles falam idiomas absolutamente diferentes – mas se compreendem. Reichardt coloca em cena a ousadia da mais fina proximidade entre extremos a quem não foram localizadas ou concedidas potências de entendimento ou de decisão, em particular daquilo que deve dirigir o futuro comum. A transitoriedade da função pela qual eles são considerados é o que os une e os coloca, quando fraternos, no outro polo do poder: na presença interminável, na emergência do ser-sendo, na atribuição contribuinte com os dados do agora.

Contrato inegociável e impronunciável com o que foi visto em comum e brevemente, então, esse subliminar calor de hipóteses e respostas sempre atualizadas e partilhadas será passado ao espectador por outro estratagema da visão, este particular ao cinema. Trata-se, para parafrasear Raúl Ruiz, da “hipótese do quadro em movimento”. Não dizemos a “imagem”, mas o quadro, por simples razão: a imagem já é, em parte, o móvel do visual. O quadro, não; e quando é ele que se move, quando se inscreve no quadro um outro quadro, ou quando algo da natureza deste irrompe em cena para nos acercar de um a-governamento, a política do simbólico não está tanto duplicada quanto está presente na própria formação do visível. Assoberbado com as crescentes agruras da travessia, Solomon Theterow (Will Patton) pede à mulher que ela jogue fora da diligência antigas cadeiras que eram herança da família da mãe. A câmera, que recortava a operação como se estivesse vendo o arco posterior da carruagem de dentro, vê a mulher despejar um arranjo de madeira que só momentos depois aparecerá no quadro.

Tentado a saborear a cena conceitualmente, na medida em que o objeto é prolongamento ou tradução da vida puritana e das raízes que eles deixavam ao passado num gesto sacrificial diante da nova vida (“a dor necessária”), esse mesmo olho adestrado pelo conceitual pode não se aperceber do exercício arriscado que é palpitar sob a brevidade de certas cristalizações do social em gestos demasiado legíveis. É que não são eles, somos nós o “quem” restante para testemunhar sobre aquela história de despedidas. O que aqueles indivíduos viam, e isto está em quadro mais do que qualquer outra coisa, era à frente, ao lado, um pouco acima, um pouco mais abaixo, às costas, tudo como uma mesma e integral massa de possíveis “indo sem chegar”. Lembremo-nos bem: há realizadores de visão particular e há diretores de visão pessoal; mas há também regentes de dispositivos de visões que não sequer precisam lhe pertencer por pessoalidade. O que O Atalho parece colocar em questão, ainda que esta não seja, por vias diretas e internas, a questão religiosa que consome o filme, é semelhante ao que “o” cinema tem sofrido desde que algumas ciências do eixo palavra/pensamento, em particular a filosofia, passaram a lhe povoar. Dizemos povoar o olho que “vai ao filme” já sobrelotado de sintagmas, abordagens, temas-por-temas.

Filme de travessias, de meios sem fim, de “duração”. Filme de suspensão das leis e de suspensão das culminâncias dos esforços futuros. É possível rastrear, mesmo sem a ordem dos gêneros, nele, toda uma apoteose de imagens instituídas, confortáveis, e de imagens infiltradas, insubmissas, ambas coexistindo para disputar. E não são assim tantos outros? Obras que podemos apelidar facilmente pela fronteira, pela subversão, quanto mais elas nos sopram o arco abstrato, imaterial, de suas chaves conceituais e compreensões engajadas?

Apontamos para o tipo de abordagem que supõe ver repetir-se no filme a tematização exasperada do descobrimento do território norteamericano feito por vias fora da regra, extraindo da lenda de “faroeste feminista” um acréscimo virtual de pontuação pela reiteração da relevância do tema, mas que logo vê sua apreciação geral cadenciar (qualquer fórum de catalogação, contagem e livre comentário de filmes poderia atestá-lo), uma vez que se trata de um filme dito tedioso, onde os acontecimentos relevantes são ousados mas pontualíssimos. E ao que só podemos perguntar: é possível que se nos suceda um filme sem que para justificá-lo por sua suposta falta de exercício de prazer imagético precisemos empregar os termos “interativo”, “contemplativo”, ou mesmo os empréstimos, ao espaço, de uma metafísica pejorativa de “rizomas” e “plateaux”? Onde as muletas conceituais classificatórias se encerrassem, veríamos o cinema de Reichardt atrelar o vidente a uma espécie de voyeur que não toma tanto o prazer escópico por si só, mas que se enamora da constância do trazer para perto. A chegada da chegada – que é também o tempo daquele que aguarda o retorno de um messias.

O curto “bonde” de diligências, notemo-lo, surge frequentemente indo em direções diagonais, estejam elas reduzidas a pontilhados numa caminhada poeirenta ou sejam elas a disforme corrente de indivíduos desmaiando, e da mesma maneira planos médios concentram os pequenos delírios de viagem de Millie, como se fossem protuberâncias a serem ajustadas com gritos ou abraços fugazes no meio de um silêncio locomotivo que fala mais alto que todos. Essa forma de marcação espacial que anula dos quatro pontos cardeais qualquer noção de norteio, adensando-lhes ainda a visibilidade de uma nunca-chegada que se esquece ao fim do quadro, faz tal estágio da travessia concentrar-se única e diretamente em nós – que o filme não chegue, nos termos da viagem, ao seu final, a lugar algum é uma outra história. Vindo ou indo sempre “para cá”, no sentido de que participam, naquele abismo retilíneo, de uma infinita tragada, o que se promove é a iniciação do espectador numa demanda litúrgica, que propriamente delongue a reunião dos sinais “dessa espera de deus” que não está contida nem no nativo nem no Oregon, nem na água nem no sangue, mas num golpe divino de afortunamento que os confirme como selecionados, ou ao menos passantes em segurança.

Mais de uma vez (e este não é tampouco o único filme com tal traço), Reichardt também os filmará mantendo diálogos quase totalmente às escuras. Aqui, apenas com um lampião de gravações multiformes que marcam a escuridão com curvas suntuosas, enquanto um dos casais sussurra, caminhando no duro discernimento visual, visões próprias sobre a destinação do grupo. Ali, à fogueira, suas vozes sendo as responsáveis pela “parte visual” da narração de historietas entre o horror e a segurança. Não é que a pouca luz, como ditam as próprias letras evangélicas, provoque, como consequência ou em nome do teste de deus, o monumento firme da fé. É que, estando reduzidos a pequenos objetos de conserto e casa, cinco dedos de água para aproximados oito adultos e algumas poucas roupas e armamentos, o que se pode chamar de “vida”, para um emigrante, sem dúvidas deve fazer da fala e da fibra autonarrativa e crente tecnologias aprimoradas da sustentação em pé. Literalmente.

Sobre a fé, Meek terá ainda algumas palavras a dizer. Um ato falho que poderá muito bem ser uma brincadeira com nossos próprios vícios de ambicionar ver como mais ou menos consciente certa implosão sígnica entre diretor e testemunha (“veja, ela quis fazer isso disso”) – implicação amalucada de que os realizadores nos devem igualar em intenções, ou seja, em opiniões. Ele afirmará o futuro de todos estar nas mãos do “senhor. … senhorA. Theterow – e de um índio”. A dilatação de tempo que sustenta a anterioridade da correção é um ato de escrita. Do mais afiado roteirista, dizemos, mas mais ainda: de certa anterioridade do escrito sobre o falado. Entregar a vida a alguém que se gostaria que pensasse da mesma forma que “eu” posiciona o ato significativo de pensar muito próximo de uma expectativa antropológica sobre ações, reações e suposições básicas. Mas, separado, no entanto, de toda a caracterização complexa, civilizatória ou tecnológica imbuída num outro conceito para a mesma palavra “pensar” (essa que nos destaca do mundo pelas arquiteturas das máquinas), que esse outro pensamento seja já-instinto, físico, comunal, amizade, enfim, isto O Atalho pode provar por exame de quadro.

No meio de uma árvore, haverá um buraco. No meio do buraco, alguém vê um filme. É o filme do outro lado da vida. A própria. Cinétnografia.


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