Everlane Lorenna

O caixão e a geladeira

Estamos dentro de uma casa. No meio da sala há um caixão. Não só: há castiçais, velas e flores. A diretora adverte às pessoas que já começou a filmar. O homem que se revela através do quadro diz: “mas eu nem penteei meu cabelo!”. A câmera finge se aproximar do rosto de quem estava se preparando para ser enterrado, mas se recusa a revelar tais feições: opta por se atentar às coisas e pessoas que compõem e figuram aquele rito de passagem. O que chama atenção nesse cenário é a presença de uma geladeira, que rompe simbolicamente com a sacralidade do ritual fúnebre. Em A Gente Acaba Aqui (2021), mais recente trabalho de Everlane Moraes, a sobriedade e a parcimônia recomendadas para o luto são vagarosamente interrompidas pela imprevisibilidade: dos objetos, das conversas e do olhar.

O modo de filmar da diretora, em sua nova obra, nos remete a uma informalidade na produção das imagens – como pode ser visto em outros momentos da sua filmografia, como, por exemplo, em Caixa d’água: Qui-lombo é Esse? (2013) e Allegro Ma Non Troppo: La Sinfonia de la Belleza (2014). Ainda nesse primeiro conjunto de filmes, é possível notar seu gosto singular pelos objetos e sua disposição em criar um mapa descontínuo e fragmentado das coisas que compõem e constituem as histórias ou lugares que filma. Anos depois de seus primeiros trabalhos, somos conduzidos novamente para uma forma vagante de se filmar e para um olhar muito atento para o que está ao redor.

Os materiais que compõem a sala onde acontece aquele velório são mostrados por planos-detalhe. Eles ganham ainda mais destaque através do contraste produzido pela luz que atravessa a porta e a janela da casa. O jogo entre claro e escuro que se estabelece e é reforçado pela fotografia em preto e branco dá um tom divino à imagem. A câmera vagueia dando destaque aos detalhes do caixão, às pétalas e ao fio condutor de energia que atravessa o espaço. As imagens são acompanhadas pelas conversas das pessoas que estão no local para celebrar a memória daquele que se foi. O burburinho sobre a panela de caranguejo da próxima semana, o balbuciar do bebê que está sendo ninado e a visita das mulheres ao corpo que será sepultado criam uma composição de interrupções que produzem uma série de profanações à cerimônia que estava em curso.

A existência de uma geladeira ao lado do caixão materializa a contradição que habita o filme, que abriga a formalidade do velório e a contingência do cotidiano. O que poderia ser uma simples marca do âmbito privado, uma vez que o eletrodoméstico faz parte da casa, dá concretude aos movimentos que circundam a própria obra: a coabitação permanente entre convenção e inesperado. O conjunto entre caixão e geladeira faísca a dicotomia entre decomposição e preservação. Se a morte representa a ruína, o cinema, por sua vez, neste gesto, se manifesta como aquilo que pode manter algo vivo e pulsante, nem que seja por um tempo (nem que seja dentro de sua própria duração), ainda que isso pareça estranho ao contexto em que as imagens foram produzidas.

O ambiente sacro e despretensiosamente errático se forma através das memórias do morto que são compartilhadas em torno do caixão, da prece oferecida ao momento de sua passagem e pelas músicas católicas que são cantadas enquanto o fecham e o carregam. Compõe-se uma sintonia afetivo-espiritual por meio da expressividade das vozes e dos cânticos, em uma comunhão coletiva que confere certa ideia de unidade e de pertencimento entre os participantes da cerimônia religiosa. No mesmo lugar, está a geladeira. Enquanto a movimentação das pessoas acontece em torno do óbito , ela escapa como um símbolo daquilo que quer postergar a morte, deixando à tona o gesto do próprio filme, enquanto aquilo que, de alguma maneira, busca retarda-lá ao investir na rememoração daqueles que já se foram.

O percurso do filme chega antes da imagem, ao desocuparmos a sala da casa: há um corpo sendo direcionado ao sepultamento. O ritual, no entanto, volta a ser interrompido pela informalidade: na conversa entre Everlane e o motorista que conduz o corpo de Wellington ao cemitério; no olhar com feição de espanto que o coveiro que carrega a tampa da lápide dá para a câmera. No cemitério, as imagens mais uma vez são tomadas por uma brancura da luz que agora contrasta com o concreto que ocupa a arquitetura do lugar onde se enterram os mortos. Lá, a câmera dá atenção às lápides: vemos nomes, datas de nascimento e morte. Uns com pedras de mármore, outros sem nenhum registro pós-morte em sua gaveta no cemitério.

O local de passagem e comunicação entre o mundo físico e espiritual não deixa de ser contaminado pelas diferenciações de classe que, em certa medida, já estão estabelecidas pela própria informalidade do ritual que se iniciou dentro de uma casa. Os corpos se avolumam, mas nesse lugar também há suas divisões e suas formas de enterrar. A sacralidade, no entanto, conduz ao reestabelecimento da coletividade e dos códigos da cerimônia: um dos homens presentes registra o nome de Wellington com um pequeno graveto na lápide, ação que é acompanhada e comentada por todos que estão no sepultamento. Mais do que estar junto, o feito é de escrita coletiva: mediadas pelo homem que altera a superfície do cimento molhado, comunga-se a inscrição da memória de um ente querido.

A partir da revelação do nome da pessoa morta que move o registro das imagens, o caminho é aberto para que se revele os nomes de outras pessoas que estavam naquele evento fúnebre de 2011. Por meio de cartelas finais, remontadas com imagens do próprio filme, vão se formando, close a close, uma série de lápides com datas de nascimento e morte que passam a elaborar uma paisagem de perdas que a diretora sofreu no intervalo de tempo entre o momento em que as imagens foram registradas até quando passou a se tornar objeto de criação artística, sinalizando a morte de sua própria mãe. Redescobrindo seu próprio movimento sacro, o rito fílmico é dado pela elaboração da perda através do próprio sepultamento: das pessoas, das imagens. Em certa medida, frio como a geladeira. No entanto, em decomposição e perene como o caixão. Mas, sobretudo, ainda vivo.


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