GABRIELA MARLEEN 1 a 2021 leve

Afinar os sentidos

 

Algumas questões, sejam coletivas ou individuais, se abrem e se fecham em diferentes medidas ao longo do tempo, num percurso que aspira à dissolução, mas não sem antes terem sido vistas e terem feito os movimentos necessários. Questão de Silêncio (1982), filme de estreia da holandesa Marleen Gorris, é trazido agora novamente ao público pela Another Screen, programação temática de filmes exibidos online pelo periódico feminista de cinema Another Gaze. Marleen Gorris consegue condensar – de maneira belíssima -, questões da posição da mulher na sociedade, da posição das mulheres entre si, e da posição das mulheres no relacionamento com homens – seja profissional, seja amoroso, seja como concidadãs.

Nesse sentido, o filme não traz protagonistas, embora se possa apontar a presença mais recorrente da psiquiatra Janine Van den Bos e das três mulheres com quem é chamada para trabalhar, após essas terem assassinado um homem, em conjunto: Christine Molenaar, dona de casa, Annie Jongman, garçonete, e Andrea Brouwer, secretária. Acontece que a engrenagem do filme gira em torno não só dessas, mas de nove personagens que compartilham o peso na mensagem e na composição dos quadros, cada uma indispensável no equilíbrio descentralizado das imagens. São essas, além das já citadas e que vão compor o campo de forças em atuação: o marido de Janine, e as quatro testemunhas oculares do crime – quatro mulheres que, estando presentes durante a ocorrência, não interviram na ação nem a denunciaram.

Questão de diagnóstico, o que encadeia o desenrolar dos fatos é a tarefa de Janine de produzir um relatório atestando a loucura ou sanidade das mulheres, que, quinze anos após o crime, foram identificadas e, sem nunca negarem a participação no crime – ao contrário, confirmando-a com prazer – aguardam julgamento. Esse diagnóstico é o que vai determinar o grau de responsabilidade que pode ser atribuído a suas ações e influenciar a sentença que receberão. Ao menos é nisso que Janine acredita, mas sua posição é posta em xeque por Andrea de forma frontal, em uma de suas sessões, quando ela afirma que o relatório de Janine não terá influência nenhuma. Embora suas posturas difiram – Andrea sendo a mais direta -, as três mulheres alternam entre descrença e impaciência com a ingenuidade de Janine diante do caso e de sua dormente consciência de classe enquanto mulher. Em determinado momento Andrea pede para que Janine apenas encerre logo aquilo para que aí sim elas possam enlouquecer de vez na prisão. “Então você não é louca? Não é essa a questão?” Janine interroga, ainda rodando em círculos com suas questões psiquiátricas. “A questão não é essa!” Andrea responde.

Em paralelo ao gradual deslocamento de Janine das questões individuais para questões coletivas, anda o seu casamento, campo onde essas forças também atuam. A relação conjugal da psiquiatra, aliás, participa da abertura e fechamento do filme. A primeira cena de Questão de Silêncio é um momento íntimo e descontraído do casal no sofá de casa, que aparece sempre como uma relação bem balanceada até a metade do filme, quando, após uma sequência que abre essa transição, as tensões começam a crescer: no quarto do casal, à noite, Janine fuma inquieta com o caso que acompanha, e recusa as investidas de seu marido enquanto flashes das mulheres paradas fitando a tela na cena do assassinato – uma loja de roupas -, com uma luz branca de baixo para cima típica de filmes de terror, alternam-se com a cena no quarto de casal progressivamente, até tornarem-se uma profusão de falas e cenas das sessões de Janine com suas clientes (“…seu relatório não vai ter influência nenhuma…”).

Atravessando tudo isso está o tema da conexão, do reconhecimento de uma situação compartilhada do ser mulher numa sociedade patriarcal (ou sororidade, para usar uma palavra pensada para isso): é só quando Janine muda da postura puramente formal de psiquiatra forense e assume a postura de mulher que quer se conectar com a outra, e expressa esse desejo a Christina, que essa outra pode dar sinais de palavras, de comunicação. Não à toa o título em holandês do filme é “O silêncio em torno de Christine M.”, o que traz centralidade para essa personagem. Christina, ou Christine M., permanece calada durante todas as sessões com Janine. O título no entanto, traz um silêncio que não é obra dela – ou não somente – mas que a envolve: um campo de silêncio que atua à sua volta, e, por que não, à sua revelia. As três mulheres partilham de uma consciência comum do que as une e do que as levou ao assassinato daquele homem, no 10 de março de 1981, mas Janine estava fora dessa comunhão, até o momento do julgamento. É ao ler seu diagnóstico, onde afirma que as rés não possuem doença mental, que as expressões descrentes destas passam a reconhecer a nova consciência de Janine: agora ela sabe. E diante de tal afirmação, o público incontidamente entra em burburinho.

Sobre Christina, a psiquiatra afirma que sua catatonia não é necessariamente relacionada ao estado mental durante ou após o crime, mas que é um traço normal da sua vida muito antes do ocorrido: “Ela é capaz de se comunicar, mas já não vê sentido nisso”. Conscientes do estado das forças na sociedade, as mulheres sabiam como seriam lidas, quem entenderia o crime (“algumas outras mulheres”) e quem não entenderia, sabiam que estavam em desvantagem e da falta de espaço para falar, tornando a fala um exercício vão, como é falar para quem não pode nos entender. Porque não foi outra coisa senão essa consciência crua, forjada na experiência, e trazida nos momentos iniciais de apresentação das personagens, que as levou a cometer o crime.

No decorrer do julgamento, Janine disputa a narrativa sobre o crime com o promotor do caso e o juiz. Reconhecer a sanidade daquelas mulheres é grave já que implicaria na existência de um motivo para o crime, e esse motivo pode desvelar uma estrutura que busca ocultar-se. Tenta-se contornar o diagnóstico de Janine, potencialmente desfavorável à estrutura, acusando-a de estar trazendo opiniões pessoais e questionando sua capacidade de objetividade profissional no caso em questão, ao que ela habilmente reconhece a armadilha (“O que o senhor entende por atitude objetiva é a atitude masculina”), e quando acusada de estar se posicionando não somente como psiquiatra, mas como mulher, diz “sim”: um sim que não diminui o mérito profissional de seu relatório e que, por extensão, pode ser estendido ao juiz e promotor, que agem ali não só em nome de seus cargos, mas de sua posição como homens, com consciência do que os une. Seguidamente é trazida, em contraplano, a expressão de seu marido, advogado que figura entre o público. Impassível, ele assiste com contrariedade contida o posicionamento de sua esposa na audiência.

O jogo de câmeras posiciona o tempo todo as forças em questão, principalmente nos momentos do julgamento e do assassinato, onde se formam campos de batalha evidentes, mediados pelo olhar, com movimentos de confronto e contenção, ou reconhecimento e aliança. Quando a sessão é interrompida para o horário de almoço e as três acusadas descem a escada do tribunal para o lugar que lhes é reservado, as testemunhas do crime, que vale ressaltar, estão presentes apenas como parte do público, pois nunca se anunciaram à justiça, e com quem as rés nunca trocaram palavra, levantam-se para olhá-las com cumplicidade e solidariedade, enquanto Janine, também enquadrada, observa a conexão.

Durante o almoço, o marido de Janine tenta dissuadi-la de defender com tanta veemência a sanidade daquelas mulheres. Aqui, essa personagem assume um papel dentro da classe masculina e abre a impossibilidade de aliança entre os dois, se sua condição é que a esposa abra mão de defender – e esta o faz por princípio de justiça, e não meramente autointeresse – a classe à qual pertence e que está sob ataque, pois isso macularia a imagem profissional de ambos (dele). Por duas vezes a metáfora da guerra é trazida pelo filme: na primeira vez por Janine, quando fala do estado de mutilação do corpo do homem assassinado, que lhe lembra os crimes de guerra, e na segunda pelo promotor de justiça, ao referir-se à brutalidade do caso e ao ataque das mulheres como digno de um “exército enfurecido”. Apesar da tentativa do marido, Janine já tomou sua decisão.

Na continuação da sessão, ela tenta evidenciar a questão de gênero que permeia o crime, o que o promotor nega, afirmando que poderia ter sido um assassinato cometido contra uma mulher, ou de três homens contra o homem. Sua fala suscita a risada de Annie, no banco das rés, que espalha-se entre as testemunhas secretas do crime e entre as outras rés, chegando até Janine: “É mesmo muito engraçado”. O fim do filme é uma declaração não de guerra, mas do reconhecimento de sua existência, e de que diante da impossibilidade de dizê-lo, resta a consciência compartilhada, e boas gargalhadas. A risada, nesse caso, é a um tempo comunhão e atestado da descrença de qualquer sentença que venha daquele ambiente. Como não lembrar do julgamento de estupro de André Aranha, que, graças à situação de pandemia em que nos encontramos, foi gravado e trazido a público no momento em que o advogado do empresário humilha a vítima no processo, uma jovem de vinte e três anos, reencenando, com o silêncio conivente do juiz e do próprio advogado da vítima, uma dinâmica que atravessa tempo e fronteiras, e, em seu limiar entre o dito e o não-dito, é tão bem trabalhada por Marleen Gorris. As nove personagens-força se retiram (e são retiradas) da audiência, que “continua sem a presença das rés”.


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