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Entre a imagem e quem olha

Em Broken Mirrors (1984) (que não tem versão para o português, mas se chamaria, em tradução literal, Espelhos Quebrados), segundo longa da holandesa Marleen Gorris, a diretora mantém o tom de sua estreia, Questão de Silêncio (1982), abordando questões feministas com notas de suspense e um quê de mistério policialesco, agora explorando de forma mais visível questões sobre a representação da violência. Ainda pouco acessível para o público brasileiro, encontram-se disponíveis na internet uma cópia digitalizada a partir de um VHS da RCA/Columbia Pictures/Hoyts Video Pty. Ltd. (junção de distribuidoras criada em 1983 para distribuir filmes na Austrália e Nova Zelândia), dublada em inglês e sem legendas, com a imagem em baixa qualidade; e outra no Youtube, em um canal que disponibiliza alguns filmes de Gorris, essa com a definição da imagem melhor preservada, sendo dublada e legendada em alemão. No interesse de mergulhar na obra dessa realizadora, resolvi aceitar a precariedade das cópias disponíveis e, para ter um pouco dos dois mundos (imagem e som), alternei entre as duas – em uma pela inteligibilidade das falas, em outra pela clareza das imagens e cores.

O filme começa em tons azulados numa paisagem isolada, coberta pela neve, onde um carro circula e faz uma saída da estrada. Então um homem, cujo rosto não vemos, desce do carro e retira do porta-malas um corpo embrulhado, que põe ao chão. O homem abre a lona que encerrava o corpo, revelando uma mulher morta. A câmera então enquadra as mãos do homem, suas luvas, o pano que guarda no sobretudo e com o qual as limpa, bem como a câmera com a qual fotografa a mulher que depositou no chão. Esses são os elementos que vão identificar o personagem ao longo do filme, já que não nos é dada ver sua face. Num corte, uma mulher sobe as escadas para o interior de um ambiente agora com cores quentes e vibrantes, estofados e revestimentos em azul e vermelho, detalhes dourados, luz amarela. Subindo outro lance de escadas ela chega aos quartos e começa a limpá-los: vômito na pia, camisinha no chão. Ela se olha no espelho. Estamos dentro do prostíbulo Happy House Club (“Clube Casa Feliz”), é o que ficamos sabendo quando a recepcionista também adentra o espaço e atende o telefone.

Tela de computador com luz Descrição gerada automaticamente com confiança baixa Vaso em cima da cama Descrição gerada automaticamente com confiança média

Outras personagens em torno das quais o filme vai girar são apresentadas: mulheres que trabalham no estabelecimento; seu dono, que fica numa salinha isolada gerenciando os lucros do negócio; Dora (Henriëtte Tol, que atuou em Questão de Silêncio) e Diane (Lineke Rijxman), que também trabalham no bordel, mas são as únicas de quem temos relances de suas vidas pessoais. De Dora, sabemos do percurso que faz de casa para o trabalho e de seu amigo morador de um barraco improvisado perto do rio (do qual apenas ouvimos a voz, sem vê-lo). De Diane, vemos os momentos prestes a sair de casa para o trabalho ou logo depois de chegar, quando deixa e pega sua bebê com a vizinha, encontrando eventualmente seu marido em casa, sem muito ânimo, bebendo ou usando drogas.

A segunda aparição do homem do começo se dá em seu ambiente de trabalho, um escritório num edifício amplo, organizado, bem iluminado. Sempre de costas ou com a cabeça cortada – além das luvas, novamente evidenciadas num plano detalhe –, o tema musical de suspense do começo do filme o acompanha, bem como as cores que, não mais em tons azulados, mas esmaecidas, vão caracterizar a diferença entre as narrativas paralelas do filme: sabemos onde estamos pelas cores, que ora esmaecem a ponto de se aproximar da falta de cor, e ora se acendem de forma vibrante e viva. A narrativa de cores apagadas não chega a ter uma aura de irrealidade ou de sonho: ainda aqui há contraste, os sons são evidentes, passos e vozes são claros e secos. Não saímos do mundo, mas acompanhamos uma vida oculta sombria.

As narrativas se alternam, aparentemente sem ligação. Assistimos ao sequestro de uma mãe estudante pelo homem sem face, que é mantida em cativeiro num ambiente fechado iluminado apenas por uma lamparina, e de onde, acorrentada a uma cama, lhe é dado ver uma parede com uma série de fotografias de outras mulheres, mortas ou aprisionadas nas mesmas condições que a sua, retratos de sua sina que ficam visíveis sempre que seu sequestrador vem e acende a luz. Em silêncio ele a visita, sem responder a suas súplicas e perguntas, alimentando um entretenimento sádico e distante em acompanhar e promover a sua degradação física – pela fome, pela sede -, e psíquica, marcado pelo gesto de registrá-la em fotografias instantâneas que tira dela a contragosto e vai adicionando à parede. Seu prazer aqui, sem conotação diretamente sexual, reside em submeter suas vítimas e guardar o processo em imagem, sendo então a produção imagética parte de seu exercício de poder.

A realizadora trabalha aqui sobre três motivos: o papel da imagem da violência no prolongamento e no endossamento dessa, quando proporciona prazer visual sobre a dor alheia; o do efeito das imagens de violência em quem se vê representada; e, principalmente, o lugar de produção de imagens como um lugar de produção de significados e de delimitação de possibilidades, onde o representado pode ficar preso à imagem. Na construção desse cativeiro, temos uma mulher literalmente presa ao que vê de si mesma, e o que vê de si mesma é produzido material e simbolicamente por outrem. Caberia então a entrada de uma autonomia do olhar, criando um espaço crítico entre quem olha e a representação, principalmente se essa representação violenta e limita, e assim abrir o campo das possibilidades existentes ao movimento – ao invés da fixação –, e a novas representações. Embora essa tarefa não seja executada pela personagem sequestrada, que acaba morrendo, é por assim dizer transferida simbolicamente na trama – e acaba sendo realizada por outra das personagens.

Uma imagem contendo no interior, frente, monitor, tela Descrição gerada automaticamente

Tela de computador com fundo escuro Descrição gerada automaticamente

Pessoa na frente de uma televisão Descrição gerada automaticamente com confiança média

Quando o sequestrador aparece em casa com a esposa, a força das cores volta: o personagem se mantém oculto, mas essa parte de sua vida, não. Em paralelo se desenrola o cotidiano de programas no Happy House Club, entre o salão e os quartos. O bar/recepção do estabelecimento conta com um botão para acionar um segurança em situações de risco no salão, além de um revólver escondido, objetos evidenciadores da violência na atmosfera do estabelecimento e que vemos, em plano fechado, apenas quando um potencial de agressão se manifesta. Além do risco de agressão direta, violências menos evidentes – ou que se escolhe não mostrar – vão se alternando ao longo do filme, e o que vemos são seus efeitos: os olhares vazios das mulheres depois de um programa, ao se encostar na parede, ao se olhar no espelho, ao se lavar numa banheira; o deixar-se o corpo cair numa cadeira de olhos fechados, num misto de cansaço e desolação, os desabafos, enjoos, o suicídio – o enforcamento de uma das mulheres nas escadas do estabelecimento. O tratamento na forma de abordar essas situações deixa a violência transparecer, sem exibir ações diretas sobre os corpos no quadro. As mulheres passam por violências e isso as marca, e Gorris opta por mostrar essas marcas, no corpo, nos gestos, expressões. Mesmo quando efetivamente filma os programas, o que acontece pouco, opta por filmá-los sob o prisma do entediante, do mecânico, do cansativo, deixando a violência subentendida nos que não filma. Essa escolha parece apostar na construção da empatia com imagens não repelentes do olhar de quem se vê representada, que não violam o corpo de quem assiste, e que nem por isso fogem da representação da violência – pelo contrário, trazendo-a o tempo todo.

Trata-se de um estabelecimento de prostituição que funciona de forma organizada, onde as mulheres não estão trabalhando por uma coação ou ameaça direta, que conta com limpeza, manutenção, segurança, momentos de socialização, certa autonomia para recusar clientes, mas onde ainda assim paira um peso. Esse peso parece ser o que costura a obra no entrelaçamento que se constrói entre o rapto e cativeiro de mulheres – numa espécie de submundo sem cor, que ultrapassa a linha do permitido –, e a prática da prostituição, num mundo de cores, onde o que ocorre é mediado pelas esferas do dinheiro, do trabalho, num clube cujo nome vem carregado de ironia. Feliz para quem? Em que tipo de mentalidade e relações de poder está ancorada a prática da prostituição? Em que modelo de sexualidade ela se calca? Quais as consequências disso nas vidas objetivas e subjetivas das mulheres?

Pessoa com cabelo comprido Descrição gerada automaticamente

Mulher na frente de uma televisão Descrição gerada automaticamente com confiança média

Quatro homens sobem as escadas e pedem por um programa grupal, que é recusado. Dora, representada pela mesma atriz que em Questão de Silêncio exerce o papel mais direto em verbalizar uma consciência de classe enquanto mulher, nesse filme assume um papel semelhante de articulação dentro do grupo das personagens, e esse é um dos momentos em que age, conseguindo a diluição do grupo primeiro dando a contraproposta de no máximo dois, para por fim conseguir formar pares de um para uma. Sobe, então, para o quarto, não sem antes alertar uma das colegas, dizendo que se algo acontecer pode gritar, pois estará no cômodo ao lado, e desejar descanso para Diane, recostada no salão. A câmera alterna entre as personagens nos diferentes cômodos, por breves segundos, nos situando da localização e energia de cada um, quando gritos irrompem e tem-se o momento mais intenso na representação de violência: sangue, gritos, contorções, o alarme que toca, o lustre que gira movendo a luz em círculos sobre o quarto. Um dos homens esfaqueara a mulher com quem estava, abrindo-lhe a barriga. Mais uma vez, a cena aqui é explícita, mas não vemos a ação sendo feita, o corpo a corpo.

Todos correm para o quarto de onde vêm os gritos, e um dos clientes presentes, que estava no salão, ajuda no socorro, levando a vítima e outras mulheres ao hospital, em seu carro. Qual a diferença entre o homem que trabalha num escritório convencional, sequestra uma mãe e estudante e a mantém em cárcere privado até a morte, ao mesmo tempo em que janta tranquilamente com a esposa e lê o jornal em casa, para o homem que frequenta o prostíbulo nas horas vagas e educadamente socorre uma mulher violentada por outros homens – como faria a um cão, em suas próprias palavras? Para Gorris, trata-se de lados da mesma moeda, como se vê ao fim do filme. A diretora trabalha com seus personagens de forma a expor o geral no singular, concentrando questões e tensões coletivas em seu microuniverso, que é, em última instância, o próprio macrouniverso social de quem assiste. Quando falamos no personagem do homem sem face, não se trata de um personagem propriamente fictício, mas de um modelo de masculinidade numa sociedade patriarcal, e como modelo, uma amostra dos efeitos dessa sociedade no imaginário e no comportamento de homens reais. Nesse caso, a escolha de não exibir seu rosto, além de mecanismo da narrativa, dialoga com esse papel que extrapola a questão da individualidade.

Além disso, Broken Mirrors, como Questão de Silêncio, são filmes que não apenas mostram, mas articulam, convocam, se endereçam. As personagens femininas refletem sobre sua condição, e, comunicando-se entre si – com palavras, com olhares – comunicam-se com o público feminino que as assiste. É montada uma constelação de personagens, de expressões, de aparecimentos no quadro, onde as mulheres podem ser e mostrar o que sentem diante das situações, uma para outra ou apenas para a câmera. Nesse segundo longa, a reflexão dessa condição no mundo ganha o suporte externo do espelho, para onde as personagens acabam em alguma hora dirigindo o olhar e se vendo, em momentos de suspensão. Assim, temos um filme que versa sobre temas sociais ao mesmo tempo em que, através do uso da fotografia e dos espelhos em seu cenário, reflete sobre a prática de produzir imagens, de olhá-las, de se ver representada. Não apenas isso, no entanto: as personagens de Gorris intervêm, e se ao longo dos filmes são tensionadas relações e situações de opressão, seus finais encaminham as personagens literalmente por portas de saída.

Na sequência final, as narrativas paralelas convergem. Após ajudar no socorro à agressão sofrida por uma das trabalhadoras do Happy House Club, esse cliente, que tudo presenciou, tira as luvas, num gesto em close que a essa altura já nos é familiar, e fazemos as ligações. Diante de um grupo de mulheres consternadas com a recente situação, nosso homem-modelo solicita um programa, aumentando gradativamente a proposta em dinheiro diante das negativas de todas. Num crescendo de tensão provocado por sua insistência, evidenciando o vale-tudo para a satisfação de uma demanda masculina por corpos femininos, e a demonstração de poder em sua postura, na expressão impassível – aqui mediada financeiramente –, as mulheres reagem. Tem início uma sequência quase solene, pelo tema musical que a acompanha, pelos gestos lentos, precisos e ritmados, onde Diane (a mãe cujos relances de vida pessoal acompanhamos) pega a arma que ficava guardada na recepção e expulsa o homem (convida-o a se retirar) com um tiro de raspão no rosto, para em seguida estilhaçar todos os espelhos à vista no salão do bordel – onde ela e outras mulheres estão refletidas –, e colocando a questão: que imagem queremos ter, e fazer, de nós mesmas e de nossas existências nesse mundo? Que vidas possíveis, além do que se apresenta? Desse modo ela e Dora se despedem das demais e vão embora, descendo pelas escadas. No dia seguinte, a faxineira, primeira personagem que adentra o estabelecimento no começo do filme, volta. Do mesmo modo que limpou vômitos no começo, limpa o sangue da noite anterior. E sai de quadro.

Tela de computador com imagem de homem e mulher em frente a televisão Descrição gerada automaticamente com confiança média


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