Depois de um ano e meio, voltei a uma sala de cinema. O motivo da ausência prolongada foi um vírus que assola o mundo e que acarreta – como salvação – o acirramento de algo que o capitalismo contemporâneo já vinha trabalhando intensamente: o isolamento entre as pessoas. Um dos efeitos do vírus da Covid-19 é nos lembrar que estamos “todos conectados”. Não só essa frase está em um filme pregresso de M. Night Shyamalan, como esta situação muito se parece com as situações dramáticas de seus filmes.
O mundo se tornou mais shyamalaniano? Sim e não. De fato, vivemos um momento extremo como sociedade, que é também uma oportunidade para redescobrimos e retraçarmos a forma de nosso vínculo. Sem dúvida esse – o vínculo – é o tema constante dos filmes do diretor americano de ascendência indiana.
Esse novo capítulo de sua obra em progresso se chama Tempo aqui no Brasil, e Old, “velho”, no original em inglês. Fiquemos com o original: old é o que não é deste tempo, é o que persiste mesmo já não se adequando. Old é ver um filme em sala, old é não poder pausar a reprodução, old é ver junto, é parar pra ouvir uma história que sabemos falsa e que – nos melhores casos – presenciamos o processo que a torna verdadeira.
Shyamalan, desde quando apareceu, soava como um cineasta old. Um cinema nada cínico, sempre em busca da ideia de virtude, tentando estudar como se restaura o sentido de vínculo e de comunidade, com sua tendência desconcertantemente “primordial”. Não é por acaso que seu cinema causa perplexidade. Hoje, ele se tornou ainda mais radicalmente anacrônico. O cinismo, a ironia – que são hoje o ar que respiramos – são cabeças da hidra da descrença e da desconfiança – portanto, do medo. Shyamalan, na direção oposta, é um artista sempre interessado na possibilidade da crença – condição básica do cinema. Antes do filme, há um vídeo de apresentação com o diretor, onde ele se apresenta, agradece que estejamos ali, justo como um narrador, um apresentador antigo, de teatro ou de cinema silencioso. Diz: “bem-vindos de volta” (welcome back). De volta pra onde?
O que chamei de tendência ao primordial é essa característica de lidar abertamente com o que lhe importa, buscar o que é prioritário na vida em sociedade – e que também tem a ver com o antigo, com os primórdios. Tempo é, com muita clareza, um filme sobre como lidar com a passagem do tempo e, dentro disso, sobre como lidarmos com as pessoas e o ambiente que nos circunda.
Hoje nossa vida cotidiana sofre vários processos de aceleração e as técnicas de previsibilidade estão em todo lugar. O capitalismo contemporâneo é completamente apoiado nas ideias de tendências, perfis, classificações, para que se possa, ao mesmo tempo, induzir e antecipar resultados. Da psicologia política da Cambridge Analytica ao surto coletivo de crises de ansiedade ao nosso redor, o processo chave é o da aceleração do tempo, do deslocamento da atenção para fora do presente, da impossibilidade de vivê-lo. Shyamalan adaptou a situação de base do quadrinho francês Castelo de Areia (Pierre Oscar Levy, Frederik Peeters) e fez uma fábula sobre a aceleração do tempo e sobre a vida em isolamento. Taí um exemplo do que chamo de “primordial”. Sua característica anacrônica é essa de estar sempre comentando o presente, mas afastando-o dele mesmo. É justo o oposto do que no contexto brasileiro costumamos chamar de “urgente” – que é baseado num processo de reconhecimento imitativo entre filme e “mundo”. Aqui, o território da fábula e suas maneiras produzem o distanciamento necessário para que seja necessário trilhar um caminho – junto – para que cheguemos, renovados, ao presente. Não de saída, mas de chegada. É preciso produzir distância para redescobrirmos intensamente a proximidade. O nome da ciência dessa distância, em muitos casos, é “arte” (ou “narração”, ou “causo”, ou “mito”…).
Distância é algo importante para o trabalho de Shyamalan. Estamos, novamente, numa fábula de restrição espacial, onde todo o trajeto tortuoso em busca da virtude comunitária se dará. Neste caso, uma praia deserta onde se produz um efeito magnético que acelera a passagem do tempo: no curso de um único dia, passam-se dezenas de anos nos corpos. Um exemplo bem elucidativo desse princípio da fantasia é quando os adolescentes Kara (Eliza Scanlen) e Trent (Alex Wolf) caminham em direção ao grupo de pessoas que está isolado no centro da praia. Eles acabaram de ter sua primeira relação sexual. Nessa caminhada de metros, vemos a barriga crescer, até que ela dê a luz, depois de minutos. Boa parte do filme é povoada por essa presença e investimento no truque, na insistência no falso: cortes que cicatrizam na hora, mortes totalmente súbitas, um tumor que se multiplica a olhos vistos – o falso é o caminho para o verdadeiro.
A comunidade de base do filme, presa na praia do tempo acelerado, não é uma comunidade qualquer. No foco principal, temos um núcleo familiar padrão: pai, mãe, filha e filho. Ao caírem na armadilha que os leva à praia, encontram lá outras pessoas. De cara, o filme sublinha um aspecto na constituição desse núcleo. Quando a família chega lá, vindo de van junto a outra família, encontram um homem, sozinho, nessa praia, isolado e pensativo. Esse homem não é exatamente “qualquer homem” e sua diferença será um assunto constante no filme e produzirá várias consequências: Mid-Sized Sedan (Aaron Pierre) é um homem negro, um rapper, muito alto e forte. Rapidamente, a encenação do filme joga com isso, colocando-o no fundo de quadro, em geral em oposição a Charles (Rufus Sewell), médico branco, cujo processo de demência – que vai se acirrar ao longo da vivência nessa cápsula infernal – resulta sempre em agredir e tentar matar pessoas não brancas. Sedan não é o único não branco da situação. Há um casal, Jarin (Ken Leung) e Patricia (Nikki Amuka-Bird), de ascendência asiática e negra, respectivamente. A apresentação deles, que acontece no lobby do resort que organiza essa armadilha, é elucidativa. Idlib (Kailen Jude), um menino local, filho de um funcionário do resort, vai em direção às crianças da família principal, para brincar. Um dos vilões do filme , vivido por Gustaf Hammarsten – uma espécie de gerente do hotel e artífice da armadilha médico-científica que leva os hóspedes à praia magnética – repreende Idlib, dizendo que ele não pode brincar ali. Idlib não é um menino branco (e é ele quem escreve a mensagem codificada que proverá a saída final). No momento exato em que Idlib é repreendido, Patricia cai no chão, em convulsão. É sobre esse vínculo que o filme versa. Jarin, seu marido asiático, é enfermeiro. Charles não presta atenção ao que Jarin diz, erra seu nome, cumprindo seu papel dramatúrgico de branco homicida do rolê.
Adentrando a seara racial, não tenho certeza se a recepção crítica no mundo e no Brasil leva em conta de que estamos falando de um artista não-branco. E, no desenho racial brasileiro, certamente não é simples para nós entendermos que a família central da trama é uma família mestiça, branca e latina. Isso me parece importante porque de fato é um dado de base da formação desta fábula e dos desdobramentos da trama. O diagrama racial onde o negro ocupa uma posição extremada do ponto de vista da supremacia branca e os asiáticos e latinos ocupam uma situação, em comparação, mais dinâmica, é central para o que acontece ao longo da projeção. O “medo branco” homicida de Charles se dirige prioritariamente ao negro Sedan, até que no segundo ou terceiro ataque consegue matá-lo. Depois, o asiático é objeto de seu ódio, depois o latino. E só no estágio mais avançado de sua demência supremacista ele tenta esfaquear uma pessoa branca, mulher. Charles, ao esfaquear Sedan, diz – acelerando o futuro: “você vai invadir minha casa!” A fantasia racial é baseada em um exercício narcísico de antecipação do futuro que é a confirmação da fantasia de diferença que lhe confere valor e identidade. O tempo progressivo e cumulativo é uma ideia branca, assim como é sua aceleração.
O começo da fábula racializada coloca este homem negro, sozinho numa praia, junto ao cadáver de pele clara de uma mulher jovem. O que você pensaria? Temos uma situação arquetípica onde o “provável” anda junto com a repetição e reificação dos estigmas. É sobre isso o filme, sobre os limites e perigos dos exercícios de antecipação, dos comportamentos baseados no “provável” que inundam nossa vida cotidiana e os big data ao redor.
Entretanto, o dado racial tem aqui mais nuances. O próprio Shyamalan interpreta um personagem, um funcionário do esquema, que dirige a van que os leva para a cilada, e depois, é o responsável pela gravação das imagens deste experimento – que ao final é desmontado. Portanto, a função da narrativa saiu do controle pragmático baseado na acumulação de dinheiro e poder, e se encaminhou para a revelação da virtude comunitária.
Uma das metafalas mais evidentes em Tempo acontece quando, ao final, depois de uma sequência de eventos violentos e traumáticos causados pela impossibilidade das pessoas de viver com as diferenças e aceitar o tempo, o casal da família protagonista se pergunta: “devemos continuar tentando fugir?” (“should we keep trying to get out?”)? Aí a lição: aceitar a efemeridade e valorizar a vida em conjunto, que se descobre vivendo e lidando e não por antecipação. O sentimentalismo de Shyamalan é novamente desconcertante e o vacina contra todo cinismo ao redor. Provavelmente, é o mais cringe dos cineastas.
Recentemente, um outro filme americano, também centrado numa família racializada, Nós (2019) de Jordan Peele, começava com uma situação muito parecida: família dentro do carro, cantando junta, indo para o espaço do perigo para redescobrir a si mesma. Porém, a fala destacada acima faz uma citação ao longa anterior de Peele, Get Out (Corra, 2017), que falava justamente sobre uma experiência racial do tempo, onde as camadas se acumulavam, onde a escravidão se atualizava, e onde “estar no tempo presente” era um enorme desafio. O problema do tempo é também racial, e vice-versa, o racismo é uma questão temporal.
A encenação em Tempo tem uma figura de estilo recorrente: travellings laterais que vão e voltam (“bem vindo de volta”), muitas vezes sem justificativa clara no enredo. Nesta nova metanarrativa (como o título atesta claramente), Shyamalan complica uma convenção do cinema. O plano sequência tem como efeito “natural” que o tempo cronológico, o tempo fora do filme, e o tempo narrativo se igualem – o chamado “tempo real”. Neste thriller, a aceleração temporal faz com que esse efeito “natural” se perca, e esses planos mostrem justo o contrário, a natureza impura do tempo que é característica de base do cinema e da arte (chamamos isso antes no texto de “distância”). Muitos movimentos de câmera são “injustificados” ou “irreais” em Old, produzindo um efeito de estranhamento. Eles modulam nossa crença ao lembrar que estamos vendo um filme: estamos sentido algo, juntos, em relação; isso não é real, mas é, e por isso mesmo é que é importante. No segmento final, há um plano noturno, pendular, onde morre o pai (Gael Garcia Bernal), o filho crescido vai na água chorando, a câmera acompanha, retorna no sentido oposto, passa pela canga agora com o morto, e agora cai a mãe (Vicky Krieps), o movimento continua, vai até às pedras e volta. Não só o tempo é impuro, como ele é multiperspectivado: para o mar e para as pedras, aquelas mortes são irrelevantes. A fábula é sobre nossa relação com o mundo e com o que costumamos chamar de “natureza” – e sobre o vínculo inviolável entre nós.
E o instrumento de restauração do vínculo é o cinema (como em Vidro (2019), a relação entre câmeras e vigilância está posta). O gerente do hotel atrai os hóspedes para o experimento chamando a praia paradisíaca de “anomalia natural”. Taí um epíteto possível para o cinema, esse amontoado de truques ao mesmo tempo tão falso e tão verdadeiro, esse grande salão, escuro, vazio, esse experimento de comunhão baseado numa restrição perceptiva, que gera a possibilidade de uma expansão do que sentimos.
Semana passada voltei a essa caixa de acreditar, onde literalmente vejo mortos (“I see dead people”, fala emblemática de o Sexto Sentido, de 1999), onde a reprodução não depende de mim. Não podia pausá-la e as outras cinco pessoas que estavam na sala estavam submetidas ao mesmo fluxo que eu. Nessa caixa preta onde há não muito tempo não era incomum vermos pequenas combustões dentro do retângulo da imagem, esse teatro onde retornamos em busca do fogo, onde nos distanciamos da realidade para voltar a ela. Nela há algo de muito antigo que talvez só atual presença de sua obsolescência possa nos mostrar.
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