A Visita (The Visit), de M. Night Shyamalan (EUA, 2015)

janeiro 25, 2016 em Colaborações especiais, Em Cartaz

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O horror de dentro, a invasão de fora
por Leonardo Amaral (colaboração especial)

Bruxa de Blair, de Daniel Myrick e Eduardo Sánchez, marcou aquele ano de 1999. Era um jovem adolescente de quatorze anos na época. Ao sair do cinema com dois amigos, ambos, intrigados, se perguntavam se aquilo tudo era realidade ou fantasia. Estavam assustados e encabulados com as cenas e com a sensação de hiperrealismo construída pelo filme. A quebra da quarta parede realizada por Myrick e Sánchez se dava, principalmente, no deslocamento da imagem ficcional para transmutá-la em found footage. O projeto dos documentaristas que estavam atrás da lenda da bruxa local se transformara em um pedaço de fita magnética encontrada por outros investigadores. Na medida em que assistem ao material de arquivo, se delineia uma história de horror vivida pelos cinegrafistas. Daí a sensação de hiperrealismo que confundia o espectador ao ponto de deixá-lo com dúvidas em relação à veracidade daquilo que assistia no cinema. Com o crescimento do uso das câmeras digitais, muitos foram os filmes que lançaram mão da passividade dessas “câmeras amadoras” para criar suspense através de seu uso. Um exemplo notável é Atividade Paranormal. O primeiro e mais significativo filme da franquia, realizado por Oren Peli em 2007, mostra câmeras de segurança que registram atividades estranhas ao longo da noite na casa de uma família de classe média estadunidense. Temos acesso exclusivamente ao que essas câmeras registram. Mais uma vez lidamos com a passividade das imagens que constroem o suspense a partir dos registros e da montagem.

Diferentemente desses dois exemplos supracitados, M. Night Shyamalan estabelece um novo estatuto para essas imagens captadas por câmeras digitais caseiras em A Visita. No filme, a elaboração do suspense não advém mais da passividade das imagens de câmeras que registram fenômenos extranaturais sem que os personagens possam ter algum tipo de intervenção nas imagens ou em relação aos acontecimentos que se sucedem. Ao contrário disso, em A Visita, só existem acontecimentos porque os operadores das câmeras são personagens principais.

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A primeira imagem do filme apresenta uma entrevista de Loretta Jamison (Kathryn Hahn), mãe solteira de classe média baixa dos Estados Unidos, que trabalha no Walmart e está prestes a fazer uma viagem para um cruzeiro com o atual namorado de boa situação econômica. Ela olha e fala diretamente para a câmera, que, instantes depois, descobrimos ser de Becca Jamison (Olivia DeJonge), sua filha. Há, logo em seguida, a revelação de que Becca e seu irmão Tyler (Ed Oxenbould) irão visitar os avós maternos na Pennsylvania, pois nunca tiveram a oportunidade de conhecê-los. Rapidamente, registramos todo o contexto do investimento em câmeras digitais de baixo orçamento operadas na mão ou colocadas em anteparos rústicos como mesas, cadeiras, outros móveis e o próprio chão. Os irmãos Jamison decidem realizar um documentário sobre a visita à casa dos avós de modo a aproximá-los novamente da mãe, que, anos atrás, fugira de casa após uma discussão com os progenitores.

A partir dessas informações, fica bastante notória a intervenção quase mínima que o filme faz nas imagens realizadas pela fotógrafa e cinegrafista Maryse Alberti (a operação maior está, logicamente, na montagem, que estabelece uma contagem dos dias dos netos na casa dos avós em uma casa afastada em uma pequena cidade do interior). O filme só existe porque as câmeras digitais dos irmãos não apenas registram, mas também potencializam todos os eventos que ocorrem durante sua visita. Esta é a grande diferença que Shyamalan estabelece em seu filme em relação aos tantos outros filmes que fazem uso de câmeras subjetivas, found footage e hiperrealismo: a câmera, mais do que aparato técnico de registro, é também personagem e operador de situações no filme.

Logo ao chegarem na casa dos avós, Becca e Tyler percebem que os avós não são tão normais quanto pensavam. O avô, chamado pelos netos de Pop Pop (Peter McRobbie), é uma figura sisuda, esquizofrênica e de poucas palavras, enquanto a avó, tratada como Nana (Deanna Dunagan), é uma senhora depressiva e com ares de demência. Com a passagem dos dias e das noites, as suspeitas em relação aos dois vão se tornando certezas, principalmente após descobrirem que Nana sofre de uma doença chamada sundowning, um tipo de distúrbio que aflora após o entardecer: ela faz coisas estranhas como vomitar na sala, andar de modo incomum pelo corredor ou arranhar as portas e paredes com as unhas. Em uma das investigações parte do documentário que realizam, Tyler também descobre que Pop Pop tem incontinência intestinal e guarda todas as suas fraldas geriátricas usadas no interior de uma casinha no quintal. Com o passar da semana, as atitudes dos avós tornam-se cada vez mais estranhas e violentas e são potencializadas pelo filme realizado pelos netos.

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As imagens e entrevistas deflagram os modos de vivência da família e aproximam os corpos em jogos que ficam sempre no limite entre a sanidade e a insanidade. Três cenas são emblemáticas nesse sentido. Em uma delas, Becca e Tyler vão até o porão da casa onde Loretta costumava brincar na infância. Rapidamente, os jovens se perdem no local para que se tenha início uma espécie de brincadeira de gato e rato. A avó surge e, vorazmente, começa a perseguir os dois, em tom de brincadeira, mas de aspecto aterrorizante. A “diversão” só tem fim no momento em que os netos conseguem escapar do local. A câmera, jogada ao solo, ainda consegue registrar, mesmo que de modo torto, o caminhar de Nana em direção à casa, quase nua, devido às vestes terem se rasgado durante a perseguição.

Outra sequência representativa do poder de intervenção da câmera-personagem se dá em uma entrevista realizada por Becca com Nana. As falas decorrem normalmente até o instante em que a avó é perguntada sobre a relação com Loretta. Ela começa a chorar e a bater a cabeça contra as mãos em sinal de grande transtorno. Em uma segunda entrevista, novamente reage mal à pergunta da neta, mas decide contar uma história sombria de uma mulher que afogara os filhos em um poço. As duas entrevistas estão diretamente relacionadas com o que se sucede em uma terceira cena bastante notória. Becca e Tyler, já bastante intrigados com as atitudes dos avós, decidem esconder uma câmera no meio de alguns objetos na estante da sala. Durante a madrugada, Nana percorre o cômodo da mesma maneira estranha que o faz a cada dia. Ela caminha pelo local e tudo é registrado pela câmera, em procedimento que lembra o de Atividade Paranormal. A diferença, porém, se dá na relação existente entre personagem e câmera-personagem: de modo intempestivo e surpreendente, o rosto assustador e distorcido (pela lente grande angular) de Nana surge diante do espectador. A avó tem exata noção da presença da câmera e do modo como ela media as relações com os netos, funcionando como um tipo de ponte entre eles. Isso fica ainda mais evidente quando ela segura a câmera, vai até a cozinha, pega uma faca e se dirige até o quarto dos netos. A câmera é posta no chão e a lente grande angular nos permite ver a tentativa da avó de invadir o quarto dos netos com a faca.

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Neste instante se opera um jogo cinematográfico bastante sofisticado estabelecido por meio da montagem. Pela primeira vez durante todo o filme, um das duas câmeras dos dois adolescentes não está de posse de um deles. Ela está do lado de fora, sobre o chão e apresenta a avó que bate a faca contra a porta. Do outro lado, a segunda câmera mostra os dois netos, assustados, em cima de suas camas, sem saber o que fazer. A montagem articula esse plano e contraplano de modo a criar um suspense que advém, sobretudo, pela presença dessas câmeras: somente por sua presença essas cena se tornam possíveis.

É algo que também ocorre na principal revelação do filme. O contato entre Loretta e os filhos se dá a partir de uma terceira câmera: a webcam do computador de Becca (essa mesma webcam havia sido danificada “acidentalmente” por Nana há uns dias, mas fora enfim consertada por Becca). Se as duas câmeras dos adolescentes servem para uma aproximação interpessoal, a webcam transpõe as barreiras do espaço. A diferença das naturezas entre as câmeras dos filhos e a da mãe é que a última se apresenta como um tipo de fora que nunca se quer dentro. As imagens registradas por Loretta em seu cruzeiro revelam conteúdos já corriqueiros desse tipo de passeio, feito por pessoas que desejam registrar toda a sua viagem. Loretta mostra aos filhos tudo o que ocorre através desse pequeno olho mágico digital. As crianças, em um ato inocente e promíscuo, trazem o fora para dentro ao se conectarem com Loretta e fazem com que o registro objetivo e corriqueiro da câmera da mãe se torne um perigoso elemento desarticulador para o que acontece dentro da casa dos avós. O contato com o fora altera a ficção que existe no interior da casa e também o teatro feito por Nana e Pop Pop. Não à toa, a avó tenta fazer com que a webcam deixe de funcionar ao jogar massa de biscuit em sua lente, pois sabe que o contato com o exterior quebraria a ficção e o jogo internos. Mas é ao voltar a funcionar e a estabelecer novo contato com o fora de quadro que a webcam se transforma na chave que desestrutura todo o mistério: ao ser apresentada à suposta imagem dos pais através desse olho-mágico-digital-personagem, Loretta revela o improvável: aqueles não são seus pais, os avós de Becca e Tyler.

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Nesse instante, há um intercruzamento de olhares que reconfigura o lugar dessas câmeras e aparatos técnicos na sociedade de consumo. O que seria um modo de aproximação se transforma na prova cabal de evidência de um suposto crime. As câmeras, outrora utilizadas em um documentários de família, transformam-se agora na única esperança de salvação para Becca e Tyler. Outro propulsor para o que acontece nesse momento é o conhecimento de que aqueles não são familiares, mas pessoas estranhas. Shyamalan trabalha, de certo modo, com a falência de um certo humanismo existente em seus personagens. Se antes existia um apelo emotivo que relevava as atitudes dos avós, ele deixa de existir após a revelação. A Visita se transforma, assim, num filme sobre sobrevivência, um filme de guerra, no qual se estabelece uma outra ordem moral e um outro código de conduta. Os ataques dos velhos aos jovens e dos jovens aos velhos revelam uma diferenciação corporal que somente a câmera pode oferecer. Ela torna-se novamente leitmotiv, aparato motor e de registro das mortes dos “avós” pelos netos.

Ao final, tudo se transforma em documentário, em arte. Becca, em entrevista ao irmão, conta como construiu seu filme a partir daquilo que filmara. Há pretensões estéticas e intenções artísticas em sua fala, reivindicando um outro modo de cinema, propiciado a partir da difusão das câmeras digitais e com o fim proclamado da película. Não se realizar mais filmes em película, o fechamento dos laboratórios de revelação e de finalização de imagem, estabelecem um outro cinema, como novos códigos, novas relações com o espectador e novos modos de operação. Um outro cinema de suspense é esboçado e apresentado por Shyamalan. Há, evidentemente, um traço autoral em A Visita que reconfigura essas imagens em um filme de suspense. No entanto, quando Becca fala de “seu filme”, e com a proliferação cada dia mais ligeira de imagens diversas em vários suportes de visualização, ficamos de fato na dúvida em relação a no que pode se transformar o cinema a partir disso tudo. Shyamalan fornece algumas pistas e cria uma mise en scène bastante particular por meio dessas imagens cada vez mais possíveis por conta do acesso a essas câmeras mais portáteis e acessíveis. É uma mise en scène, sobretudo, de planos desenquadrados… um outro tipo de suspense, diferente daquele feito por Hitchcock ou dos found footage posteriores a Bruxa de Blair. A ironia de Shyamalan talvez esteja na sequência de créditos, com o rap mal ajambrado e ao mesmo tempo verdadeiro cantado por Tyler.

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