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As pulsões do cinema de Philippe Grandrieux

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Desde que defini-lo como cineasta passou a ser mais adequado que artista plástico, realizando obras destinadas à exibição em salas de cinema e não museus, Philippe Grandrieux se tornou rapidamente uma das principais referências do cinema contemporâneo mundial ao conquistar prêmios importantes em festivais como Locarno e Veneza. O francês despontou ainda na videoarte, trafegando entre inúmeros trabalhos para TV, museus, performances, curtas experimentais e documentários, antes de finalmente realizar os quatro longas – Sombras (1998), A Vida Nova (2002), Um Lago (2008) e Apesar da Noite (2015) – que lhe garantiram o reconhecimento no meio cinematográfico internacional. É importante destacar o histórico de Grandrieux porque ele se vale do recurso às múltiplas linguagens de sua trajetória para levar cada operação aos seus limites de força e intensidade. São filmes de beleza difícil, pois se impõe com a violência de uma pulsão, um impulso energético ambíguo que (in)determina o comportamento dos personagens e da matéria fílmica. Uma beleza que se impõe como o próprio isso, no sentido psicanalítico de pulsão inconsciente, de outro do sentido, para além dos limites do simbólico.

Grandieux trabalha com uma mise-en-scène determinada como um fluxo próprio ao inconsciente, para assim criar uma experiência que nos traga com a mesma violência com que se libera a energia livre inaugurada da dinâmica psíquica e, no limite, repor a cada momento a questão do que é ser um humano. Basta que seus filmes comecem para que percebamos como os contornos tradicionais de organização dos fatos dramáticos são borrados, liberando os eventos para disporem caoticamente numa rede que implica uma multi-temporada, tal como se organiza os regimes de temporalidade do inconsciente. Nos primeiros momentos de A Nova Vida, por exemplo, em que acompanhamos a chegada e inspeção dos imigrantes na cidade de Sofia, os acontecimentos de sucedem como feixes de temporalidade cujo único princípio de organização são as variações de intensidade das imagens, tornando quase impossível precisar o quando, e mesmo o onde e o quem, daqueles acontecimentos.

Ao partir deste vínculo da pulsão ao inconsciente do sujeito, Grandrieux produz uma mise-en-scène que avança como uma força anônima e despersonalizada. Os eventos narrativos estão desancorados do ponto de vista de um personagem, de modo que o filme alterna indefinidamente as perspectivas dramatúrgicas de narração, indo de um personagem ou estado psíquico a outro sem constância. A própria câmera se torna um instrumento de mergulho molecular – não é que à toa que o próprio Grandrieux opera a câmera dos seus filmes – para aproximar-se ainda mais da experiência subjetiva dos personagens. Sob esta mesma lógica, a grafia das imagens também se transforma e, mediante o fluxo instalado pela montagem, o cruzamento entre os diferentes níveis ontológicos da imagem mais se parece com a tensão entre as diferentes dimensões da consciência. Em cada momento, uma determinada configuração da imagem é responsável por exprimir e reconfigurar continuamente a realidade psíquica dos personagens. Em A Nova Vida, essa experiência é levada quase ao limite da dissolução do próprio princípio das imagens quando, no remate das perturbações de Seymour (Zachary Knighton), as imagens se tornam reflexos monocromáticos das suas visões-pensamentos-lembranças-delírios, tudo de uma só vez. Quando não a imagem, Grandrieux trabalha este processo de intrassubjetivação através do som, como é o caso da sequência em Sombras onde Jean (Marc Barbé) e Claire (Elina Löwensohn) dançam numa festa. No primeiro momento, acreditamos que a música que escutamos é a mesma que está tocando na festa. Em seguida, a música desaparece subitamente e percebemos que a música que realmente está tocando na festa é outra. Ou seja, o que escutávamos representava, na verdade, o comportamento psíquico de Claire.

A Nova Vida (2002), Philippe Grandrieux
                                                           A Nova Vida (2002), Philippe Grandrieux

O que parece é que Grandrieux está interessado em atualizar uma estratégia própria do surrealismo de tensionar os meios expressivos para liberar uma alteridade radical dos sujeitos. Assim como as obras surrealistas, os filmes de Grandrieux buscam a emergência da força obscura e pulsional dos processos de autoprodução do inconsciente, uma matéria pré-individual cuja irrupção interrompe a organização técnico-instrumental dos sujeitos. Seja na atração que impele Hélène (Ariane Labed), em Apesar da Noite, ao turismo noturno pelos submundos de Paris ou no fascínio de Hege (Kristian Marr), de Um Lago, ao finalmente conhecer alguém para além do triângulo edipiano da sua família, o que move esses personagens é uma pulsão escópica que não se deixa determinar de maneira reflexiva como representação da consciência; daí seu caráter obscuro, assim como irresistível. Grandrieux liga essa pulsão à sexualidade dos sujeitos, assim como a psicanálise realizada desde Freud, mas não a sexualidade do neurótico, e sim uma organizada por fantasmas sadomasoquistas que os impulsionam a colocarem os corpos em riscos, no limite estreito entre a vida e a morte, limite além do qual o Eu não consegue projetar sua própria imagem. Por isso, em Grandrieux, a respiração que para é um coração que bate ainda mais forte.

O exemplo do protagonista de Sombra é paradigmático para representar essa força que domina os personagens de Grandrieux. Claire é virgem e sua entrada na vida sexual, a partir da aproximação de Jean, será uma abertura ao indeterminado que contraria sua representação inicial. No primeiro momento, Claire é apresentada como alguém que mal consegue lidar com a “tragédia” de um carro quebrado no meio da estrada ou de uma festa de família, além de sentir vergonha das brincadeiras da irmã com meias-calças em um supermercado. À medida em que o filme avança e a proximidade de Jean se torna ainda mais latente, Claire assume um comportamento que transparece uma espécie de gozo que só se realiza para além da economia utilitarista do princípio do prazer, um gozo cujas ações não são operadas em vista do cálculo de maximização do prazer e afastamento do desprazer – afinal, um gozo que não se submete a representações. Claire, então, é capaz de falar para um sujeito que se aproxima durante a festa, no momento em que Jean se afastara, e afirmar “Eu estou em perigo!”, enquanto ri e goza dessa situação-limite, revelando-se senhora dos próprios desejos e fantasias. Pois, acima de tudo, são desejos e fantasias que a desapropriam de si mesma, retirando justamente a configuração de personalidade que a colocava na posição de vítima de Jean. A inversão é tamanha que paralisa os investimentos libidinais de Jean, cuja fantasia dependia da posição de vítima de Claire, tornando-se incapaz de assassiná-la – a fantasia de Jean dependia, mais do que da posição do próprio desejo, da posição do desejo da outra.

Essa tentativa de Grandrieux em acessar potências obscuras do corpo determina o estatuto das imagens dos filmes, pois são imagens que não apenas exprimem e reconfiguram continuamente a realidade psíquica dos personagens, mas fazem isto de acordo com a obscuridade que Grandrieux reserva a esses corpos. São imagens, portanto, que existem sob um paradoxo. Por um lado, enfatizam a materialidade dos corpos, onde residiria a verdade dos personagens, doando sentido à figurabilidade humana e experiências sensoriais através de um olhar que privilegia relações hápticas com os corpos, a proximidade com os personagens, a impressão de registro latente e imprevisto. Por outro lado, são imagens que envolvem continuamente tais corpos em mistérios, já que as pulsões destes corpos são avessas à representação, produzindo inflexões semânticas e múltiplos efeitos de reconfiguração plástica nas imagens – assimiladas por Grandrieux dos seus trabalhos anteriores na vídeoarte – como o velamento, o corte bruto, o desfoque, a sobreposição de imagens, o trânsito erógeno e caótico entre os corpos, a escuridão que os ameaça diluir, afastando definitivamente qualquer visibilidade sex-apeal dos corpos.

Essa sutura entre a materialidade e o mistério das imagens está bem posto nos momentos em que Hege perde a virgindade com Jurgen (Alexei Solonchev) em Um Lago. Quando finalmente a vemos sem toda a indumentária que utilizava para se proteger do frio, o seu corpo nos atrai na mesma medida em que é obturado o nosso acesso completo à sua imagem, sublinhando uma inacessibilidade que nem mesmo o rompimento da virgindade é capaz de desatar. Em Sombra, basta notar um dado momento em que Jean observa uma de suas vítimas para perceber como a sensualidade dos corpos – neste caso, a da vítima localizada em frente ao seu carro – jamais é dada sem uma perspectiva obscura que assalta a imagem, conferindo-lhe uma tortuosidade que rompe o acesso pleno ao que se vê. O paradigma da escuridão como sintaxe do obscuro é invertido em Apesar da Noite, pois nos momentos em que filma as experiências radicais de Hélène, a visibilidade é desafiada por uma luz branca que incide sobre os corpos mas que, em vez de facilitar a compreensão, cria uma zona de hipervisibilidade que, paradoxalmente, os torna ainda mais difusos aos sentidos.

Um Lago (2008), Philippe Grandrieux
                                                                Um Lago (2008), Philippe Grandrieux

 

Sombra (1998), Philippe Grandrieux
                                      Sombra (1998), Philippe Grandrieux

 

Apesar da Noite (2015), Philippe Grandrieux
                                                                     Apesar da Noite (2015), Philippe Grandrieux

O resultado são imagens que portam, sobretudo, a realidade de uma ausência, pois são imagens cuja força existe “pelo que há de inacessível, misterioso, irrevelado na imagem, mas que nela se manifesta” (Maurice Blanchot), uma visibilidade improvável com uma força de desestabilização que nos aproxima de nossa interioridade caótica. Assim como as pinturas de Francis Bacon, uma fonte de inspiração plástica segundo o próprio cineasta, as imagens de Grandrieux ensaiam um recuo em direção à noite que antecede o surgimento do desejo, destruindo a representação através da violência da sensação, de modo a reproduzir plasticamente uma zona de indiscernibilidade dos sujeitos anterior à constituição de suas identidades.

 

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O nó do projeto de Grandrieux é que vivemos numa época tão fascinada pelo discurso do desconstrutivismo sexual que apelar para alguma natureza obscura do corpo – uma natureza que só poderia ser, diga-se de passagem, limitadora, já que estamos acostumados a aceitar a distinção entre liberdade e natureza – significaria quase um regresso à metafísica. Por isso, pode parecer arcaico quando, em Um Lago, esta simbiose entre homem e natureza é posta pela contiguidade com que Grandrieux olha os personagens e os espaços, indecidindo-se continuamente entre homem e natureza, filmando a ação dos personagens com um vigor que lembra a agitação primeira das falhas tectônicas que ergueram aquelas cordilheiras. Algo que se repete em A Nova Vida quando Grandrieux funde cães e sujeitos ao torná-los indiscerníveis na silhueta da imagem.

Grandrieux, ao invocar termos tão arcaicos como natureza, agiria contrariamente às tendências da contemporaneidade ao operar um retorno ao discurso da relação enigmática entre sexualidade e verdade do sujeito – uma relação que necessariamente me despossui de mim mesmo, já que a sexualidade é compreendida como uma força que não controlo. Ora, este discurso só levaria ao esquecimento da plasticidade infinita da subjetividade contemporânea capaz de ressignificar tudo a partir da sua vontade, compreendendo sexo, gênero e corpo como construções sociais que podem ser desconstruídas e parodiadas segundo a vontade do sujeito, uma vez que este seria, de fato, o “proprietário” do próprio corpo. No entanto, em Grandrieux, a natureza não se organiza como um funcionalismo ordenador, como estamos acostumados a imaginar. O que vemos, na verdade, são pulsões sexuais que desapropriam os sujeitos proprietários de si, forçando-os a saírem de si ao serem acometidos por agitações obscuras que os despossuem. Por isto, como definiu o próprio Grandrieux, um cinema “que nos conecta intimamente com o caos, o desastre. O que nos leva à questão do que é ser um ser humano, esta ameaça constante, uma pressão tão grande que nos envolve.

A potência política de Grandrieux está em subverter o modo de circulação das imagens do corpo na contemporaneidade pela qual a polimorfia pulsional, uma vez inscrita em imagens infinitamente reprodutíveis, perde seu segredo, ao cabo que já não lhe resta nada de obscuro. Ou seja, o que anteriormente parecia entrar em conflito com a forma-mercadoria – corpos fragmentados, indeterminados, não subsumíveis a uma organicidade convencional – foi transformado em retórica publicitária em campanhas de marcas hegemônicas e setores hiperfetichizados da cultura (design, moda, publicidade, histórias em quadrinho, música pop). Como insiste Vladimir Safatle, “estamos diante da mercantilização midiática de representações do corpo aparentemente avessas à imagem ideia do corpo fetichizado que circulava de maneira hegemônica na própria publicidade”. A principal mercadoria se tornou identidades, destas que o sujeito pode articular livremente, trocando como quem troca de roupa ou telefone. Viveríamos, portanto, numa sociedade da hipervisibilidade, em que se vive o real como artifício e o artifício como real, onde nada mais seria encoberto visto que já não haveria coisa alguma a ser ocultada, como queria o professor Ricardo Fabbrini quando dizia que “da entropia das imagens circulantes, de signos permutáveis segundo a lógica da mercadoria, teria resultado a neutralização das imagens.”

A inadequação entre esta representação dos corpos e identidades e aquela que encontramos em Grandrieux está, principalmente, naquilo que a sexualidade dos seus personagens, assim como as imagens e a própria forma dos filmes, possuem de aterrador e incontrolável, explicitando como ninguém o lado sombrio da contemporaneidade. Grandrieux não está disposto a vibrar as latências do humano através de experiências lúdicas de satisfação, basta notar que quando seus personagens são impelidos a experiências radicais, estas são sempre prenhes de violência e crueldade, figurando, sobretudo, a desumanidade do humano. Ele expõe-nos ao terror, um terror tão absoluto que está melhor exposto nas cenas singulares de cada filme em que Grandrieux se permite sair da experiência dos personagens para filmar algo do extra-campo – as pessoas assistindo ao Tour de France em Sombras; a cidade de Sofia apresentada em um travelling aterrorizante em A Nova Vida; a repetitiva imagem da Torre Eiffel em Apesar da Noite – pois são nestas cenas que percebemos como o terror está para além dos personagens, pois diz respeito à própria experiência social contemporânea.

Sombras (1998), Philippe Grandrieux
                                                   Sombras (1998), Philippe Grandrieux

 

A Nova Vida (2002), Philippe Grandrieux
                                                               A Nova Vida (2002), Philippe Grandrieux

Se é o desencanto com o mundo que constrói estes sujeitos doentes, a viagem operada pela mìse-en-scène de Grandrieux ao fundo da consciência, onde subsistem os conflitos do ego com o mundo exterior, é necessariamente violenta. Grandrieux produz uma imagem do humano a tal ponto desumana, para que esta seja um empuxo ao desregramento, a um desejo absoluto de nos desacostumarmos com esta sensibilidade que, mesmo desumana, define o humano atual. Todos os filmes de Grandrieux desumanizam ainda mais, forçando que vejamos aquilo que preferimos ocultar, para que queiramos nos afastar em definitivo disto que somos. Basta pensar em A Nova Vida, quando Seymour tenta retirar Melanie (Anna Mouglalis), a prostituta pela qual se apaixona, do circuito tenebroso em que ela está inserida. Ele deseja proporcioná-la uma outra forma de vida em que a experiência sexual seria menos violenta, diferente da que ela realizava com os demais sujeitos e mais próxima da que o próprio Seymour tentou realizar quando a contratou. No entanto, Seymour necessariamente fracassa. Afinal, o filme precisa apresentar a história de Melanie de tal modo que ela continue ali, sem possibilidade de fuga, como se somente assim o filme fizesse jus à experiência dos imigrantes de Sofia, capital da Bulgária, onde a população foi assolada pelos conflitos bélicos nos Balcãs durante os anos noventa – como disse Grandrieux, é um filme que trata da “relação entre o histórico pós-comunismo caótico na Bulgária e o mundo psíquico caótico”, numa chave em que as dimensões dos sofrimentos psíquicos são reflexos distorcidos de demandas não realizadas na vida social.

O que não pode passar despercebido é que há algo de prático que devemos apreender desta experiências. Mesmo que, por um lado, Grandrieux apresente seus personagens mediante uma crueldade que paralisa qualquer processo de aderência, este vínculo da pulsão à dimensão de um solo irreflexivo do sujeito também é capaz de produzir afirmações novas e surpreendentes. Pensando em termos psicanalíticos, isto é possível porque lidamos com os personagens de maneira ambivalente: por um lado, estamos diante do sujeitos enquanto representações (o estuprador, o assassino, a prostituta, o criminoso, a virgem) que apresentam-se no plano do imaginário (ou seja, no domínio das imagens onde realizamos projeções, transferências ou identificações); por outro lado, estes mesmos personagens são atravessados por um fundo intratável, uma violência selvagem e inconsciente, que os situa no plano do real (ou seja, o domínio daquilo não pode ser representado por um significante ou formalizado por uma imagem). O primeiro nível, recusamos facilmente por não partilharmos das formas de vida daqueles sujeitos. O segundo, por mais nos assuste, nos amedronte e provoque nosso desejo de fugir ou fingir que não partilhamos de nada daquela matéria informe, também nos atrai de uma maneira tão ambígua quanto poderosa. Ao nos colocar diante de Jean ou Madeleine, Grandrieux suscita, como Luiz Carlos Oliveira reconheceu, “a revivência do medo primitivo que está em cada um de nós”, um retorno a algo que foi excluído do sujeito, algo da energia livre inauguradora da dinâmica psíquica. A partir desta revivência e a experiência de medo diante da própria imagem do humano, tudo de fixo em nós pode, finalmente, vacilar. Como escreveu Vladimir Safatle, “a força da reflexão sobre a catástrofe é mais presente quando lembramos como o que é monstruoso pode ter nossos traços”.

Esta força, portanto, está relacionada à certeza de que partilhamos algo da dimensão fundamental daquelas pessoas, do “poder absoluto do instinto” como dizia o pai de Lola. Grandrieux inscreve esta certeza no modo de apresentação destes personagens: olhamos os personagens e, na mesma medida, somos olhados, a partir de um abandono do centro geométrico do quadro de modo que este “enquadra o enquadrador, enquanto este enquadra o outro” (Hal Foster). Esta imbricação entre espectador e personagem “curto-circuita a possibilidade de uma apreensão consciente e crítica do objeto”, como disse Patrice Blouin a respeito de Sombras, ao nos colocar no interior destes personagens e nos privar do distanciamento analítico.

Daí, ao assumir esta forma análoga ao inconsciente, o filme ultrapassa, sem negar, a primeira camada dos personagens (o estuprador-assassino, a prostituta, a família, os artistas da violência), revelando que a pulsional da segunda camada se vale de tais sujeitos somente como um teatro, uma vez que se trata de uma força anônima e despersonalizada. Então, as condições de leitura dos personagens não trabalham numa chave maniqueísta, uma consequência que nos faria rejeitá-los facilmente e sufocaria a reflexão sobre esta energia profunda, avessa à representações, que movem as suas ações, da qual precisamos para inserir latências neste mundo contemporâneo em que já não há nada a ser ocultado. O que ocorre, seguindo mais uma vez Luiz Carlos Oliveira, é que “Grandrieux tão somente propõe que o espectador partilhe a experiência da personagem, essa desagradável sensação de ser uma espécie de monstro, de ser obrigado a viver na sombra e de carregar essa culpa como um fardo”, uma partilha da experiência em que é exigido que reconheçamos tais sujeitos a partir da dimensão irrepresentável que os impulsionam, onde nasce a força de fragilização das imagens que constituem o mundo atual.

A envergadura de todo esse processo pode ser visto em Sombra, quando nem mesmo a espécie de amor que Jean desenvolve por Claire é suficiente para interromper o seu movimento pelas estradas. O final é próximo daquele de A Nova Vida, em que Seymour delira pela impossibilidade de Melanie, e de Apesar da Noite, em que os corpos de Madeleine e Lenz (Kristian Marr) permanecem atirados ao chão. Grandrieux suspende o desejo de oferecer respostas para que assim os impasses da vida social reverberem em sua altura quase ensurdecedora, como se tivéssemos que escutar nossas contradições para que as reações finalmente estejam à altura. Só assim, a negatividade do desespero transformará o tipo de interpretação que fazemos do nosso desconforto, desobstruindo a imaginação e inaugurando novos possíveis. Quase como a posição que Grandrieux se permite assumir em O Lago, quando Hege descobre uma natureza ainda mais profunda, a natureza do corpo, a partir das primeiras experiências sexuais com Jurgen. Esta descoberta a impulsiona para além da natureza em que vivia e, ao final do filme, ela finalmente foge daquele lugar enquanto a neblina encobre as montanhas. Se não sabemos ao certo se as montanhas ainda estarão ali quando as nuvens partirem é porque é desta incerteza que se faz vibrar as latências do novo.


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