comofernando-header

A primeira pancada

Tamanha a estupefação diante da superficial profundidade do riso causado por Eugène Green neste curto – curto como um golpe – Como Fernando Pessoa Salvou Portugal, somente uma lenda pode introduzi-los, o filme, a gargalhada, a travessura custosa que é a poesia. Lembramos bem (grande parte de nós?) do monólito escuro de Stanley Kubrick à aurora da humanidade, do fantasmático ressoar de ‘Rosebud’ pelos corredores do império morto do magnata Charles Kane, da diabólica orquestração em agudos de pássaros assaltando uma cabine telefônica com uma loura; e a lista, ainda que nos pareça hoje um tanto morta-viva, decerto é numerosa. Mas há quem tenha percebido a maestria poética de Roman Polanski ao fazer do desfecho entre Faye Dunaway e Jack Nicholson, em Chinatown, um ato da mais amarga estocada poética? A irmã da personagem, crucial para o desvendar da labiríntica morte do marido da primeira, já ao terceiro ato, retorna em questão, testemunha ocular que foi ao túmulo precoce. Ele, detetive, a questiona sobre essa terceira, e Dunaway responde: ela é minha irmã; sendo esbofeteada, porque disto ele já sabe, lança uma segunda: ela é minha filha, e um outro tapa antecede uma exigência derradeira pela verdade, sem imaginar que toda a crueldade do mundo recairia sobre o pedido pelo nó fatal de uma síntese: ela é minha irmã E minha filha. Meu pai e eu… Em absoluto, não se imaginava. A compreensão total do hediondo, aliás, sabe-se bem, pode vir a demorar. A dobra narrativa não alcança o choque do íntimo maculado de cicatrizes. Algo do filme escapa a si mesmo, mas só pode vir a sê-lo nele.

Teoriza-se que, depois do arrebatamento poético, o mundo cessa com suas anteriores similitudes. Pois, para além da solução narrativa que, ao menos em impacto, se assemelha à ruidosa tarefa de Fernando Pessoa de conceber um slogan para o primeiro comércio da Coca-Cola em Portugal, ainda no começo do século passado, bem por detrás da temporalidade e incrustado na palavra, o que Polanski e Green realizaram em comum e tem essa potência de desafiar ao mundo, torná-lo frágil, mole aos moldes das mãos e à embriaguez do vício? É que há algo do insustentável à certos acontecimentos constituintes simultaneamente do íntimo e do mundo e que só pode vir à tona sob pressão, e, quando o sai, por desgraça e necessidade, só pode fazê-lo através de uma linguagem que primeiro se mostra em nó. Esfacelar-se de um ato já criativo. Mas eis que o contrário também se aplica sem cordialidade aos paradoxos, na verdade os inflando: há momentos em que a vida, tão vital na mobilização, em seu entrechocar de ações necessárias, repentinamente se desfaz da língua, como se fosse impossível falar. Green retoma a jocosa precisão dessas cordas atadas: convidado a sorver da Coca-Louca para melhor expressá-la em anúncio publicitário, Fernando Pessoa termina às beiras do nojo. Detestou-a, e não é por nenhum outro motivo que aceitou e que se acreditava mais propício a vender sua comercialização. Como se explica a estratégia curiosamente rememorativa do enredo, na verdade, para adicional da graça, até verídica? Ao dorso do filme persistirá a mais divina das colisões.

Seu regente, se não já a vem exercitando desde o princípio da carreira pela explícita poesia de Michelangelo, pelo fado ou pelo apreço às lendas históricas encantatórias, parece fazer da Poesia, através de Pessoa e como não poderia menos sê-lo, uma delicada questão instalada e perturbada entre o convencimento dos sujeitos sobre o mundo de que devem fazer parte e a pungência de suas inevitáveis formas. Por que a poesia e a publicidade, uma vez elementares à vida financeira e àquela mais próxima à índole, são enlaçadas por Carloto Cotta como se algo de semelhante lhes sustentasse a espinha? Em sobrancelha rija, lábios de resoluto delírio e olhos ávidos de descoberta, ele mesmo responde pelo embate com o duplo Álvaro de Campos, “fictício” heterônimo do autor: porque todo relampejar de descobrimento guarda o orgulho e a solidez de uma sedução, primeiro a si mesmo, depois, em convencimento latente em rictos, a outrem. Toda sedução finda na boca, contorna-se melhor na sua vermelhidão ou rosa. Talvez nunca os rostos de Green tenham sido tão vívidos – porque berços, denúncias da instabilidade das aparências –, nunca tenham sido tão gozosos por reciprocidade.

comofernando-01

“Primeiro, estranha-se. Depois, entranha-se” – é o slogan bruto de Pessoa. Suscitam-se, como naqueles rostos salientes quase saltando à tela, o disforme, seguido da passionalidade interior das paixões. Sob o risco de uma febre já presente nas letras, já encarnada nas gargantas e em breve a ser proibida em Portugal até 1974, aquele outro, a periculosidade do risco, se sobressai por um motif que sabemos ser temporal – se se está à frente de seu próprio tempo, é pela perícia em multiplicar e enviar cinética às coisas –, mas também espacial. O que se passa do estranhamento ao entranhamento? A passagem entre extremos. O primeiro arromba um ponto, ou antes revela um vértice afetado pela cegueira, o segundo, a fantasmagoria distorcida da presença atrelada ao sabor do repetido. Dito de outro modo, pois bem interviu o gabinete português proibindo, por décadas, a bebida por “suscetibilidade à habituação”: uma vez entregue ao trabalho e prática da sedução, uma das finas camadas da existência se dá pelo jogo de recuo e adequação daquilo que é estranho. O que vicia incita ao esvaziamento oblíquo dos sentidos do mundo, o que perturba reluz e atrai como se não houvesse maior verdade, ecceidade. A poesia dispensa o valor de troca, mas seu pulmão é o convencimento daquela impossibilidade possível; a publicidade quer que sobrevivam apenas as pulsões por superfície, e no entanto não sobrevive ela mesma sem entregar, também, um nó que ecoa no complexo.

Ressuscitemos o primeiro plano do filme. Não há mais que cores e vigorosa predominância de um azul celeste; o esbranquiçado das bordas talvez acuse certa gradação que os sons das badalas só vêm a confirmar como algo não isolado. Mas até que um pássaro e a cruz coroando o cimo de uma igreja rasguem a imobilidade, junto à vertigem do arrastar vertical da objetiva, o que impedia de assumir daquela variância que pertencesse à imagem estática de uma parede é mera sugestão do gosto ou do inconsciente. Revela-se um cruzamento e o templo, dos quais Pessoa recorta o badalar dos sinos no lirismo português belamente modulado por Cotta: É tão lento o teu soar/ Tão como triste da vida/ Que já a primeira pancada/ Tem o som de repetida. Ora, uma experiência primeva já encapsulada pelas ansiadas repetências da sentimentalidade estranha de que veio carregada? Poesia? Anúncio? Guardadas as proporções de seus meios e tempos, digamos, nas entranhas do reciclar incisivo das grifes e dos versos de uma Hilda Hilst, na subsistência das modas e na discórdia tida como louca quando necessária à vida, expressa na rachadura do discurso – entre termos estranhos parece haver um parentesco que deságua em certa zona limítrofe do Outro.

Questão de transferência, o momento em que um objeto é dotado de tais ébrios contornos quando assemelhado à atividade íntima, de excreção e megalômana que é a poesia? Fica atestado o absurdo, o paradoxo da conexão do apelo universal ao segregado inviolável da intimidade, tudo justificado pelo risível julgamento sobre o teor de dependência, assim como se depende do êxtase no melhor dos risos. Salvar um país por horror a um gosto. Fala de um, hilária, inevitável, para todos. Só a comprovação religiosa de que, uma vez chacoalhada por mãos santas, os demônios seriam expulsos da garrafa, a espumação típica ao movimento fazendo o gás se expelir como um vulcão, é uma esquete, um lance endiabrado de comédia como só uma comédia do cívico poderia surtir. Porque se é pelo artifício da civilização que o jocoso percorre mais explicitamente, Green não apenas introduz, como ilumina, mobiliza ao estranhamento singular os elementos da abertura musical pela execução de Camané de versos do poeta em questão: os óculos que supomos ser de Pessoa prostrados sobre madeira, como que fósseis, o arranjar de etiquette da mobília e talheres dos salões públicos e bodegas, a arquitetura iridescente dos azulejos e posicionamento das placas com nomes de ruas. Traiçoeira do aspecto público como uma sombra, a aderência passional e particular das arestas dispersas do cotidiano contamina os versos e dizeres tornados “de todos”.

comofernando-02

Vale o mesmo que dizer: é tão zombeteiro quanto sério, tão cálido em sua resolução cômica quanto uma celeuma quando se diz que Fernando Pessoa salvou Portugal. Pela abjeção do palato, pela concordância em torná-la, a Coca-Louca, meretriz, ato contrário à corrente do hábito regrado e portanto criador de uma habituação outra, é por toda a desenvoltura na trapaça do próprio mundo que se encarregam Green, Pessoa e o Cinema, juntos, de afirmar que, se é múltiplo este mesmo mundo em sua atividade sinuosa de argila, a sagacidade da poesia lhe adorna como uma coroa. Golpe publicitário que os planos e seus contras (os poetas, aqui, seus patrões ou adversários estritos dali) findem numa oratória planificada imprevista, golpe também do duplo estranho/viciante. Empregado daquele autoassumido gênio das vendas, Pessoa e o patrão, Pessoa e o mar enquadrado por duas pilastras, poeta e comerciante dialogando sobre a falha da empreitada mútua, pouco depois: o que se vê é a lupa sobre a pista, o rosto cheio das contorções saborosas do arrepio moralista, da ejaculação iconoclasta e bruta, da pose kitsch performada pela modelo do anúncio endemoniado. Simulações e verdades pregnantes do rosto aproveitando o logro infantil sobre a charada do mundo que não é mais que a própria criação: poesia.

Uma outra peculiaridade linguística pode bem “ilustrar”, estando a elasticidade de seu império semiótico comprovada junto ao uso mais corrente na língua, o suficiente para que seja transposta aqui. Os estadunidenses popularizaram a expressão: “você está vendendo (convencendo), e eu estou comprando” (não só atingido pela seta como excitado pela exuberância da proposta) – “you’re selling it and I’m buying it”. Que é essa empreitada do valor econômico atrelada à resposta acelerada de um desejo? Convencimento sobre o que é necessário, mas sobretudo sobre o que não se saberia que era preciso até então; algo devém excedente e vital. Já se pensou – fez – o cinema, não como pilhéria da verdade ou da ficção, mas como êxtase daquilo que surge só para dizer que é? O transe vai por estados de nomes prostituídos: cine-philia, religiosidade da perturbação do movimento sobre as formas, e vice-versa; poiésis: ato de criação que é outra coisa do ato feito, da emulação. Um filme: sua matéria e seu impropério de duplo. Entranham-se, as coisas, de estranhas pancadas.


Leia também: