Le Fils de Joseph, de Eugène Green (França/Bélgica, 2016)

setembro 1, 2016 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Victor Guimarães

*Cobertura do IndieLisboa 2016

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“Os filólogos não cansam de ficar surpreendidos com o dúplice e contraditório significado que o verbo profanare parece ter em latim: por um lado, tornar profano, por outro — em acepção atestada só em poucos casos — sacrificar. (…) A ambiguidade, que aqui está em jogo, não se deve apenas a um equívoco, mas é, por assim dizer, constitutiva da operação profanatória (ou daquela, inversa, da consagração). Enquanto se referem a um mesmo objeto que deve passar do profano ao sagrado e do sagrado ao profano, tais operações devem prestar contas, cada vez, a algo parecido com um resíduo de profanidade em toda coisa consagrada e a uma sobra de sacralidade presente em todo objeto profanado.”

Giorgio Agamben, Elogio da Profanação

“Deixando a profundidade de lado
Eu quero é ficar colado à pele dela noite e dia
Fazendo tudo e de novo dizendo sim à paixão
Morando na filosofia”

Belchior, “Divina Comédia Humana”

Eugène Green, um profano

A primeira impressão diante do novo filme de Eugène Green é de espanto. Se uma das maneiras de pensar La Sapienza (2014), o filme anterior, é como uma jornada que parte do materialismo militante do primeiro discurso de Alexandre Schmidt rumo a uma gradual redescoberta do sagrado no encontro com a arquitetura barroca e com Goffredo, o jovem idealista aspirante a arquiteto (trajetória que é espelhada no percurso de Aliénor em companhia da menina Lavinia), é surpreendente que o novo filme enseje um gesto que é, à primeira vista, diametralmente oposto: Le Fils de Joseph parte de uma série de motivos bíblicos para encenar uma intriga bem terrena, recheada de peripécias insólitas e de um humor desbragado.

O adolescente Vincent (Victor Ezenfis), filho de uma solitária Marie (Natacha Régnier), quer encontrar o pai que nunca conheceu, e parte rumo a uma deriva pelo interior de uma caricaturesca alta burguesia parisiense, cujas figuras mais emblemáticas são o próprio pai biológico do garoto (o empolado publisher sem escrúpulos Oscar Pormenor, vivido por Mathieu Almaric), e uma hilária Maria de Medeiros, síntese da desfaçatez decadente da elite intelectual francesa. Após uma tentativa frustrada de confrontar Oscar, Vincent conhece Joseph (Fabrizio Rongione), o adorável irmão loser do editor bem-sucedido, e parte em uma aventura amical pelos jardins da cidade. Será o intrépido filho que apresentará José a Maria, construindo por iniciativa própria uma família para si.

Se a profanação, como nos lembra Giorgio Agamben, consiste em desativar o dispositivo religioso – que separa o reino divino do mundo dos homens – e devolver as coisas ao livre jogo do uso comum, é com entusiasmo que percebemos como o cinema de Green – tão comprometido até aqui com uma sorte de reencantamento do mundo pela via de um forte diálogo com o sagrado – é capaz, também, de abraçar o gesto profanatório e perfurar a iconografia religiosa, lançando-a no caldeirão de uma divertidíssima comédia de costumes. A cada letreiro bíblico (“O sacrifício de Abraão”, “O bezerro de ouro”, “O sacrifício de Isaac”, “O carpinteiro” e “Fuga para o Egito”), o que se segue é um episódio humorístico, que brinca (e o jogo infantil é justamente a expressão máxima da profanação) com a sacralidade da liturgia cristã.

Não se trata, no entanto, de uma total mudança de direção. O estilo inconfundível do realizador está lá, como sempre: o hieratismo dos corpos, a fala a meio caminho entre o recitativo e o coloquial, as composições altamente simétricas. O que parece ocorrer, isso sim, é um desvio em relação ao olhar solene com que, muitas vezes, Green tratou a tradição: estamos bem longe da reverência, que atinge sua expressão mais mortificante nas imagens de cartão-postal de A Religiosa Portuguesa (2009), mas que também estava presente nos contra-plongées dos tetos das capelas italianas e na presença do caldeu amante da cultura francesa (encarnado pelo próprio diretor) em La Sapienza. É quase como se Green operasse uma autoprofanação de seu próprio cinema, cujo emblema é a diferença entre os personagens interpretados por ele mesmo de um filme a outro: se em La Sapienza o autor vivia uma espécie de guru espiritual vindo do estrangeiro, capaz de ouvir as estrelas e responsável por iluminar o destino de Aliénor, em Le Fils de Joseph seu papel é o de um vivaz recepcionista de hotel.

Green transforma a esquete humorística do turista australiano de La Sapienza em um filme inteiro, e alça a presença episódica da juventude frívola da Villa Médici ao protagonismo de Oscar e de sua patota. É como se a prodigiosa rede conceitual e iconográfica de La Sapienza – em que conviviam o barroco de Borromini, a música de Monteverdi, os desastres da arquitetura contemporânea e o tema religioso do sacrifício – fosse confrontada com um olhar zombeteiro, que não hesita em transformar a jornada da sagrada família em uma inusitada fuga da polícia a bordo de um burro emprestado. A teia de referências é igualmente intrincada (e vale o prazer da descoberta), mas o que sobressai é uma mirada fresca, deliciosamente jocosa. Le Fils de Joseph não prescinde da mediação da alta cultura (está lá o Caravaggio decorando o quarto do garoto), mas é francamente irônico em relação ao seu comércio contemporâneo, capaz de transformar um lançamento de livro em um desfile de caricaturas.

O que está em jogo, em suma, é uma faceta imprevista do diálogo com o sagrado perseguido pelo cinema de Green. Ao mesmo tempo em que há uma visão desencantada do mundinho da literatura – que dessacraliza de forma surpreendente a relação com as artes, tão característica desse universo autoral –, a trajetória da família é contaminada de bom grado pelo texto bíblico, numa doce profanação que, ao devolver as figuras religiosas à terrenalidade da comédia humana, inventa uma nova sacralidade possível. Ao deixar a profundidade de lado por um momento e nos oferecer um olhar farsesco e desassombrado sobre os assuntos divinos e o mundo das artes, Green redescobre o sagrado ali mesmo, na superfície de um jardim ou de um encontro casual. Não dizem por aí que Deus mora nos detalhes?

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