La Sapienza (França/Itália, 2014), de Eugene Green

agosto 12, 2014 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Em Cartaz, Luiz Soares Júnior

sapienza

A ideia iluminada
por Luiz Soares Junior

“O vento sopra onde quer. Você o escuta, mas não pode dizer de onde vem nem para onde vai. Assim acontece com todo aquele nascido do Espírito.”

Jesus a Nicodemos, João, 3:1-8

“A forma não pode desejar a si mesma, pois nela não falta nada. O sujeito do desejo é a matéria, assim como uma mulher deseja um homem e o feio o belo”.

Aristóteles, Física, I, 9

“Em todo templo, sente-se uma presença; o arquiteto deve saber convocá-la (…) Por intermédio da luz”, explica para a mulher do arquiteto, com um ar entre compassivo e alvissareiro, Goffredo, este jovem Alcebíades transformado, por obra das circunstâncias, em instrutor socrático. E, de fato, o itinerário do filme vai confirmar a sua função maiêutica – de ser aquele por intermédio do qual uma Verdade será laboriosa e secretamente destilada pela subjetividade do interlocutor: “Serei seu aluno, então”, exclama o rapaz, ao saber que o arquiteto Alexandre Schmidt dará um curso em Veneza; e este lhe redargue: “Sim; como eu sou um pouco o seu aluno também”.  Idem para os entr’actes camerísticos entre Aliénor, esposa de Alexandre, e Lavinia, a irmã de Goffredo. Lavinia, Goffredo, Alexandre e Aliénor; acrescente-se a esta quadrilha a presença, infinitamente modulada pela memória, de dois fantasmas: François, o amigo e sócio suicida de Alexandre, evocado e lamentado respectivamente por Aliénor e pelo marido; e a criança filha do casal, morta aos oito anos. La Sapienza, de Eugene Green, é um filme de rimas culpadas, de correspondências eivadas de má-consciência; e é através desta iniciática viagem à Itália (mas de quantas precisa o cinema para enfim renascer?) que estas culpas serão expiadas, esta gente remoçará, estes jovens sublimarão a doença e a tibieza de ânimo, este homem e esta mulher vão se reencontrar ao fim do caminho… que, num filme de Green, noblesse oblige, sempre coincide com o seu Princípio: reconciliação.

O casal precisa renovar-se: come piante novelle rinovellate di novella fronda/puro e disposto a salire a le stelle; o homem, estóico e racionalista, é aquele que busca, através de uma experiência de sublimação pelo espaço – as catedrais barrocas do Quatrocentto -, a subsunção a um universo estável e fixo; o passado, que o corrói, deve ser purificado pela atenção meticulosa à estabilidade do mármore, sua impecável intangibilidade; mas este filho morto, este amigo desaparecido permanecem ali, corrompendo o seu ideal “claro e distinto” com uma nota de gangrena: o mal-estar evidente para com o Outro (a frieza irônica, a forma brusca como trata Goffredo no início do filme, a  distância de Aliénor); e se o que busca é a sublimação do mal interior, por que perseguir nas volutas envenenadas de Boromini o antídoto? Green auxilia o personagem nesta tarefa, disseminando ao longo do filme movimentos verticais ascensionais de câmera: do caos heteróclito da arquitetura barroca, dirige-se para o céu (o éter, a luz) uma invocação de ordem, centro, reta…  ao final do filme, a apoteose deste élan ascendente.

Se Alexandre representa esta diligência ativa no exercício do Oblivium do passado, sepulto sob a grandeza intransitiva do mármore e os axiomas da Idéia, sua esposa, Aliénor, constitui-se em uma experiência oposta, exemplarmente Feminina: incumbe-lhe auscultar e aconchegar o morto, socorrer o pobre… a Idéia se encarna e nutre. Assistente social e existencial, permanece com a frágil Lavinia, irmã de Goffredo, enquanto o marido e o rapaz se lançam a caminho de Veneza e Turino… a caminho, enfim. Mas tanto Lavinia, em sua sedentária vidência, quanto Goffredo parecem possuir uma gemelidade espiritual que os leva a deflagrar no Outro, sob meios e itinerários distintos, a mesma démarche maiêutica (reparem em como o contracampo em La Sapienza sempre inclui e implica o Outro, este exilado que me cabe acolher: a câmera posicionada sempre à altura do ombro… A rigor, as posições são reversíveis e complementares: o Outro sou eu amanhã). Eles parecem inspirados por uma Mesma e Outra luz…

A luz é, no filme de Green, alternadamente metáfora de renovação espiritual e núcleo de inspiração: apoiar os infortunados (no caso da mulher), construir para o Ser um espaço-tempo através do qual este seja designado enquanto tal (o arquiteto) parecem obedecer a um singularmente aurático propósito ontológico: preservar uma clareira de transcendência no seio do vivido, infensa às depressões do caminho… Fiat lux: a luz consiste na materialização elementar do Verbo divino, do pneuma “que sopra onde quer”. Haveria por acaso matéria mais transitiva, porosa, reverberante e ressoante ao invisível? A luz é esta camada atômica superfluida, através da qual as superfícies adquirem o seu próprio tônus superficial, e reverberam… O mundo físico, newtoniano, no filme de Green é indissociável de sua ativação metafísica pela luz: as coisas nos aparecem buriladas pelo espaço e animadas pela luz. É através desta infiltração divina no cerne da coisa que esta se me dá; a panorâmica para a esquerda perto do final, sob o sol e diante das cidades, consagra uma glosa do Eclesiastes (Nada de novo sob o sol), mas insuflando no pessimismo de Salomão a demiurgia escatológica paulina; nesta panorâmica, onde as paisagens de ambas as cidades são “coladas” interplanos, sagra-se a reconciliação do casal mais velho: de Veneza para Turim, de Turim para Veneza; neste hic et nunc mediterrâneo, uma fresta de Eternidadade se entrevê: a ressurreição do pathos de olhar e de dizer, suscitada  pela intercessão da palavra expletiva-exclamativa dos irmãos, onde irrompe no Mesmo uma faísca de irresistível alteridade. “Oh cristalina fuente/ si en esos tus semblantes plateados formases de repente los ojos deseados que tengo en mis entrañas dibuxados!” ( San Juan de la Cruz, Cântico espiritual).

Em um caso como no outro, é a palavra inspirada dos jovens que se encarrega de lançar as pedras fundadoras deste Bildungsroman invertido, no qual são os adultos quem vão reaprender a olhar o mundo pela primeira vez, a atar as duas pontas da vida; como tantos personagens mediúnicos de Green, estes anjos anunciadores (o penúltimo plano mostra o casal de irmãos se despedindo, num barco que se espraia ao longo da baía) prestam testemunho do que é: daí o tom oracular de suas sentenças, emolduradas por um quadro milimetricamente adstringente; a economia do Logos vidente dita ao cineasta uma economia do quadro, na qual o gesto que se perfila e o olhar em que ele ressoa devem ser caligraficamente restituídos: o numinoso nasce de um excesso de método, de um escrúpulo matemático na apresentação dos corpos (humanos ou arquiteturais), na decupagem “plano a plano”. A mecanização dos “modelos”, o ligeiro faux-raccord do olhar em que se reflete uma fresta de fora de quadro, tudo assinala uma espécie de espaço supra-humano de hermenêutica do mundo, no qual o corpo precisa ser adestrado – exercitado e treinado – para que enfim possa ver e dizer o que é (e ver e dizer em seu cinema, como em toda obra poética, são equivalentes), sem que as mediações da subjetividade tolham a franqueza e vivacidade do Dizer, desviem a rota do olhar “pioneiro”para o Real… A matéria é essencial a este cinema de presentificações epifânicas, mas como um pedestal, necessário mas insuficiente, sobre o qual a palavra se assenta. (Heidegger: “Sem o homem, tudo igualmente seria, mas não seria aí”.). Se a manifestação é elementar e primeva, ela só se sacra quando “dita para um Outro”: se o contracampo em Green obedece a uma lógica de automatismo espiritual, é porque os signos distintivos da presença humana merecem ser rigorosamente mapeados. Como garantir a comunicação absoluta do sentido senão através da atenção milimétrica a tudo o que se inflete, pulsa e turva no rosto do Outro? A decupagem cerrada do classicismo, em que nada deve passar desapercebido ao espectador (paradigma: Only Angels Have Wings), aqui se concentra em sua dimensão dialogal, comunicativa; se é no semicírculo entre o silêncio e o gesto que a palavra se entrincheira, é absolutamente indispensável devotar-se ao diapasão dos gestos, suspender-se no vão dos silêncios…  a palavra habita o corpo – embora nem sempre “soprada”, inspirada.  É, portanto, ao corpo como totalidade significativa (e o gesto muitas vezes substitui-se ao fonema, e com vantagem), como arena e clareira da palavra que se dirige este découpage incansavelmente denso e vigilante…

Mas não se trata de qualquer palavra. A palavra douta de Alexandre discorre e instrui (os planos-esquadro sobre a superfície dos altares, ao longo das colunas das igrejas). É uma palavra mediada, enciclopédica, ruminante, que carrega atrás de si (sob si) um incomensurável rastro; discurso enfadonho, devedor de sistemas e Summas, pesada – e aqui no sentido literal: um Verbo não habitado pela leveza e transparência do espírito (pneuma, anima). Substantiva. Opaca e intransitiva, infensa à luz. A erudição é um invólucro protetor, a crosta do recalque – dos traumas que o passado abriga, da finitude, do Outro… A Idéia e sua luz: contrariamente a esta, em Goffredo, a palavra resplandece como irrupção de questão; o espírito maiêutico, à semelhança do diabinho de Kipling, é aquele que parece fazer nossa a sua questão; engravida o Outro do seu Mesmo, e acaba por fecundar-se também (a fórmula é: ao questioná-lo, acabo por me descobrir igualmente; afinal, tenho apenas dezoito anos!). A gravidade ansiosa, a complacência paciente, a circunspecção inocente são as máscaras de que se serve para este impromptu dialético. À dedução concertante do professor Alexandre, a dislexia auspiciosa de uma Primeira vez: gerúndio… em Lavinia, a inversão é de ordem mais originária: a “filha” substituta, acabrunhada e transparente sob os lençóis, ao tomar da palavra enrijece e equilibra o amontoado de forças, e em seu olho fulge uma determinação profética, sublinhada pelo close up muito fechado: arregimenta e comanda, mas com a doçura evangélica de João na ilha de Patmos, pena na mão e olhar clarividente. O decisivo é a vindicação presente em sua elocução, breve mas definitiva: “A luz”.

Mas o casal de irmãos tem uma arma considerável, que lhes facilita a ascendência sobre os mais velhos: o fantasma. Lavinia, com sua fragilidade doentia e aprendiz de francês (sua língua materna é o italiano, mas ela insiste em falar a língua de Aliénor), bem poderia ser a filha perdida de Aliénor; o adolescente Goffredo ocupa o espaço intermediário entre a criança e o jovem suicida, o amigo François. Perto do final do filme, numa sequência extraordinária em que Green retoma de forma expressa mas camerística os espaços fragmentados e desconectados do Lancelot du Lac (1974), de Bresson, esta presentificação fantasmática advém à cena, em um ritual de exorcismo alegórico: filmado em planos de detalhe (excluído o close up identificatório do rosto) e som off, Alexandre encarna/encena a agonia do falecido François. Alexandre agora é um nobre suicida, substituindo-se imaginariamente a François, e Goffredo é o Signor Francesco, seu criado, que se culpa pelo suicídio do patrão: “Não, Signor Francesco, a culpa foi minha; eu fiz isto para encontrar a luz”. Ocorre aí uma transferência de papéis, de fardo: é o rapaz, agora metamorfoseado no Signor Francesco, quem assume a culpa de Alexandre, livrando o homem da memória espectral de François, cuja presença (nos revelara Aliénor, na seqüência anterior) “conseguia até mesmo ser mais forte que a minha”. É o limiar da salvação: quem há de negar à conversão operada pela Alteridade e seus avatares (a cena teatral e psicanalítica, a novela de aprendizagem) esta função redentora?

O grande ponto ocluso da Idéia de redenção subjacente a La Sapienza é a noção de sacrifício. Goffredo, Lavinia, estes inspirados, falam em sacrifício, ao escutarem os relatos das mortes de François e da criança… Sacrifício é dom (ao divino), e implica uma substituição; dos ex-votos finitos pelas graças do Eterno: saúde, prosperidade, etc. No grande sacrifício que funda o Ocidente, um Pai substitui aos nossos pecados o corpo transfigurado de seu Filho, e assim nos salva da Morte; e a grande intercessora desta conversão hermenêutica (de sangue sacrificado para o Espírito) é a Palavra Revelada. “Para encontrar a paz, os fantasmas precisam de um arquiteto que lhes consagre um lugar e da luz”. Em La Sapienza, o espaço e a luz são os elementos nos quais esta Palavra milagrosa, aqui evocada por intermédio do casal de irmãos, se torna presente; são os instrumentos da salvação, de que a Palavra é o emblema. Na ascensão do último plano, estes elementos (o cimo da catedral, o ar lépido e ensolarado) se encontram enfim reunidos e consagrados.

Share Button