A Assassina (Nie yin niang), de Hou Hsiao-hsien (Taiwan/China/Hong Kong/França, 2015)

setembro 1, 2016 em Dalila Martins, Em Cartaz

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Indelével
por Dalila Martins

“O efeito de beleza é um efeito de cegamento.”

Jacques Lacan

A Assassina (2015), novo longa de Hou Hsiao-Hsien realizado durante oito longos anos, aventura-se pelo popular gênero chinês wuxia, consagrado às artes marciais com um toque de fantasia a partir da herança imperial e que, assim como o Western americano, desenvolvera-se também em literatura. Suas cenas de luta, no entanto, pouco guardam da célebre agilidade performativa, e o típico código de conduta justiceira, força motriz da narrativa épica, é posto a prova. No lugar de um espetáculo lancinante de violências coreografadas, minuciosamente exteriorizado para o reto jorro de adrenalina, instaura-se uma pulsão contida, delicada, que rebenta em errâncias fragmentárias de tom contemplativo, sustentado pela exuberância simbolista das paisagens naturais, ao circundar, como um espectro translúcido, o domínio diegético traçado pelo destino e pela disciplina. E a encarnação desta espectralidade consiste na própria protagonista, Nie Yinniang (Shu Qi), de trajes negros, sóbrios e lânguidos, obrigada a enfrentar as infelizes resoluções de seu passado ao retornar do exílio em preto e branco para o seio familiar aristocrático após fracassar em uma missão de extermínio para a qual havia sido treinada.

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Sua mestra, a freira Jiaxin (Zhou Yun), ao final lhe dirá: “O caminho da espada não conhece misericórdia. As virtudes da santidade não possuem nenhuma função ali. Suas habilidades são inigualáveis, mas sua mente é refém de sentimentos humanos”. Yinniang justifica a falácia de sua incumbência como modo de evitar que prevaleça o caos na província de Weibo se o governador Tian J’ian (Chang Chen), primo a quem fora prometida em casamento na adolescência, morrer deixando filhos ainda muito pequenos. Tal piedade, porém, não se confunde com temor, e certo grau de implacabilidade persiste. Pois esta reminiscência amorosa, mais forte do que uma esperada sede de vingança devido à quebra de votos, delineia a instabilidade imanente à história. No início do filme, logo após os créditos de abertura, cartelas explicativas contextualizam a trama: século IX, o declínio da dinastia Tang, período em que a corte militariza as fronteiras para deter a emancipação das províncias. Dentre elas, Weibo é a que mais se destaca e a atitude de Yinniang garante, então, o desabrochar da prosperidade e sobretudo a sorte, ao menos por um átimo, de transformações efetivas na ordem dada, como a lâmina da adaga que, num corte tácito, derruba o corpo inerte. Aliás, o duplo sentido da palavra corte (‘côrte’ e ‘córte’) se adequa à singular variação de estado que A Assassina enceta, isto é, a recusa ao ato, predominância do negativo, não deixa de gerar um acontecimento metamórfico em que algo de fato perece e um outro surge. Apenas um leve deslocamento na entonação, como a arte de saltar suspendendo as leis da gravidade, estabelece uma hiância capaz de reconfigurar dimensões.

Todo o filme assim se constitui, no limiar de modelos, em duplo pertencimento. O plano em que o título se insere, aquele de uma lagoa e de sua margem refletida num momento de lusco-fusco, anunciando o sol mediante a intensificação da escuridão, exerce papel de súmula. No âmbito da direção de fotografia, nas tomadas externas, os fenômenos atmosféricos (a neblina, o nevoeiro, o orvalho), as distâncias topográficas (as planícies, os rochedos, os leitos) e as texturas dos diversos tipos de vegetação adocicam o foco e refratam a definição. Já nas tomadas internas, a luxuosa gama de cores se estende desde um amarelo brilhante, dourado, até um profundo azul índigo – como eternizado nas pinturas bizantinas – ora em zonas luminosas, tremulantes, ora em zonas de rebaixamento, e por vezes no mesmo quadro, o que engendra um descolamento entre os componentes da imagem, confundindo figura e fundo de modo a ludibriar a percepção das divisórias arquitetônicas. A carga metafórica de tal efeito se condensa na utilização das múltiplas camadas de tecidos diáfanos em meio a portas e paredes no palácio do governador. A alternância material entre opacidade e transparência, despontada pelo sopro de uma brisa, é o indício de uma crise basilar: todo regime de autoridade não passa de uma frágil armação.

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Apesar de não consumar o assassínio, a onipresença oculta de Yinniang abala as estruturas justamente por habitar uma interposição invasiva, intimista, da qual se enxerga através de tudo. Guardiã da memória daquilo que foi cerceado, representado pelo amuleto partido de jade, é ela quem traz a compreensão de que a vida só é possível sob a forma daquilo que está perdido. Atinge-se, portanto, um estranhamento por excesso de proximidade. Quanto mais a atenção repousa no particular, mais evidente se torna a infinita plasticidade do real. E aqui qualquer dúvida quanto à relevância deste filme de gênero na obra de cariz realista de Hou Hsiao-Hsien se dissipa. A fluidez dos movimentos de câmera em planos de longa duração demonstra tamanho propósito. Mas um aspecto da mise-en-scène de A Assassina, a saber, corpos rentes à câmera, de tal modo que nem membros se distinguem, apreendendo-se somente borrões coloridos e dinâmicos, acrescido do desenho sonoro que cria uma ambiência detalhada, ultra saliente, fazendo ouvir em considerável discrepância em relação ao mínimo que se consegue ver, contribui para a projeção de um conteúdo aurático, inerente à aparição única de algo longínquo, não importa quão perto esteja. E isto se formaliza, claramente, no duelo entre Yinniang e a entidade púrpura, mascarada, que a espreita. Talvez esta mulher personifique seu duplo, corresponda ao espelhamento descrito na lenda do pássaro azul ao som de cítara: “O pássaro azul do rei não cantou por três anos. Um dia, a rainha notou que pássaros cantam apenas na companhia dos seus. Coloque-o diante de um espelho! O rei acatou a sugestão. O pássaro azul olhou sua própria imagem, cantou sua tristeza e dançou até se extinguir.” A questão é que, depois de acabar com ela, Yinniang resolve abdicar de seus mandamentos de assassina, permanecendo fiel ao seu desejo. Ao romper a máscara, verte um fluxo libertário congênere à verdade como desvelamento. Não acredito que seja a melhor alegoria cinematográfica. Porém, neste filme, se a falha é indelével, o que resta transborda em cintilância.       

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