Amor Pleno (To the Wonder), de Terrence Malick (EUA, 2013)

agosto 30, 2013 em Em Cartaz, Victor Guimarães

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A captura do fluxo
por Victor Guimarães

Amor Pleno, ouvimos a voz de Olga Kurylenko, em meio às imagens que passam velozmente (a emular um filme de viagem doméstico): “Eu me fundo na noite eterna”. A frase e o procedimento que a faz existir no filme são como um signo-síntese do que virá: a partir de então, veremos algumas situações ficcionais que retratam o turbulento amor de um casal – entre a França e o meio-oeste dos Estados Unidos –, fragmentadas à exaustão e organizadas por uma montagem que aposta no fluxo incessante das imagens, recobertas por um substrato metafísico que se manifesta em uma onipresente voz <over e na música grandiloqüente que acompanha todo o filme. A certa altura, duas outras figuras serão acrescidas ao caldeirão imagético-sonoro de Malick: a ocasional amante loura (vivida por Rachel McAdams) e um padre (Javier Bardem), espécie de emissário da transcendência religiosa que a montagem convocará de forma paralela ao curso principal, como já acontecia em A Árvore da Vida (2011).

Quando Stéphane Bouquet, no início dos anos 2000, cria o conceito de “estética de fluxo” – para dar conta de filmes como Sombra, de Phillipe Grandrieux, Gerry, de Gus van Sant ou O Intruso, de Claire Denis, que tanto inquietavam os Cahiers du Cinémanaquele período –, o crítico tem em mente alguns dos aspectos que definem a fatura de Amor Pleno, e que apontam para a dissolução de algumas noções muito caras ao cinema de ficção. Como falar de planos ou sequências, quando a construção encadeada de blocos narrativos não existe mais? Como falar em mise en scène, quando a cena é substituída pela livre circulação das imagens?

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Em Amor Pleno, as presenças da voz over e da música incrementam a ideia de fluxo, e fazem com que o sentido da composição do quadro, o momento do corte e a própria noção de ritmo se tornem francamente aleatórios. Em uma caminhada do casal por uma paisagem francesa paradisíaca, um pedaço qualquer de corpo na tela pode ser sucedido por uma sombra na parede ou por um plano geral de uma igreja, pelo olhar perdido de um dos personagens ou por um beijo entre os dois. Quando a presença de Rachel McAdams se faz sentir no filme, trata-se menos de uma personagem do que de uma figura imagética fugidia, que aparece e desaparece no escoamento infinito dos signos.

No entanto, se convocamos a estética do fluxo para falar do filme de Malick – e o colocamos, intencionalmente, ao lado de grandes cineastas contemporâneos –, o desejo é justamente o de enfatizar o tamanho do engodo que consiste em convocar esses mesmos procedimentos em uma obra como Amor Pleno. O que o filme conserva do fluxo é somente o que há de mais potencialmente conservador nessa estética: a dissolução do conflito, a neutralização da ameaça do fora-de-campo, a aposta insensata na autossuficiência das imagens. Malick abole a noção de plano, dinamita a narrativa, aposta na circulação das imagens não para fazer valer a intensidade das durações do mundo (Apichatpong) ou para proliferar as potências fragmentárias que inauguram um novo modo de engajamento do espectador (Grandrieux), mas apenas para capturar novamente o fluxo, amansá-lo, torná-lo palatável aos olhos e aos ouvidos (a beleza fácil e inofensiva das imagens, a música como um analgésico barato), ao mesmo tempo em que impõe a tudo o que vemos uma aura cristã repressora. A confusão aparente é apenas um pretexto para um encarceramento mais sutil, que sufoca o espectador em uma armadilha em que o sentido último está sempre lá – latejante, porém dissimulado.

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Tudo o que há de poderoso no fluxo – principalmente a ideia libertadora de fazer valer as imagens mais por suas modulações do que por seus significados, como esclarece Luiz Carlos de Oliveira Jr. em “A mise en scène no cinema: Do clássico ao cinema de fluxo” – é anulado pela montagem, que faz questão de colocar os signos flutuantes a serviço de uma significação que é sempre exterior ao que vemos (e que aponta para uma transcendência neutralizadora das potências imanentes do cinema, para um esoterismo banal e paralisante, para o sentido da vida, to the Wonder). Não se trata, assim, de advogar uma rejeição à estética do fluxo enquanto tal, apostando em uma nostalgia da pureza da mise en scène ou da decupagem clássica, mas de recusar sua captura por um olhar não apenas anestesiado, mas produtor de anestesia. Se Dias de Paraíso (1978) ainda era um filme que fazia da beleza um ponto de contato do espectador com algo que lhe excedia – transcendência tornada concreta, a ponto de constituir uma ameaça real à estabilidade dos sentidos –, o embelezamento cosmético de Amor Pleno é desprovido de qualquer desafio estético.

Mas se essa é uma questão para o cinema, é também algo que o excede, e cujo poder despolitizante ainda resta por medir. Pois Amor Pleno é o último estágio da submissão do campo artístico ao fluxo imaterial do capitalismo contemporâneo, que Cronenberg constatava com precisão cirúrgica – e profética – em Cosmópolis. Num tempo em que “a função narrativa do dinheiro já não funciona” – como dizia a personagem de Samantha Morton em um dos encontros a bordo da limusine –, apostar em uma falsa liberdade da circulação das imagens é operar no compasso de um sistema que dissimula suas novas modalidades de dominação. Quando o capital se desmaterializa e circula “livremente” entre as fronteiras – às custas da imobilidade dos que não podem flutuar –, um cinema que adota à risca seus procedimentos só pode duplicar seus efeitos. Se um dia o inimigo foi a linearidade da narrativa clássica, agora é preciso combater a dispersão anestesiante e reacionária que contamina tanto a publicidade dos telefones celulares quanto um cinema que disputa um lugar na arte.

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