Bem Vindo a Nova York (Welcome to New York), de Abel Ferrara (França, 2014)

outubro 4, 2014 em Colaborações especiais, Em Cartaz

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Pornografia da desgraça
por Francis Vogner dos Reis

Logo no início de Bem Vindo a Nova York, em uma coletiva, Devereaux (Gérard Depardieu) responde à pergunta de um jornalista: “por que o senhor aceitou interpretar esse papel?”. Devereaux: “porque eu não gosto dele. Eu não gosto de atuar, prefiro um sentimento, mas eu não sinto essa pessoa. Não gosto de homens políticos, não gosto de política, sou um individualista, um anarquista”. É Devereaux e Depardieu ao mesmo tempo que respondem a essa pergunta. Em ambos os casos, o personagem e o ator, o corpo é emprestado a um outro que não ele mesmo, um outro que não lhe diz respeito. É um corpo permissivo. Não tem dúvidas e nem crise. Constata uma inevitabilidade no cumprimento de um papel que não lhe apetece. Não encarna a verdade, mas a mentira. É uma postura fria e pragmática se contraposta à histeria (à verdade) típica de outros personagens da obra Ferrara. A histeria, como agonia da dúvida, questionamento do “eu” direcionado a Deus como sujeito, era a condição lancinante da vampira Kathleen em The Addiction (1995), do cindido Mathew em Blackout (1997), do desesperado Ted Younger em Maria (2005) e, sobretudo, do policial mau em Vício Frenético (1992), que se contrapõe diametralmente a Devereaux. Ele não distingue corpo e espírito; é afetado integralmente pelos seus atos, pela miserabilidade alheia. Sua depravação consome seu espírito e sua carne padece. Devereaux, porém, mantém uma reserva. Não é afetado por nada; logo, a fragilidade – o sofrimento – que seria a própria origem da força não existe, porque Devereaux encarna o estado das coisas, diferente do policial mau de Keitel, que está atrelado à contingência e ao caos. Sua fraqueza lhe abre à graça; a fortaleza de Devereaux o condena à gravidade. Sendo assim, se Devereaux não é afetado por nada, logo sua fortaleza é o triunfo da mentira.

Os termos usados aqui são fortes e categóricos: mentira, verdade, graça, “eu”, essência, além de, claro, Deus. Quem pede esse vocabulário é o filme, não para determinar quais dessas palavras respondem com exatidão ao que se coloca em jogo, mas porque compõem esse painel de paradoxos. Mas não fiquemos em uma abstração teológica de conceitos, e impliquemos teologia em elementos – imagens e ideias – muito concretos. O corpo, por exemplo. O corpo nu, inclusive, e as circunstâncias deste corpo, o modo como existe em um espaço. Se o corpo (e a nudez) é inseparável de uma marca teológica, o espaço em que ele existe – um espaço tensionado por um poder cruel, funcional, ordenado e “legal” – responde a forças visíveis em objetos, relações e protocolos de encenações sociais, e, claro, em um certo tipo de iconografia. Ferrara aqui troca a iconografia cristã, presente em boa parte de seus filmes (ainda que muitas vezes de maneira enviesada), por uma iconografia da democracia moderna e seus ídolos: os monumentos que cristalizam “verdades” históricas, o dinheiro e a funcionalidade pragmática dos espaços e dos prédios públicos.

Há uma elegante coragem do diretor em chamar as coisas pelo nome e mostrá-las de um modo que a estilização não corresponda estreitamente a uma mediação moduladora de sentido – traço distintivo de um grande cineasta, em especial, de um grande cineasta americano, como Samuel Fuller ou mesmo John Ford. Essa elegância não se dá por um refinamento estilístico que tende a dourar a pílula, mas antes, um desejo que existe apenas ao se chocar contra os limites do corpo, da identidade, do real, da forma. Ele tem o mérito de criar imagens de sentido direto, em que cada elemento ou corpo imponha sua presença, ratifique uma ausência e desvele um jogo de forças abstrato por meio de atos concretos, livres, bruscos, terríveis ou misericordiosos. São atos nus em sua violência primordial. É essa objetividade cênica explícita, ainda que não seja obscena, que dá materialidade a conflitos transcendentes. É uma transcendência que só se dá na imanência, uma diafania, ao invés da epifania (mania new age do cinema contemporâneo). É um cinema adulto: mundo desencantado onde os personagens não obedecem às leis dos sonhos.

Se testemunhamos a radicalidade da carne no cinema de Ferrara como emanação simples e formal de uma “essência nua”, meio perfeito entre o objeto da mente e a coisa real, é o cogniscível e o inapreensível do sagrado que reveste corpo e experiência de sentido. Ferrara depreende em Bem Vindo a Nova York uma outra noção – perversa – de sagrado (e do corpo como sua imagem total e imperfeita) que rege um procedimento de ação e um estado no mundo. Se em outros filmes Nova York se constitui a partir da purgação da depravação moral e social, aqui é quase como uma “cidade sagrada” (uma Jerusalém, um Vaticano, uma Meca, um Monte Athos) na qual se erigem ídolos e monumentos às divindades, liturgias e obstinações sacerdotais em nome de um “Outro” onipresente.  Devereaux é este sacerdote obstinado e instrumento de doutrina (como boa parte dos sacerdotes que respondem por instituições) na qual o culto se emancipou de todo objeto. E, radicalizando: mártir sem martírio, um ascético sem metanóia, a encarnação de um deus sem misericórdia, que não se identifica com o corpo frágil moral (o corpo crístico), mas com o corpo opulento, que afirma seu poder temporal e que não se deixa afetar por nada. Walter Benjamin e Giorgio Agamben nas suas abordagens teológicas do capitalismo concordariam: Devereaux é a encarnação deste Deus, o dinheiro. Mas não sejamos tão simplistas na afirmação. Falamos do dinheiro em um aspecto mais amplo, como fundador de civilização, como figuração de valores, que atravessa um sistema jurídico e legal, que, mesmo que não estejam subordinados diretamente ao retorno monetário, erigem suas bases em uma sociedade estabelecida sobre a implacabilidade do lucro e do crédito.

A apresentação da cosmologia deste sagrado se dá na abertura: nos planos dos monumentos da democracia americana – estátuas canonizantes de Abraham Lincoln, George Washington, Benjamin Franklin – nas cédulas de dinheiro que Ferrara mostra sendo fabricadas e, depois, numa reprodução em grande escala – entre as colunas neoclássicas de um prédio público – dinheiro como iconografia de culto ao som da música “America, the beautiful”, música ruim, é verdade, que neutraliza qualquer possível solenidade que essa sequência pudesse ter. É a gravidade: Ferrara deixa todas as coisas no nível do chão. Ele, ainda bem, não é Martin Scorsese.

Welcome to New York

Pornografia

Uma das tendências da ficção televisiva contemporânea, em especial a americana (House of Cards, The Good Wife), é a de colocar a nu a perversão dos poderosos e os jogos de força que tecem a trama dos bastidores (na alcova, nos escritórios) e encenam o teatro das aparências que, não raro, se dá nas tribunas dos telejornais, dos juízes ou dos políticos. Geralmente, as falas ágeis e as situações exemplares dependem muito do modo como o texto é dito e do timing dos planos e contraplanos que constroem disputas retóricas eficientes, persuadindo o espectador pelo charme. Essas estratégias garantem a adesão de quem vê, e goza, com nojo e fascínio, o sensualismo abjeto do poder fabulado. Mas explicar o fenômeno deste fascínio via perversão é psicanálise vulgar. Diz pouco. Fazer a anatomia do poder por meio do escândalo dos desvios sexuais e morais da intimidade de gente graúda é, provavelmente, o maior exercício público de fetichização do poder, e seus ídolos de primeira ordem e grandeza: o capital, a política. Em Bem Vindo a Nova York, em princípio, a intuição de Ferrara o leva pelos caminhos das mesmas taras coletivas fabuladas na TV. Não só o escândalo, mas também a objetividade típica da TV o atrai.

Abel Ferrara passou pela televisão na década de 1980 e “executou” o serviço de diretor de séries, sem traço e nem gênio, eficiente em filmar a literalidade da ação, a precisão do gesto e a displicência dos atores falando em linguagem intransitiva e rasa.  Cenicamente tudo à vista, pouco a saber, a surpresa vinha no enredo e no uso da música. Ferrara então, tinha vindo do cinema B e de seu pragmatismo poético, tal como Samuel Fuller ou Joseph H. Lewis.  Mas antes da eficiência da cena da TV e do pragmatismo expressivo do cinema B, um “intercurso” profissional foi decisivo para seu trabalho: o cinema pornográfico em 9 Lives of a Wet Pussy (1976). Não nos aprofundemos na incursão de Abel Ferrara na pornografia underground, mas retenhamos seu legado na obra do diretor. A pergunta: na sequência de sua incursão pela pornografia, o que restou dela nos filmes subsequentes? Não é fácil dizer. Apontar seu espírito “barato” (exploitation) não resolve grande coisa. O que talvez, em uma aproximação forçada, Ferrara tenha herdado do cinema de sexo explícito é justamente o destacamento central do obsceno, a ausência de velamento de qualquer tipo de imagem, o modo como os corpos reagem às determinações da cena, a atenção a estes corpos e a atividade dele como centro gravitacional único, sem a “veste da graça”, corporeidade nua e natureza caída (lembremos que estamos falando em Ferrara, logo os fundamentos teológicos). Se a mise en scène pode ser definida, grosso modo, como ritmo interno de um plano na relação dos corpos em um espaço, a pornografia pode ser considerada a mise en scène sem mistério e sem significação. Sem marca teológica. É nesse paradoxo que se dá o “corpo em cena” em Ferrara.

As três primeiras sequências de sexo em Bem Vindo a Nova York (que duram quase trinta minutos), exemplificam bem isso. São a explanação sem melindres do funcionamento do poder de Devereaux e o delineiam com precisão explícita exemplar, porque nunca se lançam à auto-explicação introdutória – o que dá certo tom e espírito de pornografia – do mecanismo moral do personagem e sua concepção de poder. Se o poder de Devereaux é pornográfico, a cena e a dramaturgia mínima (não de motivações, mas de corpos) implicam a obscenidade. Atos formais e físicos luxuriosos são esvaziados de sentido. Nesses trinta minutos, três sequências que misturam sexo e trabalho efetivam a dinâmica existencial do personagem, suas relações e sua figura de poder.

Na primeira, uma comissão de fiscalização (ou algo do tipo) é levada à sala de Devereaux por uma loira, de quem cada movimento – e cada passo – é programado para ser lânguido. Lá dentro, outras garotas vestidas formalmente, com essa mesma desaceleração de movimentos e voz que aspiram a uma sedução eficiente, porque direta, se colocam no entorno dos homens de negócio e uma delas aplica uma massagem em Devereaux. A insistência de uma das garotas em sentar no colo de um deles e oferecer sexo irrita o homem que diz “estou trabalhando”, ao que ela replica “eu também”. Ferrara tem o cuidado de descer a câmera e enquadrar a mão do homem que repele a garota: ele acaricia sua perna brevemente, mas não se rende à sedução. Não se rende ao jogo, mas serve à encenação – uma encenação que tem Devereaux como centro irradiador. O que está em jogo aí não é, obviamente, a sedução sexual, mas a volúpia do poder. É a determinação de quem orienta os corpos, quem controla o espaço de ação, a cena. Quem tem os títeres nas mãos. A cena é importante porque ela cristaliza a autoridade herodiana do personagem encarnado por Depardieu.

Na segunda e na terceira sequências, ambas de orgias no quarto de hotel, a relação não é mediada pelo jogo de cena, como na primeira. As garotas são prostitutas, Devereaux e seus convidados são os clientes. É sexo e excesso. É a primeira vez que o protagonista aparece pelado: gordo, excessivo, de uma intensidade compulsiva. Depardieu, ator de um cineasta tão eminentemente físico como Maurice Pialat, um corpo de vitalidade e bomba de energia caótica como vimos em Loulou (1980), em Ferrara é uma deformação de sua própria persona do passado.

Depois que o trio de prostitutas parte com seus convidados, sobe para o quarto uma dupla de garotas que fazem sexo pra o voyeurismo ativo de Devereaux. Se na primeira sequência havia o jogo, aqui o hedonismo tem a eficiência da performance bem executada. Tudo no espaço evoca utilidade. É um hotel de Nova York que não lembra em nada a arquitetura mítica de um Four Seasons ou um Waldorf Astoria. É a arquitetura funcional, os espaços compactos, uma modernidade asséptica e impessoal. Não se parece em nada com um lar, mas sim um lugar sem identidade. Todos os espaços no filme, até mesmo a casa em que Devereaux fica em cárcere domiciliar, evocam essa impessoalidade. No cinema de Ferrara nenhum espaço é um abrigo existencial, nenhuma imagem gera conforto nem que seja simbólico – Nova York, por exemplo não tem nenhum traço do encantamento que se tornou convenção no cinema. Tudo existe na sua mais obscena funcionalidade. Tudo está à vista, nada está velado.

Quando pela manhã, depois do banho, Devereaux ataca, sem muito sucesso e com uma insistência patética, a simplória camareira estrangeira que em nada se parece com as prostitutas esculturais do dia anterior, entendemos que seu apetite não é necessariamente fetichista, mas uma perversão famigerada por consumir – onipotência vampirística – qualquer mulher, inclusive a esposa e a própria filha (essas de maneira não sexual). Seria seu direito natural, sua pulsão de morte. A camareira parte e, sem traço de culpa ou preocupação, ele sai do hotel. Só que, diferente das sequências anteriores, dessa vez ele cometeu um crime. Permaneceu impassível.

Esses trinta primeiros minutos delineiam a dinâmica de um universo. O obsceno é a marca do mal contemporâneo. Ele não é dissimulado; é explícito. Cínico. Diz a que vem e executa seus procedimentos sem reguladores éticos ou morais. O próprio teatro social permite isso. A lógica criminal é civilizacional e integrada ao tecido social. Como escreveu Nicole Brenez, para Ferrara, a máfia e o capitalismo são as duas lógicas criminais do século.

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Desgraça

Em quase todos os filmes do diretor, ao menos nos mais célebres, os indivíduos se purgam em danações hediondas. São almas desviadas de seu propósito original em uma imanência agonizante na qual Deus não se faz presente, não responde, não intervém… não existe, em suma. Nesse esvaziamento do sagrado, nenhuma imagem ou símbolo carrega em si mesmo qualquer fagulha do transcendente. As iconografias religiosas – como, por exemplo, em Vício Frenético, Maria, Os Chefões (1996), The Addiction (1995) estão esvaziadas de significado, vaticinam uma ausência. O que se impõe, geralmente, é a presença dos personagens, dos corpos, que irradiam e ao mesmo tempo concentram a força dos planos. É por meio destes corpos, intensos e emocionais, que o diretor cria uma perspectiva singular de um mundo genuinamente trágico. Ferrara ainda acredita no sentido da tragédia. Entretanto, ao acompanhar a “ascese” (usamos o termo com muitas aspas) de Devereaux testemunhamos uma inversão inédita na obra do diretor. Se a vampira Kathleen em The Addiction e o policial mau em Vício Frenético são exemplares de um ascetismo que mira a metanóia (a conversão) e crê em um significado último, a via crúcis de Devereaux não lhe afeta em nada, não abre sequer uma fissura por onde a graça possa passar. Nada é profanado, no caso: o sagrado seria esse poder autofágico, marca de toda civilização na História, mas com características específicas no capitalismo tardio. Nos filmes cristãos de Ferrara, a profanação do sagrado “desativa esse sistema”. Aqui, isso não é possível. Não há redenção alguma. Nada resiste para o significado.

Preso por policiais já no embarque para Paris, Devereaux passa por todos os constrangimentos aos quais qualquer preso comum é submetido: as algemas apertadas; as celas lotadas; a hostilidade do sistema carcerário; a suposta igualdade de direitos na comparação com presos miseráveis. Um policial diz, “aqui você não está na França, está na América”. Nem os policiais nem os presos o respeitam. Essas sequências, filmadas em espaços exíguos e limitadas à tentativa do personagem em emplacar sua autoridade (“eu tenho imunidade diplomática”) e à hostilidade dos policiais, estabelecem, aqui, diferente das primeiras sequências, a mise en scène do poder da lei e da ordem. Os policiais executam um papel no teatro do sistema democrático, um poder comezinho de autoridades que se espremem em uma delegacia que se parece um almoxarifado ou um depósito de computadores velhos. Esse é o lugar deles. É ai que eles se aplicam a lembrar Devereaux que ele está subordinado a um sistema.

Paradigmática é a cena em que Devereaux é levado por uma dupla de policiais frente a uma janela para tirar a roupa. O personagem se intimida, mas seu orgulho é maior: seu corpo – grande, gordo – resiste à humilhação. O seu corpo é o exato oposto da desintegração física do corpo crístico (magro, frágil, revestido de uma luz quente de uma solidão de morte) de Harvey Keitel em Vício Frenético. O corpo de Depardieu, frente à luz fria da janela, é impassível, impõe sua presença opulenta. Ele ainda olha para os agentes da lei que o humilham como empregados carcerários que estão temporariamente lhe dando ordens. Se ele resiste a algo, é ao sentimento humano de vergonha. Ele, nesse momento, interpreta o papel do detento, mas mantém no olhar a expressão “anarquista coroado” (Depardieu não é tão bom desde Police, de Pialat). Mas detalhe: essas cenas fazem parte de um jogo que ele sabe estar jogando. Não somente os policiais, mas o tribunal e a sentença judicial são dados contabilizados como etapas de um jogo do qual o protagonista sabe que sairá impoluto.

A ele é permitido, no fim das contas, que fique em cárcere domiciliar. Sua absolvição chega a nós não por meio de uma decisão judicial, mas pelo acolhimento de sua figura na alta sociedade de Nova York. As mulheres são atraídas por ele, como a jovem que deseja trabalhar no FMI e que se sente realmente excitada pelo seu poder, ainda que sua figura – mais moral do que física – seja asquerosa. Quem pelo mal se fascina toma parte dele. Até então, o filme ficara restrito à performance pública de Devereaux, mostrando pouco de sua intimidade familiar. Nela, seu procedimento é diferente: não é o poder explícito, mas o poder velado pela mentira que logo vem à luz. Sua esposa também está atrelada, seduzida, pela figura que reconhece como perversa. O universo aqui parece submetido à dinâmica não só da figura de poder, mas de quem a ele se submete e dele toma parte.

Sabe-se que a história de Bem Vindo a Nova York é baseada em um dos maiores escândalos recentes, que é a acusação de estupro de Dominik Strauss Kahn, ex-presidente do FMI e, na época, possível candidato do Partido Socialista Francês à presidência da França. Strauss-Kahn era ao mesmo tempo a opulência do capital e o poder político legitimado, contraditoriamente, por uma legenda de centro-esquerda. É esse estranho cruzamento entre política, capitalismo financeiro e o legado utópico esvaziado (o socialismo francês, as utopias do maio de 1968) que o paradigma Strauss-Kahn constituiu. Gerard Depardieu faz o personagem equivalente a Strauss-Kahn. O próprio Fundo Monetário Internacional com seu discurso “progressista” de assistência aos países pobres é, em primeira e última instância, o lucro com a miséria. Há um momento em que parece haver um exame de consciência de Devereaux em que ele trata justamente deste ponto crítico. Um monólogo em off no terraço à noite. Fala de sua “fé”. Não crê em um Deus mas, nas salas de aula, como aluno e professor, encontrou um deus. Seu relato abrange as utopias de 1968 e a sua falência, transformadas em pragmatismo neoliberal. Coptadas pelo capitalismo. Pervertidas. Da utopia do fim do capitalismo à realidade do capitalismo avançado. Seu deus se converteu em poderes pessoais ilimitados. Poder forjado pelo dinheiro.

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