Embora erguido sobre muito sangue indígena, o Brasil filmado por A Febre é um país em ruínas: desemprego, desmatamento, falência das fábricas, transporte público precário e hospitais abarrotados. Em lugar da formação de uma nação pujante e industrialmente desenvolvida, o Brasil teria se tornado um mero exportador de produtos primários (ou tão somente “montados” no país) e importador de alta tecnologia das grandes potências. A produção cede lugar à circulação na mesma medida em que o tipo ideal do trabalhador brasileiro não é mais o operário, mas o trabalhador do setor de serviços – tal como o indígena Justino (Regis Myrupu), até pouco tempo operário e agora vigia de cargas no porto de Manaus.
Ali no porto, zona de fluxo e passagem, são as máquinas que verdadeiramente trabalham. Nas imagens do expediente de Justino, o volume se desmaterializa e os containers se movem numa abstração generalizada e fluida, tudo facilmente programável e amplamente controlável. Filmar o trabalho não é mais filmar o trabalho fabril, mecânico e repetitivo – como nos clássicos O Homem que Virou Suco (João Batista de Andrade, 1981) e Garotas do ABC (Carlos Reichenbach, 2003) – mas a função de quem só fica observando para o caso de alguma emergência. Como afirma o próprio Justino ao reclamar da obrigação de trabalhar armado: “sou um caçador sem presa”. Essa falta de objeto é a contraparte da constante preocupação de que ele pode ser demitido a qualquer momento (não à toa, o protagonista precisa recusar os apelos do irmão para que se ausente do trabalho por uns dias para participar da Festa do Dabacuri em sua comunidade nativa).
Além do medo de perder o emprego, o invólucro que pressiona o protagonista está inscrito na própria ordem de acontecimentos que estrutura o filme: trabalho; vestiário; trajeto para casa no ônibus lotado; jantar em família; sono. Essa sequência se repete durante todo o filme – quase como se o filme documentasse a rotina do personagem – e a única novidade relevante é a visita dos familiares de Justino. Se isso poderia despontar como uma conformação violenta do personagem ao mundo, a dureza material da vida é atravessada por opacidades que des-limitam os personagens. A figura de Justino é oxigenada pelo fundo indígena que emerge das histórias ancestrais que o ancião narra à família. Enquanto isso, Vanessa (Rosa Peixoto), filha de Justino, prestes a se transferir para a faculdade de medicina em Brasília, tem um futuro aberto e imponderável – reforçado pela inteligente opção em não retratar fatos importantes da vida dela (o seu namorado que sequer vemos), deixando claro como ela mesma tem uma vida que extrapola o filme.
Estamos diante de um filme que aborda o universo indígena no qual os personagens principais jamais se reduzem a meros sismógrafos dos efeitos culturais e sociais sobre a idealidade nativa – problema evidente de outros filmes semelhantes, como Antes o Tempo Não Acabava (2016) e Ex-Pajé (2018), em que a iconografia indígena força os sentidos que não emergem do drama e os personagens parecem porta-vozes de comentários que estão fora deles. Sem apelar a toda sorte de signos que atualizem, ao longo do filme, as dicotomias entre tradicional/moderno, rural/urbano, branco/indígena, o filme de Maya Da-Rin vai em busca de uma beleza mais difícil: posiciona a câmera no espaço e espera que a duração do plano forje, na própria pele do filme, a interação rugosa entre os personagens e o ambiente.
Justino não perde a chance de criticar as comidas do supermercado ou os remédios da farmácia, mas esses comentários, a princípio exotizantes, jamais ganham predominância sobre o corpo. Em outras palavras: a tese jamais se sobrepõe à presença do personagem em cena. Os sentidos nunca estão estabelecidos de antemão, mas são construídos dentro da própria dinâmica da cena – os movimentos de câmera, os deslocamentos dos corpos no espaço cênico, as escolhas do ponto de vista e, acima de tudo, a interação entre todos esses elementos. Tudo depende de como Justino habita o espaço da casa, tira a camisa ao chegar em casa, pronuncia as palavras em português. Mesmo que faça uso do plano fixo e geral, A Febre só faz o mesmo durar até o limite depois do qual o enquadramento pesaria demais sobre os personagens, trocando para um plano fechado no rosto de Justino – procedimento no qual a decupagem opera uma identificação espiritual do filme com o personagem.
Assim como a duração dos planos fornece o tempo necessário para que os personagens se desloquem e as escalas da imagem se alterem, também os diálogos se alongam pelo tempo necessário à profundidade dos assuntos. Falado predominantemente na língua indígena, a distância entre o português e o idioma nativo marca o abismo entre as duas culturas, e para ultrapassá-lo não basta que o espectador leia as legendas. Há um sentido profundo de A Febre que só é compreendido caso levemos a sérios as longas conversas que os personagens – em especial Justino e sua família – realizam entre em si, onde mais que uma identidade indígena readquirida, é um fundo indígena que vem à tona. Daí que os segredos do filme são decifrados lentamente, ao mesmo tempo em que o mistério é conservado até o fim.
Ao tatuar os significados do filme no corpo de Justino, é também ali que se manifesta primeiramente o desconforto de Justino com a realidade social a que está submetido. Um sintoma que começa no corpo quente e vai desaguar nos constantes delírios do protagonista ao escutar vozes na mata e sonhar com grupos armados que bem lembram os bandeirantes paulistas. A crescente febre de Justino, uma vez contraposta à inabilidade dos médicos e dos remédios em detê-la, é o pulso necessário para que Justino busque para si uma atualização territorial, social e espiritual no momento mesmo em que sua filha se muda de vez para Brasília. Quando assistimos Justino enfim partindo de volta para a sua comunidade ao final do filme, não estamos na chave de uma harmonia reconciliadora com a natureza. Assim como os novos movimentos indígenas falam em autonomia e não independência, o que A Febre almeja é fustigar uma sociabilidade em que os corpos, as subjetividades, as formas de entender e estar no mundo sejam retraduzidas para além das condições atualmente impostas.
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