Estou me guardando BARRA MINIATURA

Melancolia que nos confina

Em seu primeiro documentário, Marcelo Gomes revisita uma cidade que frequentou ainda criança, quando viajava junto ao seu pai, funcionário público que fazia inspeções fiscais nas cidades do interior de Pernambuco. É assim que chegamos em Toritama, cidade que recentemente se tornou famosa pela produção de jeans, o mesmo local que Marcelo, ao retornar, logo admite: “eu tento reconhecer o lugar, mas nada parece igual”.

Com efeito, o lugar que ele guarda na memória de infância “era um mundo rural de feiras livres, plantadores de milho e feijão, criadores de bodes, quase nenhum barulho de carro e poucas pessoas na rua”. Uma vez diante da então capital do jeans, Estou Me Guardando Para Quando O Carnaval Chegar (2019) deseja assimilar o impacto da indústria têxtil e de confecção sobre os hábitos locais que, enfim transformados, tornaram Toritama bem diferente do lugar afetivo das lembranças do diretor

Para tanto, o filme basicamente assume uma dupla estrutura. Por um lado, recolhe entrevistas de trabalhadores e moradores locais que narram as circunstâncias do trabalho na indústria do jeans. Por outro, o diretor, através da voz em off e variadas decisões estilísticas, medita sobre o estilo de vida que então encontra ali.

No primeiro nível, ao empregar um olhar mais propriamente etnográfico, somos impactados pela propriedade com que os toritamenses descrevem a própria vida, totalmente atrelada ao destino produtivo da cidade. A maioria dos entrevistados trabalham em facções (espécies de fábricas de garagem nas quais o jeans é confeccionado) e são donos dos próprios equipamentos. Em outros casos, trabalham em regime flexível (ganham por produção) nas máquinas de microempresários que, até pouco tempo, também eram empregados de facções. De modo geral, são personagens orgulhosos por não terem “patrão” e por assenhorarem o próprio tempo (“quanto mais eu trabalho, mais eu ganho”). De quebra, também utilizam os próprios produtos que fabricam “para ficar mais elegantes”, como diz uma das personagens. São trabalhadores que, em suma, não tem nada a ver com uma certa idealização do brasileiro como sujeito que enaltece a dignidade do ócio, mas desdenha a atividade utilitária.

Em lugar do êxodo rural, “aqui virou São Paulo!”, afirma uma trabalhadora. Não é mais preciso emigrar aos centros urbanos, afinal, Toritama concentra nada menos que 20% da produção nacional de jeans. Para além dos trabalhadores “braçais” das facções, há o vendedor-blogueiro que comenta as grifes na internet; o jovem que aprendeu a usar máquinas complexas para desenhar as peças a laser; o Véio do Ouro que criou um estilo de jeans absolutamente singular.

A despeito de toda essa multiplicidade, à medida que o segundo nível reflete o primeiro, a capital do jeans vai se tornando mero índice da distância em relação ao antigo local que Marcelo Gomes conheceu. Desta vez, ao retornar motivado pela visão idílica e derivada das memórias de infância, ele se esforça em vê-las confirmadas na prática. Não por outro motivo, procura elementos supostamente orgânicos e comunais, tais como as pessoas sentadas na calçada; trabalhadores dormindo; a agricultora que não aderiu à indústria do jeans; o senhor com dificuldade em locomover o rebanho porque a estrada ficou movimentada. Disso, resultam não mais que entrevistas mornas e momentos sem grandes descobertas, onde nenhum dos personagens apresenta aquilo que Marcelo Gomes parece querer ouvir: uma crítica direta às transformações nos costumes locais a cabo da indústria do jeans.

No cinema documentário, por mais que uma ideia geral prévia à filmagem seja indispensável, a mesma deve ser testada na prática em meio aos encontros, acontecimentos e personagens de carne e osso. Ao não ver suas expectativas correspondidas, Marcelo Gomes passa, ele mesmo, a sobrepôr leituras subjetivas sobre os dados objetivos que as entrevistas apresentam. A subjetividade do autor se hipertrofia, a nostalgia se torna ainda mais pegajosa, e daí advém o julgamento implícito sobre os personagens que percorrerá toda a obra. Um julgamento que não é direto na carne, mas que se inscreve na montagem; na trilha-sonora; na organização da narrativa; na prevalência de uns personagens sobre os outros (caso de Léo); na decisão da mudança de registro ao final. Sobretudo, na voz em off do diretor que verbaliza seu ponto de vista pessoal sobre o universo retratado: da sua parte, o sentimentalismo patente com o inseparável lastro de verdade; do lado dos personagens, a ordenação impessoal e mecânica do trabalho que aparta os toritamenses da sua natureza mais profunda.

Marcelo Gomes lamenta porque, ao invés do silêncio que durava o dia inteiro, o barulho das máquinas lhe causa ansiedade. Agora, a casa onde dormiu com seu pai está repleta de máquinas. Já ninguém mais senta nas calçadas para esperar o tempo passar, pois até na calçada as pessoas trabalham, “o tempo coletivo tomado por um trabalho sem fim”. A principal feira da cidade mais parece um shopping center. A música que os jovens escutam é rap sulista e que só fala de ostentação. A repetição do trabalho também lhe provoca angústia. Se há luta de classes no filme, ela se dá entre o que Marcelo quer ouvir e o que as entrevistas revelam.

Enquanto os personagens exaltam o trabalho que exercem, o diretor faz o contrapeso ao destacar, por exemplo, os aspectos infernais do trabalho automatizado, como o barulho e a repetição. Isso, no entanto, nunca é feito durante as entrevistas, momento em que o diretor poderia entrar numa poderosa fricção com os personagens. Num momento particularmente forte, um dos trabalhadores comenta ao outro que eles estão desprotegidos, uma vez que o trabalho autônomo não garante os mesmos direitos do trabalho de carteira assinada. Porém, nos demais momentos, prevalece as intervenções frias e distanciadas, realizadas externamente pelo próprio diretor. O que dizer do momento constrangedor em que o diretor pergunta aos trabalhadores a respeito dos seus sonhos, enquanto põe uma trilha melancólica que julga cinicamente as respostas que então versam sobre dinheiro, ascensão na carreira, casa nova?

Por trás dessa pergunta, uma outra ainda mais fundamental: como se portar diante do deslumbramento que os personagens tem a respeito das relações flexíveis, e não raro precárias, que constituem o mercado de trabalho? Apressado em criticar os limites das formas de vida atuais, Marcelo Gomes se apega a um anti-neoliberalismo de almanaque em que a crítica, por mais que necessária e cheia de boas intenções, faz-se sem as devidas mediações ao caso brasileiro.

Deve-se lembrar que, como dizia Florestan Fernandes, que luta de classes no Brasil não ocorre entre capital e trabalho pois o fundo é mais embaixo: a briga se dá entre quem tem propriedade e quem não tem. Posto assim, é possível medir a transformação a cabo da indústria do jeans que ensejou, para frações consideráveis da população local, a superação de um fosso de pauperismo. E o mais importante: tudo isso através de uma cena social em que a escravidão, o mando senhorial e até mesmo o Estado assistencialista estão ausentes. Não por outra razão, estes sujeitos, até então privados de qualquer reconhecimento social, são tomados por essa “alegria necessária que há em alguém achar-se participando de uma comunidade cultural urbana, individualista, universalizante e internacional”, como escreveu Caetano Veloso em meio à industrialização de JK.

O corolário disso é a revolução na autoestima dos trabalhadores, resultando na insurgência do “autovalor” que enche o peito dos personagens, os mesmos que então exclamam, com boa dose de orgulho, que não trabalham para ninguém ou que seu rendimento é proporcional ao que produzem. É certo que essa emancipação neoliberal do patrão facilmente se confunde ao seu contrário (pensemos no motorista de Uber que trabalha doze horas por dia); que não somente o sucesso, mas principalmente o fracasso se torna culpa do indivíduo e não mais da superestrutura; que a inclusão pelo consumo dos anos petistas não alimentou os vínculos solidários e democráticos. Mesmo sabendo de tudo isso, há um traço de empoderamento dos novos sujeitos que um olhar apressado desconsidera. Em outras palavras: o mero apelo a vínculos orgânicos não está à altura, em termos de força, da identificação que os trabalhadores de Toritama tem com o empreendendorismo, entendido como modo de ascensão social e associado ao prestígio da autonomia individual.

Durante o curso no Collège de France em 1979, Michel Foucault insistiu como, enquanto a esquerda apelava a esquemas abstratos que faziam tábua rasa da realidade imediata, a direita se apossou da utopia através do elogio à liberdade, à criatividade, à iniciativa individual e ao risco. Já no Brasil contemporâneo, o crescimento do neopentecostalismo está diretamente associado ao discurso pautado por uma ética do sucesso individual, capaz de substituir o mito liberador da carteira de trabalho num mundo em que o emprego formal (e a vontade orgânica de classe) são cada vez mais raros.

Por isso, se a luta de classe persiste e estamos perdendo, há de se questionar quem apela a formas pré-capitalistas e assim abre mão de investir nos possíveis que agem no interior da própria “positividade” do neoliberalismo. As novidades do mundo do trabalho, sem embargo da precarização, abrem brechas e zonas de confluência entre os ideais civilizatórios e os fenômenos decorrentes desse novo arranjo. Toma-se como exemplo não apenas o dinamismo econômico baseado em inovação tecnológica (não seria cada facção uma startup?), mas sobretudo as subjetivações capazes de desafiar a ordem, como na narrativa de uma das trabalhadoras em que “o patrão faliu, os empregados compraram as máquinas e cada um montou sua facção”.

Para consumar a fórceps seu ponto de vista, Marcelo Gomes enxerga no carnaval uma saída para atestar que a antiga Toritama, cujos laços sentimentais e familiares se sobrepõem aos vínculos de interesse, ainda está viva. Na voz do diretor, afirma-se que os moradores locais não abrem mão de viajar para brincar o carnaval, mesmo que precisem vender os eletrodomésticos comprados com o suor do trabalho. A nova Toritama seria definida por um trabalho incessante que, ainda assim, é rompido com a chegada do carnaval – quando, finalmente, Marcelo filmará cidade vazia, semelhante a que conheceu ao lado do pai.

É muito visível, no entanto, que o diretor faz enorme esforço para destacar algo que, na realidade, não tem a mesma gravidade que o filme alardeia. Dito de outro modo: por mais que o diretor assinale como um dado estrutural e referente a todos os trabalhadores da cidade, vender tudo para brincar o carnaval tem conotação restrita, portanto sem força de torcer o arco narrativo como acontece. Ao perguntar para um grupo de jovens se alguém já vendeu objetos para viajar, a resposta é clara: – não! Do mesmo modo, os personagens das “facções” não aparecem na parte final, e os entrevistados não passam de um pequeno grupo que realmente tenta vender as coisas, os quais sequer sabemos se trabalham na indústria do jeans

A última cartada de Marcelo Gomes é, também, a mais questionável. O fato é que o realizador entrega a câmara para o personagem Léo, prestes a viajar, enquanto ele se compromete a fornecer as imagens gravadas junto à família durante o carnaval. O objetivo não é outro senão ressaltar, através do registro caseiro e íntimo, o ócio e o ambiente familiar, em detrimento do trabalho, como definidores da natureza mais profunda dos toritamenses.

O paradoxo é que Léo não parecia disposto a vender sua moto para viajar, então é o próprio Marcelo Gomes que oferece uma “colaboração” para a viagem da família em troca das imagens. Em uma obra que critica a mercantilização das relações e dos hábitos, não deixa de ser contraditório que as imagens finais tenham sido compradas. Muito embora, é certo, não passem de imagens que não acrescentam nada, senão a tentativa desesperada em dizer que a etimologia de Toritama, vocábulo que expressa “terra felicidade”, só pode se realizar fora das relações de trabalho que, ao menos por ora, melhor definem a cidade.

Não faz muito tempo que Marcelo Gomes escreveu um texto para a Folha de São Paulo em que frisava que “o bom diretor é aquele que tem os dois ouvidos bons”. Em Estou Me Guardando Para Quando o Carnaval Chegar, dá-se o oposto: em lugar da avaliação das possibilidades de vida nelas mesmas, a realidade é subsumida a sentimentos docemente anti-capitalistas, prenhes de motivações sinceras, mas inertes em incorporarem os elementos em disputa. A crítica, ao contrário, é gesto que se faz rente e sob a pressão das mutações do capitalismo, tratando de olhar os agenciamentos sociais “não a partir de uma universalidade ideal desacreditada, mas a partir das forças que neste presente pediam novos modos de existência, redistribuições de afecto, bifurcações da subjetividade individual e coletiva” (Peter Pál Pelbart).

Mais do que retirar elementos do atual que neguem a possibilidade de realização dos ideais civilizatórios, importa entender como leva-los a um modo particular de realização. É assim que se embaralha o horizonte de reconciliação entre os trabalhadores e a ordem econômica neoliberal, onde as estruturais desiguais e exploratórias persistem, embora mais bem maculadas do que antes, numa expansão inseparável da manutenção de zonas de pobrezas (e nas cidades vizinhas que não tem uma indústria do jeans, como estão as condições de vida?). Se o filme não olha adiante, é porque o apego ao passado é proporcional a pouca crença no futuro.


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