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Humanismo às avessas

As relações históricas entre o islamismo e a Europa são permeadas por um terreno de tensões bastante complexo, e entender como isso se compõe, se produz e se organiza é sem dúvida um grande desafio para a representação. O Jovem Ahmed, no entanto, isenta-se por completo do desafio, ainda que todas as suas escolhas pareçam continuamente convocá-lo como um compromisso primordial. A esperada segurança da abstenção torna-se a própria matéria-prima da armadilha sobre a qual o filme se instala. A raiz do problema está na escolha em centralizar a narrativa na experiência imediata de um protagonista que não pode ser dramaticamente compreendido sem um mínimo de interesse acerca de como esse quadro sociopolítico se infiltra na formação de sua subjetividade, sobretudo porque durante todo o filme seremos testemunhas de ações individuais que reverberam essas relações históricas, sem que tenhamos qualquer ideia de como elas se gestaram especificamente para aquele corpo.

O filme opta por começar in medias res, e o que esse artifício narrativo reflete, neste caso, é justamente os limites do humanismo universalista que atravessa os filmes dos irmãos Dardenne: ao renegar o relacionamento específico entre Ahmed (Idir Ben Addi) e o islamismo, no sentido de como e por que essa intimidade veio a se formar para ele, o filme parece assumir que esses disparadores são mais ou menos equivalentes para qualquer jovem muçulmano radicalizado e que por isso prescindem de uma contextualização contingente – há uma certa ideia de “radicalização intrínseca” subjacente. De alguma forma, é um argumento fundamentalmente generalista, como se fosse apenas mais uma tentação da violência e mais uma devoção ao divino como tantas outras. Ou seja, é não só um problema de política, mas principalmente um problema de drama. Somos alienados do processo de formação daquilo que baliza a maior parte do contato que temos com a personalidade e com as ações de Ahmed.

Como é de praxe em narrativas que começam in medias res, há alguns diálogos entre os personagens que tentam iluminar as frestas de um passado não apresentado, mas, em O Jovem Ahmed, esses comentários nunca conseguem realmente dar conta de compreender o vigor inquebrantável com o qual Ahmed se dedica às suas convicções. Chega a ser contraditório: é um filme que, em princípio, o toma mais como um sujeito histórico do que como um sujeito psíquico, ainda que sua estrutura narrativa e estética de observação detida sobre um cotidiano de gestos e olhares seja a todo momento a sugestão do contrário. Em algumas cenas, no entanto, na observação de intimidades que se criam por esse cotidiano, os diretores parecem realmente estar a par do potencial e dos sentidos da sua estética, e talvez elas sejam ressonantes especialmente porque o seu valor maior está implicado na tensão imediata entre os corpos e não tanto nos significados que se articulam para a conjuntura dramática do filme. São nesses poucos momentos preciosos, como na cena com a mãe (Claire Bodson) no reformatório ou nas cenas mais íntimas com Louise (Victoria Bluck), que o filme é capaz de vislumbrar uma medida de singularidade no relacionamento de Ahmed com as demandas do islamismo. Afinal, no fim das contas, O Jovem Ahmed é um filme mais sobre as formas imediatas com que o corpo reage ao mundo do que qualquer outra coisa, e as cenas com Louise, por exemplo, são, para o protagonista, a pura expressão da sua dificuldade reprimida de se orientar na fronteira entre as imposições corporais que as suas convicções lhe colocam e os desejos pulsionais que o seu corpo produz.

Em suma, é um conflito entre o que queremos instruir o nosso corpo a ser e o que ele é instintivamente. A cena em que o protagonista tenta assassinar Inès (Myriem Akheddiou), sua professora, é sintomática dessa ideia: desde o preparo para o evento – embalando a faca adequadamente, escondendo-a cuidadosamente – até a chegada no prédio, a sua firmeza é tão inabalável quanto as suas convicções, mas no instante em que ele se depara com sua vítima e com a realidade material, corporal da sua missão, sua primeira reação é recuar, jogar-se contra a parede em temor. Por mais que ele tenha se aplicado piamente para internalizar o processo e o significado da missão, para não hesitar, há uma dimensão de resposta imediata do corpo que ele é fisicamente incapaz de domar. Ele para, por um momento, como que para se reconscientizar, para dar um reboot, na tentativa de reprogramar o seu corpo. A cena é uma manifestação bruta das diferenças de velocidade entre a consciência e o instinto. O papel central que a sequência desempenha para o filme – que a colocará como conflito-chave a ser desdobrado – é emblemático justamente porque ela é uma dupla evidência de fracasso para o protagonista: em superfície, o fracasso no cumprimento da missão, porém, mais profundamente, o fracasso por perceber que o seu corpo está em descompasso com as suas convicções. Ele passará o resto do filme tentando construir essa sintonia, tentando acreditar que ela pode existir. Ele assimila a severidade do fracasso pois reconhece para si mesmo que a verdadeira crença, a verdadeira convicção é uma forma de corporalidade mais do que um modelo de ideias – e não é por acaso que o filme é muito mais focado na relação entre o corpo e os rituais do que na relação entre o sujeito e as ideias.

No geral, o filme é relativamente eficaz em lidar com as tensões através do corpo, em observar em minúcias como um corpo age e reage diante do afetivo, do inesperado e do urgente, mas ao mesmo tempo parece perder de vista a complexidade da política que envolve e atravessa esses corpos. O conflito que estrutura a narrativa se resume à tentativa da Europa de conter harmoniosamente o desenvolvimento daquela violência, e não são poucos os exemplos e cenários de uma pedagogia perfeitamente cuidadosa e compreensiva – e respeitosa da importância dos rituais islâmicos para a rotina de Ahmed – que se apresentam ao longo do filme, mas não haveria aí um grande perigo? Ora, se o filme é uma jornada pelo esforço de ressocialização pacífica da violência de um garoto islâmico, não seria esse processo institucional uma extensão da maneira que a Europa se vê ou gostaria de se ver diante desses conflitos? A ausência de um contexto que dê lastro para a radicalização de Ahmed não tende a sugerir, implicitamente, que o ambiente social da Europa – e, por consequência, a sua relação com os muçulmanos – estaria desimplicado na formação daquela violência? A impressão provocada pela figura de Ahmed é a de que aquela violência se cria por conta própria e independe das relações sociais de qualquer lugar em especial, algo que é ainda mais enfatizado pela dissonância que as suas escolhas criam mesmo dentro de sua própria casa. Ademais, se o filme traça um olhar sobre o atrito entre os sistemas de crença e convicção aos quais aderimos e as respostas que nossos corpos oferecem ao mundo, não seria esse processo institucional de ressocialização – com o atencioso instrutor do reformatório, com uma família de fazendeiros simpática e receptiva, com espaços sociais serenos – o estabelecimento de uma dualidade entre duas formas de instrução do corpo e os seus efeitos – uma sendo produtora da violência e outra sendo produtora da paz? Em outras palavras, não seria essa ressocialização já uma forma de violência institucional configurada para imprimir nos corpos e nas subjetividades uma certa forma de ser e agir que esteja de acordo com uma sociabilidade europeia tipicamente pacata e austera? Parece haver um maniqueísmo no trato das diferenças culturais, uma superficialidade na representação do Outro e da sua cultura engendrada para produzir um único sentido possível.

Ainda que o filme tenha, por exemplo, uma cena na qual os pais dos colegas de classe de Ahmed têm desacordos sobre as formas de ensino da sua cultura, e uns sejam mais abertos do que outros, a violência e a radicalização que se apoderam de Ahmed continuam infundadas – e tampouco entendemos o motivo pelo qual ele persiste incansavelmente. O filme até suscita eventuais leituras para os conflitos que produz, como o fato de Ahmed ser um jovem que parece estar em busca de um lugar para pertencer ou a possibilidade de que ele poderia estar gestando uma certa violência masculina de vingança e de afirmação como resposta à ausência de uma figura paterna na sua vida, visto que foi criado apenas por mulheres e tem como catalisador da sua radicalização a figura masculina de um imã (Othmane Moumen) que está constantemente estigmatizando sua professora como uma apóstata. As leituras parecem, porém, ancorar-se em chaves psicológicas genéricas, que não enfrentam a especificidade do ruído presente na relação entre a sua herança cultural e o ambiente social da Europa.

Em seu texto sobre Dois Dias, Uma Noite (2014), Victor Guimarães comenta a respeito de um “movimento vertiginoso em direção à banalidade” que já àquela altura estaria a assolar o cinema dos irmãos Dardenne. Ele argumenta que eles estariam a desfazer as conquistas mais preciosas do seu cinema e que “a primeira delas é a dissolução de uma superfície formal que chegou a ser sólida e potente em algum momento da carreira dos diretores, mas da qual só restam algumas marcas de grife: a recusa ao campo/contracampo já não é mais tão contundente (…) a câmera já se permite uma distância média, que resulta numa sobriedade insossa”. A “devoção ao movimento perpétuo dos corpos em cena” soa como um legado estético esgarçado que sobrevive por aparelhos nos lapsos de um comodismo no qual “a palavra ganha predominância sobre o corpo na mesma medida em que a tese prevalece sobre a presença”. Se os Dardenne ainda preservam alguma atenção pelos corpos em cena, é porque talvez ainda acreditem que ali haja alguma expressão privilegiada dos sentidos de uma vida e de uma realidade, mas o que antes contaminava a matéria do seu cinema para definir o propósito do próprio gesto, agora é somente mais uma ferramenta dentro de um arsenal de truques. Diferentemente de Dois Dias, Uma Noite, no entanto, em que o substrato da sobriedade era um testemunho esclarecido das evidências de uma opressão capitalista inegável no qual a estratégia de identificação do problema se dava no pacto de solidariedade com o oprimido – e na realidade por ele revelada –, em O Jovem Ahmed o oprimido é não só sequestrado daquilo que lhe imprime essa condição, como é também transformado em um instrumento retórico de justificativa das estruturas mesmas que o oprimem.

É curioso, então, que o plano de abertura prometa uma instabilidade palpável sobre as formas de registro do corpo no quadro que nunca se realiza ao longo do filme, e que mais parece a vinheta para a nostalgia de um certo cinema do que a vontade de levá-lo a cabo. É algo que se repete no plano final, que ao menos em superfície parece relembrar os melhores momentos dos Dardenne, mas que em realidade soa estrangeiro, porque não há mais um ideal de cinema que saiba se fazer valer por esses momentos.

Na cena final, inclusive, os problemas do filme atingem um paroxismo: é como se a mudança e a redenção do protagonista, que não foram de maneira alguma possíveis através da ressocialização pacífica, fossem realizáveis através da dor, da punição – porque esse sim seria o método assimilável para Ahmed. É como um payoff para o set-up situado pela cena em que Ahmed reclama da generosidade de seus instrutores, comentando que eles deveriam ser mais agressivos – o que daria aos Dardenne uma carta branca para a solução moral do desfecho, posto que ela seria meramente uma espécie de resposta aos pedidos do protagonista. Convenientemente, contudo, essa dor não é infligida por um agente europeu, mas resultado exclusivo das ações do protagonista – um acidente. A tensão entre as condutas que ele gostaria de impor ao seu corpo e aquilo que o seu corpo espontaneamente sente e expressa se resolve porque ele enfim encontra uma circunstância corpórea que ele não consegue ultrapassar. O sofrimento torna-se instrutivo, construtivo, regenerativo. É a ideia absurda de que apenas o medo pragmático e corpóreo da morte poderia ensiná-lo sobre a realidade das suas ações. O bom e velho “olho por olho, dente por dente” se sacraliza numa redenção abençoada pela dignidade moral europeia e a fachada de ressocialização pacífica esconde os horrores de um punitivismo arcaico. Aparentemente, o humanismo tão caro aos Dardenne se tornou um artefato de cabeceira dos que dele não precisam.


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