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A cidade é um campo de batalha

Assim como em A Cidade é uma Só? (2011), de Adirley Queirós, Parque Oeste começa com mapas traçados de uma jovem cidade planejada. No primeiro, a cidade é Brasília; aqui, Goiânia. E, da narrativa de progresso e promessa, que esses filmes fazem seu contra plano. Nesses projetos de urbanismo das cidades, a “promessa modernizadora” haussmanniana expele para as bordas a população trabalhadora, através de mecanismos de especulação, encarecimento do centro e repressão, e assim ordenando o regime de visibilidade da cidade em sua geografia, cuja gentrificação expulsa as batalhas urbanas do palco central.

É do campo de batalha do Parque Oeste, periferia de Goiânia, que o filme de Fabiana Assis fala. O presente do filme está a 10 anos do evento que conta sua protagonista, Eronilde Nascimento, que nos leva ao grande descampado que virou hoje a região do Parque Oeste, para ali acessar às imagens do passado daquela ocupação com mais de 3500 pessoas. A partir de sua rememoração in loco, a câmera caminha guiada por Eronilde, que localiza o que estava erguido sobre a terra, lembra das vidas que ali habitavam e ativa as imagens desse passado.

A irrupção do material de arquivo nos arremessa para os dias antecedentes a intervenção policial, até o momento de repressão máxima e enfim expulsão daquela cidade para um ginásio, durante meses, momento de fratura do cotidiano coletivo daquelas pessoas. São vídeos produzidos em meio às barricadas contra as intensivas investidas da polícia ao longo do processo de reintegração de posse, e foram realizadas pelo jornalista e ativista americano Brad Will – enquanto morava na ocupação, cobrindo o conflito pelo Centro de Mídia Independente de Nova Iorque. Will foi assassinado pouco tempo depois em um conflito no México.

Os diretores do curta-metragem Conte Isso Àqueles que Dizem que Fomos Derrotados – Aiano Bemfica, Camila Bastos, Cristiano Araújo e Pedro Maia de Brito – falando em debate no Festival de Brasília de 2018, explicitaram que a função primeira das imagens de seu filme é jurídica, de autoproteção, de prova, produzidas pelo movimento para que possam comprovar seus atos e também denunciar a violência policial, eclipsada pelo regime de visibilidade vigente. Aquelas imagens, antes de um filme, cumprem uma função dentro do que Rancière chama do regime ético das imagens, quando “a “arte” não é definidora enquanto tal, mas se encontra subsumida na questão das imagens[…] objeto de dupla questão: quanto à sua origem e, por conseguinte, ao seu teor de verdade; e quanto ao seu destino: os usos que têm e os efeitos que induzem”.

E assim, o que esses filmes fazem, cada qual à sua maneira, é rearticular esse material orgânico aos modos de fazer da luta por moradia e agora lhe conferir um sentido dentro do regime do cinema, onde definir a posição do olhar e a elaboração desse material é postura política de reconfigurar e redimensionar essas imagens no regime de visibilidade que as oculta: todas as frentes são todas as frentes. Do registro de uma miniDV da câmera na mão – de acompanhamento cotidiano e ferramenta de denúncia – à rememoração na tela do cinema – onde o relato de Eronilde conduz, recompõe e ressignifica os fragmentos daquelas imagens que recusam a lata de lixo da história.

A resolução determina a visibilidade, e ampliar os pixels das imagens em baixa resolução é evidenciar o modo de fazer daquela imagem: como a câmera de Conte Isso Àqueles…, que se esconde junto às mulheres que hasteiam a bandeira na terra recém ocupada, a câmera de Will se esconde dentro da casa dos moradores no momento mais sanguinário da reintegração.

Após noites e noites de ataques das autoridades e de barricadas dos ocupantes, a polícia invade pela parte de trás da ocupação, de manhã, pegando os moradores desprevenidos e sem defesa. Em meio a batalha campal de tiros e bombas de gás, a câmera se protege dentro de uma casa, e vemos o avanço das tropas pela porta, que enfim se fecha e nos deixa no escuro, ouvindo um bebê chorar, uma mulher em desespero e homens deitados no chão.

Essas imagens emergem com um dado de realidade viva e incontestável, onde coincidem as proposições estéticas com a ética de fazer parte ao movimento, que atropelam a polêmica de um embate de narrativas. Quando um filme escolhe um lado no campo de batalha e recusa o argumento de seu contraponto antagonista, é comum sofrer com a pecha de parcial ou panfletário – importação de paradigmas jornalísticos – que ignoram que o jogo estético é justamente o da intervenção “na distribuição geral das maneiras de fazer e nas suas relações com as maneiras de ser e formas de visibilidade”, de embaralhar as posições e distribuição dos lugares, e dar foco ao ponto de vista diverso ao da ordem vigente.

Durante a ação policial, foram assassinados Pedro Nascimento, esposo de Eronilde, e Wagner da Silva Moreira, além de diversos desaparecidos. Esse momento de disrupção na história da ocupação é o de dobra narrativa também do filme. Assim como no filme A Rainha Nzinga ChegouIsabel Casimira Gasparino, Junia Torres (2019) – o ritual da morte e do enterro marcam um rito de passagem dentro e fora do filme. Lá, a passagem de bastão do reinado da matriarca para sua filha, que levará a tradição da Congada adiante e viajará até suas origens africanas. Aqui, o assassinato de Pedro, é a passagem do bastão da luta por moradia daquele grupo de 3500 pessoas que se mantém unida em um novo acampamento. E essa passagem é também passagem formal, assim como em A Rainha Nzinga Chegou, como momento em que o filme se presentifica, passando a organizar a produção das imagens dentro do tempo em que está sendo feito. E essa passagem de bastão é o de atestado de continuidade, é o “diga isso àqueles que dizem que fomos derrotados”, de reorganização da vida coletiva no contrapelo dos interesses privados e da força policial cuja política pública é o de extermínio.

No presente, de reconstrução da vida cotidiana, Eronilde dedica todos seus esforços em melhorias na qualidade de vida e na infraestrutura do acampamento para onde os ocupantes foram realocados. Seus companheiros de ocupação recusaram a proposta do governo de locação de apartamentos, que dispersaria a coletividade do movimento, preferindo se manter juntos. E nesse compromisso com a continuidade, com o fio da meada, Eronilde trabalha por um centro de memória que garanta a história daquela comunidade, tarefa que, mais uma vez, coincide com a do filme. Tarefa em que lembrar de Pedro, Wagner e Brad, é lembrar de todos os desaparecidos, dos outros campos de batalha. Ou ainda: como falar de um morto para falar de todos?


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