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hino à noite

o quadro da segunda entrevista de a rosa azul de novalis parece ordinário. marcelo dorio, nosso dândi tropical, sentado no sofá verde musgo à frente de uma parede com pinceladas abstratas rosas, com o mesmo roupão do plano anterior conversa conosco. já tendo olhado para a câmera na primeira cena convidando a equipe/o espectador a entrar no interior da casa, em seu domínio privado, em seu interior (futuramente literal), agora o pressuposto é de que ele vá só desdobrar seus insights e confissões. no dispositivo de encenação seguinte, desvela-se um “teatro de câmara”, para que suas palavras não sejam feitas só de sonoridade e imaginação mas de visualidade simbólica. ele atua junto a figurantes que choram no enterro de seu irmão e interagem quando suas palavras falam de incesto. mas é ainda no momento anterior, dele sentado de roupão no sofá verde musgo, que alguns mecanismos se explicitam: falava há pouco em meu último texto, em como um filme de verão subverte a direção da confissão por meio da inserção de um simples enquadramento de documentário durante sua ficcionalização de rio das pedras. aqui, muito está contido na linha de fuga do olhar de marcelo que é quebrada pela posição do entrevistador fora de quadro. podemos achar que o teto alto de pedro costa é arbitrário, estética-fetiche que se repete e é imitada non sequitur, assim como essa quebra de eixo por ser considerada um deslize ou detalhe sem importância, mas nessa sutileza que se desvia da iconoclastia padrão daqueles que se declaram a uma lente, nasce um jogo de performatividade. o segundo instante que isso se dá em tela é, não pelo enterro fingido, mas por outra sutileza dentro desta encenação: quando marcelo começa a falar atrás do caixão, sua voz reina como a de um pároco numa catedral diante de suas beatas; quando ele anda poucos passos após ter instaurado o choque do incesto às boquiabertas figurações, sua fala queda seca, sem mais reverb que os vitrais eclesiásticos supostamente instaurariam em nossa projeção vocal, voltamos à entrevista banal que se satisfaz com um microfone de lapela abafado escondido por dentro da camisa. a palavra é aquilo que se ouve e que se vê, mas é também remissão sobre sua locução, sobre cada construção. um pouco como a gasta frase de godard em que todo filme de ficção é um documentário sobre seu próprio processo. a rosa azul… é como o imbricamento de uma sessão de poses justapostas ao fio de novelo que suas palavras evocam. elas invocam outras vidas, como é da ordem da poesia, e aqui nominalmente o romântico místico por excelência, novalis. a persona de marcelo dorio, esse quase aristocrata rebelde adorador de maria callas, que se revolta quando questionado sobre o que faz da vida pois é “inútil como tudo o que importa”, pode nos remeter a essa figura do iluminismo, litúrgica, apaixonada e saudosa, dos nomes mais conhecidos pela estetização da filosofia mas, antes de tudo, é um avatar, como um perfil fake de grinder, reino das máscaras e fetiches sexuais. novalis em sua curta bibliografia, vinda de sua curta vida, escreve um livro em resposta à morte de sua noiva, em que verte sobre o anseio erótico da amada um desejo de redenção religioso. marcelo resume que “toda a poesia dele foi uma espécie de sacerdócio, de elogio da noite, não uma noite mórbida, mas uma noite reveladora”. a rosa azul de novalis é esse símbolo da procura pelo amor eterno que talvez esteja morto, “essa coisa que existe mas não existe, é a graça divina; a rosa azul de novalis é a revelação ou simplesmente a repetida demonstração de que é preciso rebaixar todos os imaginários – da doença, do corpo, do sexo, do cu, do fetiche, da palavra, de deus – à mundanidade das relações. é o justo oposto do sentido religioso da ascese. se entramos no cu alheio, depois de chicotadas bdsm da câmera, é para mergulharmos no orifício tão mitológico, quanto igualitário, quanto estigmatizado, quanto divino, quanto profano. a divindade do cu é uma espécie de materialismo espiritual, uma contradição em termos, o justo oposto da transcendência, o rebaixamento de todas as coisas, um nivelamento teológico-comunista. oscar wilde dizia que “ser natural é a mais difícil das poses”, a empreitada de banalizar o vulgarismo do cu talvez tenha a mesma condição. gustavo vinagre e rodrigo carneiro algumas vezes excedem nessa tentativa desprezando o próprio sexo como prelúdio para interlocução, como quando marcelo dorio nos relata sobre suas transas enquanto transa. wilde, de novo ele, dizia que “tudo no mundo está relacionado a sexo, exceto o próprio sexo, que está relacionado a poder”. uma das grandes influências de novalis é o primeiro panfleto do romantismo de schleiermacher, discurso sobre a religião, no qual o autor acreditava que importante aquela altura era repensar a vida religiosa e, como parte disso, repensar nossa relação com a tradição. hoje uma certa tradição, ainda mais prosaica do que no romantismo, é retomada no fora de campo. o sexo, que é poder, é divindade contestadora. ante a nostalgia da era das luzes, a vastidão moderna da noite. “o despotismo do dia nunca terá fim?” “nunca chegará o dia em que o sacrifício oculto do amor arderá eternamente?” apesar de marcelo cheio de vida, a rosa azul de novalis se quer morte como triunfo de uma ideia. um modesto intento para que se abram as cortinas da penumbra soterrada. talvez esperança azul de anelina. das trevas do reto à luz do amor.


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