Banco Imobiliário, de Miguel Antunes Ramos (Brasil, 2016)

fevereiro 9, 2016 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Juliano Gomes

* Cobertura da 19a Mostra de Tiradentes

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As rédeas do jogo
por Juliano Gomes

O que é sistema? Um modo de organização, um conjunto onde a relação entre as partes gera um efeito pretendido que retroalimenta o próprio ciclo. Banco Imobiliário tem um objetivo claro: analisar o que é o fenônemo que chamamos de “mercado imobiliário” por meio das pessoas que trabalham diretamente nele. O filme faz um trajeto pelas funções daqueles que buscam terrenos, executam o empreendimento e vendem, tomando para si uma tarefa clara de investigação de um setor crucial para tentar compreender seu funcionamento e modo de expressão. É um sistema que funciona que tem como matéria-prima a voracidade espacial, mas que se exerce, em sua expansão, a partir de um modo de falar.

É possível pensar que os curtas E (2014), Salomão (2013) e O Castelo (2015) formam uma espécie de grande estudo sobre a questão da violência espacial e simbólica exercida nas grandes cidades, catalisada pela especulação imobiliária. “Especulação” significa, ao mesmo tempo, uma investigação teórica e um truque, um jogo de espelhos. Seu dado definidor é que ela cria um modo de pensamento onde o valor do espaço se torna abstrato, perde sua dimensão coletiva e social. A estratégia essencial desse pensamento é valorizar a parte em detrimento do todo. De certa forma, Banco Imobiliário quer sabotar esse sistema fechado buscando, pelas próprias partes, indicar que há um todo ao qual elas se referem e que lhes é essencial. Este todo, porém, está fora do filme. Ou melhor, ele é o fora do filme, na medida em que se faz presente pela sua ausência e negação. No momento onde ele chega próximo de se expressar é quando é feita a pergunta a um personagem: “o que é uma cidade?”. Apesar da pergunta nunca ser expressamente respondida, é evidente um desejo do filme de ser uma espécie de investigação em negativo, traçando o mapa de uma ideia distorcida de cidade, para com este desenho dar contornos mais claros a uma ideia de polis que se pensa como conjunto e pluralidade.

Apesar de inúmeras semelhanças, há uma diferença essencial entre os curtas anteriores e Banco Imobiliário. Enquanto os curtas investigam o espaço buscando neles uma espécie de idioma próprio, uma língua das coisas, que se constrói por uma maneira muito característica de enquadrar e montar, este longa se concentra em outro fator: o discurso. O diálogo entre máquinas em E, ou a exploração dos regimes de imagem em Salomão e O Castelo, dão lugar a algo de outra natureza aqui. Os personagens de Banco Imobiliário precisam convencer tanto potenciais vendedores de terrenos quanto compradores de imóveis. Logo, são potencialmente experientes performers cujo desejo principal é visibilidade. Esse dado faz disparar o motor do filme: a criação de um campo comum de interesses na cena, onde os personagens querem falar, se mostrar, e o filme quer justamente isso, para dobrar, via encenação, este gesto expressivo. De certa maneira, trata-se de um filme sobre teatro e publicidade (“vendemos sonhos”, “trabalhamos com experiências sensoriais” dizem as personagens). As cenas do filme dão conta justamente de entender os limites dessa visibilidade exacerbada, cujo excesso parece ser sua fórmula de eficiência. A hipertrofia das vantagens da unidade claramente funciona como antídoto contra um pensamento que faça um mínimo zoom out.

A enumeração permanente e orgulhosa das vantagens, da oportunidade, pela sua insistência parece também ter um efeito subjetivo sobre quem fala. A narrativa do sucesso, da alegria e da chance é uma estratégia de ocultamento. A atenção do filme se volta para a construção desse discurso. Essa construção não se dá só pela fala, mas por animações 3D, por painéis publicitários, por pequenas performances (como a hilária cena dos atores vestido de Peppa Pig), e o filme é bastante preciso no mapeamento deste cruzamento de ações que compõe o funcionamento deste sistema fechado – funcionamento por sobreposição: ele constrói o que compõe somente consigo mesmo. Essa montagem para dentro é algo que Banco Imobiliário toma para si e adota como procedimento: uma maquete sempre montada com um condomínio real, ou uma animação em 3D; ou a música desse espaço virtual que, montada com um plano da janela de um carro, realizado pelo filme, elucida a operação sensorial que este discurso opera. Ele precisa criar encanto e funcionar docilmente (a música é uma espécie de ambient bossa), pois o mercado imobiliário quer funcionar na cidade através de uma “montagem invisível”, criando em si mesmo uma cidade, sem diferença e sobressalto visível.

Banco Imobiliário constrói, através de sua tenacidade investigativa, um importante tratado sobre um fenômeno definidor da vida urbana contemporânea. Há uma insuspeita clareza de foco e eficiência panorâmica que nos dá a nítida sensação de que vimos algo examinado em minúcias (cujo coração tornou-se exposto), e cuja amostragem é exemplar. Por outro lado, a força do filme não é exatamente trazer novos fatos à tona, algo que não se saiba, mas sim realizar uma composição destas partes que deixe muito à vista estas ferramentas discursivas, dando-lhes uma espécie de golpe de encenação. O filme encontra uma espécie estranha de “inimigo exibido” e lhe fornece palco somente. Se os propósitos de personagem e filme são diferentes em relação a um pensamento de o que é uma cidade, os desejos de cena são comuns – daí a eficiência teatral da narrativa. Quem o filme quer ouvir, quer falar.

Ao mesmo tempo que este desenho de o que (não) é uma cidade se desenha, existem as pessoas. Esses corpos que falam, que precisam falar, são como que bizarras Sherazades, cuja possibilidade de vida é o vício da ficção. A proximidade do filme com essas pessoas deixa entrever o contraplano dessa novela histérica, e o personagem-eixo do filme, Domingos, é quem conta com uma maior variedade de números. Os momentos que mais diferem da lógica geral do filme são a negativa que ele recebe de um homem que não está interessado em vender seu terreno (onde a retórica falha) e o momento final em que vemos Domingos em sua própria casa. No primeiro, após a exposição da falha, o filme acompanha em repetidos planos abertos, sob a chuva, o caminhar da personagem, que a escala de plano, o guarda-chuva e a repetição do recurso transformam em entrecho cômico, sublinhando o fracasso do sistema através deste homem. O filme muda seu foco para enfatizar onde a grande máquina pode falhar (o sistema parece não preparado para isso), onde a estética do sucesso se desenverniza.

A cena na casa de Domingos e uma entrevista de um outro corretor que fala das condições precárias deste trabalho (“amanhã, domingo, segunda, terça, todo dia eu estou aqui…”) sugerem uma densa camada trágica na vida desses homens. Por baixo dos banners parece haver um nítido manancial de desespero e desencanto. O avesso da discursividade dos nomes de guerra é o drama intenso de cada dia na vida de cada homem, onde esse teatro de variedades é estratégia de sobrevivência. Entretanto, o filme não se interessa por abrir essa janela, por fazer uma pergunta a mais, por se deixar desviar de seu interesse próprio. Esses instantes de silêncio na vida desses homens sugerem uma dimensão afetiva que reconfiguraria o fenômeno em outras bases, pois essa alegria frenética que tudo torna showroom é uma forma de violência que não prevê silenciamento (vantagens, vantagens e música ao fundo). Mas o silêncio, a eloquência de uma pausa, não é algo simples de demolir.

A fidelidade à sua meta faz com que Banco Imobiliário funcione como um sistema fechado perante outro. Se suas metas são distintas, o modo de funcionar é surpreendentemente parecido. Não que seja um problema que a individualidade e a identidade não sejam um foco aqui: a tragédia também é de todos, essa invenção de um sentido que torne possível levantar da cama todas as manhãs é algo que atravessa a tagarelice inveterada. Essa cidade, assim como esses homens, são também outra coisa. Há uma espécie de paralelo entre escalas distintas. Todo prédio se deixa infiltar, e é a infiltração a evidência de que ele não é só um prédio, que ele faz parte de outras cadeias possíveis. Não se trata de “humanismo”, mas justamente o contrário. Em Caixeiro Viajante (1968), dos irmãos Maysles, ou na maioria da obra de Frederick Wiseman, a insistência de uma lógica que se exerce pelos homens revela uma tragédia que tem uma face conjuntural (o capital, o consumo) e outra existencial (é preciso inventar um teatro pessoal para sobrevivermos a nós mesmos). O principal de um jogo não é consciência de que as peças estão dadas de antemão, mas o próprio exercício de jogar que revela ali, sobre o tabuleiro, uma abertura no sistema inicial onde outras naturezas podem se combinar, e dali desdobrar. O inimigo de todo sistema fechado é a diferença. A segurança particular de Banco Imobiliário não deixa entrar esses vizinhos desviantes (o trágico, o errante), e, de maneira ambígua, acaba por reafirmar, como método, a lógica que ele tão bem examina, baseada em um monopólio conceitual que expõe um modo de falar, igualmente focados e eficientes. Desmontar não é sabotar.

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