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Um romance do século XX

Martin Eden, o personagem, é um marinheiro que se quer escritor na Itália. Martin Eden, o filme, é um encontro entre Pietro Marcello, cineasta com um pé no experimental e na não-ficção e Jack London, o famoso escritor de aventuras das primeiras décadas do século XX – aqui, num romance semiautobiográfico no qual a história de London e a de Eden têm muitos pontos de contato. É um romance de formação grandioso, mas cabe a pergunta sobre o que está se formando. Uma educação sentimental com um pé na burguesia e outra no marxismo. E é neste particular desencontro que a atenção de Marcello para o detalhe documental e o arco dramático da epopeia de London se tensionam.

Duas perguntas úteis surgem quando estamos diante de Martin Eden. A primeira é a da localização. O que significa afinal transportar a alienação de consciência de London do novo mundo para a classe trabalhadora italiana? O que são essas tensões históricas quando do flerte de Eden com a aristocracia europeia? É um filme sobre a impossibilidade do gesto artístico neste divórcio constante entre consciência de mundo e o individualismo do artista. Sobre esse peso imenso da formação e a patronagem aristocrática sobre a arte. O tempo passa, mas Marcello sabe bem que ele próprio é, no fundo, tão vítima dessas circunstâncias quanto Eden. Os grandes festivais europeus são só uma nova forma deste mesmo processo ganhar corpo. Algo a se dizer em favor de Martin Eden: há momentos em que o filme lida com esse tensionamento entre Eden e a família aristocrática que lhe dá apoio (ele salva a vida do filho e começa um romance com a filha) nos quais vem à mente o Van Gogh de Maurice Pialat – e como não há filme melhor sobre o tema, não se trata de um elogio qualquer.

A outra questão de adaptação que salta aos olhos é temporal. A lógica dramatúrgica sugere que Martin Eden se passa entre o fim dos anos 20 e o começo dos 30, hora da ascensão do fascismo na Itália e da expansão do marxismo no meio trabalhador (o romance de London, na verdade, é de 1909). Só que Marcello opta por uma filmagem mais arrojada e aberta com um espaço temporal difuso. Não se trata, como no Em Trânsito de Christian Petzold, de transpor o romance para um século adiante e imaginar as mesmas relações dramáticas no espaço presente, mas de imaginar um mundo no qual o século XX italiano parece existir todo ao mesmo tempo. Na imaginação de Martin Eden cabem décadas de contradições e gestos violentos internos à sociedade italiana. Quando nas cenas finais anuncia-se a chegada da guerra, o que importa menos é a qual guerra o filme se refere e mais o desperdício humano envolvido. Martin Eden acaba se revelando na combinação da direção de arte com os fragmentos documentais que Marcello insere ao longo do filme, numa fábula de formação da Itália do século XX.

Martin Eden é um filme de impossibilidade. Um conto de autoaniquilação. Sua constatação principal, herdada de London, é de que não existe lugar possível para o artista na indústria cultural. Tudo aqui surge em dois que se negam o tempo todo. Pensemos, por exemplo, na atenção documental com que Pietro Marcello preenche a existência de Martin Eden em contraste com a presença do excelente Luca Marinelli, quase um Alain Delon moderno. É uma estrela de cinema a passear por aqueles espaços – o filme nunca nos deixa esquecer. A fricção entre Marinelli e a ação é uma constante. Ele vai estar mais à vontade exaurido na decadência viscontiana do último tempo depois que se transforma num escritor famoso do que nas sequências iniciais. O que importa é que o Eden de Marinelli seja o tempo todo uma figura desconfortável e deslocada. O despertencimento é o elemento essencial da sua existência.

O filme se constrói inteiro sobre esses duplos que se autoaniquilam: abertura/alienação em relação ao mundo, educação radical/educação burguesa, comprometimento/individualismo, a sedução do velho mundo aristocrático/a certeza histórica de que ele está às vésperas de desaparecer. A principal dualidade é provavelmente entre forma e narrativa. Estão ali o estilo fragmentário semidocumental de Marcello e o romanesco de London, convivendo de forma tão tensa quanto a estrela de cinema e seus arredores. Martin Eden é um romance do século XX italiano e é também um filme muito consciente da história das formas cinematográficas italianas ao longo do mesmo período. É fascinante pensar que o cinema italiano, muitas vezes dormente, viu no mesmo ano este Martin Eden e O Traidor do Marco Bellocchio, dois acertos de contas com a Itália do século passado, histórias de formação que surgem de espaços diametralmente opostos: em O Traidor, a história do filme de gângster e da presença da Cosa Nostra como o elo entre a Igreja Católica e a família tradicional; em Martin Eden, a história das belas artes e do desencontro entre marxismo e individualismo – que é uma constante na arte italiana do período.

Há uma operação radical de Pietro Marcello que é a de trazer para dentro do grande arco romântico do filme uma série de detritos encontrados em pequenas imagens da história do país. Uma reapropriação da textura de velhos registros que traz à mente o trabalho que o casal de cineastas experimentais Yervant Gianikian e Angela Ricci-Lucchi realizou por décadas. É justo apontar que o trabalho deles se voltou sobretudo para os restos imagéticos das grandes guerras e do colonialismo. Estes fragmentos que seguem interrompendo a trajetória de autoaniquilação de Martin Eden operam por princípio semelhante – nos lembram dessa história italiana de exploração que permanece às margens da ação. Redimensionam o lugar de Eden no processo. Muito de Martin Eden poderia sugerir um lugar numa grande tradição do romantismo italiano e de suas contradições, o cinema de um Visconti ou um Bertolucci, mas Pietro Marcello prefere despedaçá-la de primeira, colocar essas contradições no primeiro plano, realizar a sua impossibilidade.


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