Phoenix, de Christian Petzold (Alemanha, 2014)

setembro 18, 2015 em Em Cartaz, Filipe Furtado

phoenix1A vida nas ruinas
por Filipe Furtado

Phoenix começa com uma guarita de estrada. O soldado americano, ali para policiar os espólios da guerra, para o carro com as duas sobreviventes judias. Pede para ver o rosto envolto em badanas de Nelly (Nina Hoss), sem pudor ou tato, reage de forma envergonhada diante dele (mantido fora do quadro) e lhes dá a passagem. É uma sequência simples, mas nela se estabelece boa parte do que o filme tentará dar conta nos 90 minutos seguintes: a protagonista e a posição fragilizada dela; a guerra que não termina; a falta de pudor daqueles em posição de poder; e está demarcação de fronteira tão difícil de atravessar.

O que o filme ambiciona é encontrar um drama que dê conta desta aniquilação histórica que a cena inicial tateia. O livro do francês Hubert Monteilhet que Christian Petzold adapta aqui se chama Retorno das Cinzas, e o filme como um todo parece informado por esta ideia: das cinzas encontra-se um corpo e, a partir dele, um drama. A grande questão aqui é que não há um retorno possível, apenas um movimento constante; busca-se encontrar este corpo, este rosto, e dali uma identidade, mas a história segue em estilhaços. Não há como fugir do dissenso: a única forma de permitir este corpo vida é aceitar esta ruptura.

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A obra de Christian Petzold segue a sombra de Rainer Werner Fassbinder desde sua estreia, vinte anos atrás, com Drifters. Algumas vezes esta herança se dá de forma mais direta, sobretudo quando se busca uma herança pulp para lidar com falência da sociedade alemã (como na sua adaptação modernizada de O Destino Bate à sua Porta – Jericó, de 2008). Na obra de ambos, a crueldade e ressentimento do gesto nunca deixam de ser acompanhados de uma carga histórica. Encontra-se sempre em um estado de danação, buscando formas de se viver melhor com ele. A opção pelo reencontro histórico (todos os filmes de Petzold já eram por natureza dramas históricos) só dá carga maior a este sentimento: Nelly quer sua vida de volta, quer reencontrar o marido e colocar um parêntese no período da guerra. Um pouco como a boate que empresta o nome ao filme, com seu decadentismo à Von Sternberg, o desejo é de seguir como um oásis em meio à destruição da guerra, intocável, seu tempo suspenso. Não é acidental que é nas ruínas em frente a ela que Johnny, o ex-marido, aborda Nelly com sua proposta de ela assumir o papel dela mesma.

É nestas sequências que Phoenix alcança sua força maior, com Johnny a educar Nelly em como ser ela mesma, sem com isso reconhecê-la. Há obvio muito de Vertigo (1958) nestes momentos, mas também um peso físico muito próprio a estas sequências, e na brutalização proposta por elas – Nelly não tem somente sua identidade negada, mas sua própria forma de ser substituída pelo olhar do marido. A partir daí, o filme se transforma num dueto entre os olhares de Nina Hoss e Ronald Zehrfeld. A ilusão do cinema é complementada pela ilusão histórica. A perversão que permite a sociedade alemã seguir em frente, inabalada, é a mesma que permite construir imagens. Respira-se mais aliviado enquanto se existe nas superfícies, quando se pode ignorar o peso por trás destas imagens.

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A partir daí, Phoenix se torna mais notável, assim como entra em terreno certamente movediço, nunca perdendo de vista a analogia entre o trabalho empreendido por Johnny e o do próprio realizador, e a possível acusação contida ali. Há momentos em que o filme ameaça ser soterrado pelo próprio jogo teórico, sobretudo nas sequências em que Nelly vai visitar sua amiga Lene (Nina Kuzendorf). É um risco que o cineasta sempre corteja nos seus longas e sucumbe em alguns momentos, e que vale em dobro aqui, com o filme sempre a risco de se desmanchar sob o peso das operações empreendidas. É algo que é resgatado pelo rigor da encenação e pelas presenças de cena dos seus atores centrais – sobretudo Hoss, cuja linguagem corporal ancora a ação e atira o filme de volta ao terreno do drama.

São nestas sequências que se encontra a acusação mais frequente contra Phoenix, de que sua situação básica seria absurda, pois não seria crível que Johnny falhasse em reconhecer a esposa, por mais que seu rosto tivesse sido reconstituído via cirurgia. Não deixam de ser acusações muito similares às que Vertigo recebeu em 1958, o que nos lembra que, por mais que gostemos de pensar o contrário, o cinema e sua apreciação não avançou muito nos últimos cerca de 60 anos. É uma reclamação que vai contra a forma como o drama é percebido em Phoenix: a partir do olhar. Colocar em cena aqui significa reapresentar uma história a partir de uma percepção – no caso, a de Johnny, que prefere reescrever a história como o viúvo vítima de guerra, e não como o covarde que, quando preso, entregou a esposa e lavou as mãos da traição. Boa parte do filme se passa neste encenar do reencontro e nas maneiras com o olhar de Johnny impõe a Nelly o papel que lhe convém. Não surpreende, logo, que Johnny só enxergue o que lhe interessa, pois isso traz consigo a falta de pudor e arrogância dos vencedores, de quem no fundo paira acima dos detritos da guerra, vê e encena apenas o que quer, a verdade que lhe melhor cabe.

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A câmera de Petzold vai na direção oposta, tentando encontrar o drama possível no meio das ruinas. Phoenix tem a secura que marca a obra do diretor, mas aqui a entrega ao drama é reforçada: cada gesto tem um peso e uma carga histórica próprias. A tragédia, porém, só pode ser encontrada por Petzold permitir que estes gestos alcancem a ruptura, que o corpo de Nelly/Nina Hoss possa se afirmar para além da condição de joguete/vítima que Johnny prefere. Cada plano do filme procura dar vazão e peso dramatúrgico para esta história, sem com isso se tornar ele próprio vítima desse peso.

O filme é o preparatório para os quinze minutos finais, nos quais o retorno de Nelly tão cuidadosamente planejado por Johnny pode acontecer. É um triunfo de boas maneiras ensaiadas, de tensão internalizada, deste desejo de limpar a guerra e recomeçar de onde se parou como se nada tivesse acontecido potencializado ao grotesco. Phoenix o interrompe com o mais cinematográfico e ilusório dos gestos: o número musical, encenado por Petzold no seu estilo contido, somente Hoss a cantar com emoção e Zehrfeld ao piano, com seu rosto aos poucos registrando o que se passa. O drama do filme finalmente encontra a potência devastadora que buscava desde o primeiro momento. É um momento que traz à mente o movimento final de outro grande filme sobre sobreviver a Segunda Guerra: A Espiã (2006), de Paul Verhoeven, no qual também se lida com a necessidade de recompor identidades estilhaçadas e com um espaço social que prefere ignorar o impacto daqueles anos. Aqui, também se recompõe a figura de Nelly, sem que com isso permita-se um distanciamento da ação ou uma catarse fácil. A imagem final do desaparecimento de Nelly, baseada como ela é na força da presença de Hoss, é dos momentos de maior vigor dramatúrgico do cinema recente; é um triunfo do drama que somente permite o cinema.

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