Bela e Perdida (Bella e perduta), de Pietro Marcello (Itália, 2015)

outubro 8, 2015 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Pedro Henrique Ferreira

belaeperdidaVá, pensamento, sobre asas douradas
por Pedro Henrique Ferreira

O quarto longa-metragem de Pietro Marcello, a mais grata surpresa desta edição do Festival do Rio até o presente momento, é uma verdadeira ode à Itália sulista, pré-unificação, nação descrita nos versos da Va, Pensiero… de Verdi, de onde o filme retira seu título: “Ó, meu país, tão belo e perdido! / ó, memória, tão cara e fatal!” O reflexo desta Itália é o objeto inicialmente documentado, Tomasso Cestrone, l’angelo di Carditello, um ativista político que se voluntariou a habitar e cuidar do Palácio de Cartidello. A situação do castelo era complicada: uma verdadeira relíquia da arquitetura oitocentista que estava indo à leilão para que a gestão administradora pagasse suas dívidas com o banco de Nápoles. Movimentos populares da região ergueram-se contra a privatização do lugar abandonado e, enquanto o imbróglio do penhor continuava, Tomasso ocupou-o. O episódio passou a ser descrito como exemplar da forma como o governo lida com o patrimônio público e um passado remoto e escondido de um território da Itália. A região, outrora parte do reino Bourbon das Duas Sicílias, foi um dos pontos centrais a ser vencido por Garibaldi e o exército piemontês durante as guerras revolucionárias da liberação. O Risorgimento inaugurou a Itália moderna, unificando-a, fazendo aos poucos naufragar o campesinato tradicional sulista e instaurando paulatinamente a democracia na recém-criada nação.

Mas muito pouco ou nada disso está presente no filme. Tomasso Cestrone, a quem o filme paga tributo, faleceu na véspera do Natal de 2013. O diretor Pietro Marcello agrupou umas poucas imagens de entrevistas e de seu cotidiano no castelo e outras poucas imagens dos protestos que acompanharam o leilão do castelo. Mas para mostrar o significado profundo da situação real, o jovem diretor criou uma narrativa fantástica, absolutamente holística, desconcertante, que faz-nos sentir ecos de Straub/Huillet, Miguel Gomes ou Antônio Reis. A trama é centrada principalmente em dois personagens bem particulares: um Pulcinella, figura típica das comedia dell’arte do século XVI, e um búfalo chamado Sarchiaponne, que é o narrador do longa-metragem. O elemento de unificação entre a trama documental e a ficcional é, embora surreal, muito simples. Tomasso Cestrone, falecido, invocou o Pulcinella para que realizasse seu último desejo e conduzisse aquele que considerava seu maior tesouro, o búfalo, para um outro local.

O Pulcinella foi tradicionalmente o representante burlesco da classe operária napolitana no teatro de marionetes, um ser eternamente melancólico e sofrido, porém com uma atitude positiva diante da vida. Veste os trajes brancos e a máscara negra, com o nariz pontiagudo, vagando pelo mundo sem nada a perder. Sua imagem cinematográfica em Bela e Perdida (Sérgio Vittolo) o descreve como uma espécie de monge mais místico, com uma forte ligação espiritual, um ser transitório entre a vida e a morte, o passado e o presente; sobretudo um homem inconsciente, servo do espírito divino, que conduz as tarefas sagradas do mundo quase sem saber por quê. Já o Búfalo é elevado da condição de simples animal à de narrador onisciente. A trama faz questão de ressaltar que se trata de um macho, e por isso inútil para a produção de alimentos (a região de Campania, onde o filme se passa, é conhecida justamente por sua produção de derivados de búfalos). É um bicho sem utilidade no mundo moderno.

A impressionante saga de amizade dos dois perambulando pelo Sul da Itália ocupa boa parte da narrativa. É um descortinamento fantasmagorico do passado do país a partir de duas de suas remanescências, aos moldes de um Pedro Costa. Porém, diante da perspectiva mais austera do português, nos deparamos com um universo um pouco mais jovial e místico, um tanto pasoliniano. Marcello demonstra capacidade ímpar de extrair sentido espiritual das paisagens, dos rostos e olhares (a composição de closes no filme é belíssima), dos objetos, cenários e situações, uma força poética realçada pela montagem, que mistura a saga presente com supostas memórias do Sarchiaponne narradas por uma voz em off do búfalo refletindo sobre a sua condição, o destino no mundo moderno e a maldade do homem. Ao invés do burro bressoniano de A Grande Testemunha (Au hazard Balthasar), um túmulo que serve à inexpressão, Sarchiaponne é toda a consciência e o sofrimento da natureza. Na mesma medida em que o Pulcinella representa o antigo camponês, servo de Deus e com ligação mais forte com os seres vivos, o búfalo representa o âmago da velha Itália, em vias de ser extinta pela invenção de um novo mundo.

O destino trágico da jornada será o encontro com um outro camponês do Sul, a quem Tomasso aparentemente quis que o búfalo fosse confiado. Este será introduzido lendo um poema de D’Annunzio, figura decadentista da virada para o século XX central na literatura italiana da primeira democracia, esta que conduziu ao fascismo. Ele será o representante inconsciente do novo camponês italiano, laico, não mais o Pulcinella que se comunicava com a natureza, que, como se fosse a coisa mais natural do mundo, levará Sarchiaponne para engordar e, mais adiante, ser sacrificado junto a uma manada de búfalos controlada pelo agronegócio que tomou conta das regiões pastorais da nação. Fadado ao sofrimento, o Pulcinella escolherá abandonar a máscara, perder o dom de comunicação com a natureza (e o búfalo, seu amigo) e se casar com uma camponesa que conheceu pelo caminho. Tornar-se-á também o novo camponês italiano, conduzindo a manada de búfalos, e sua amizade com Sarchiaponne restará somente nas lembranças. A perspectiva final é lúgubre, mas “as fábulas, por mais que mentiras”, nos diz o búfalo em certa ocasião, “precisam falar a verdade”.

Bela e Perdida é essa ode à Itália sulista, flagelada após a unificação e modernização do país, reduzida à função de provedor de alimento, tomada pelas agroindústrias. Mas é também muito mais do que isso. É um ensaio sobre a memória e o esquecimento, e uma potente elegia a outro tipo de humanidade, quando o homem era um simples fragmento do elã vital da vida e se entendia como parte da natureza, não o dominador e opressor inconsciente dela. Em uma das vozes em off de Sarchiaponne, o búfalo nos diz ter sonhado que “os homens haviam criado asas douradas e voado para os céus, que o mundo inteiro havia reflorestado e que a natureza enfim havia sido deixada em paz”. Que, ao despertar, sentia saudade deste sonho. Bela e Perdida nos lega este mesmo sonho. Saímos do cinema sabendo de sua pequenez diante dos descaminhos do mundo, mas com uma fagulha, uma pequena vontade de sermos um pouco melhores. Tenho a impressão de que era isso que queria este Tomasso Cestrone, l’angelo di Carditello, que nunca conheci e sobre quem soube muito pouco. Talvez, graças ao filme, um pouco de seu último desejo tenha se realizado.

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