Sobre o mundo paira uma caligem, que, espessa, se adensa ao atravessar o Brasil. E nós só sabemos ficar atônitos, assustados e impávidos diante de toda a obscuridade. New Life S.A e Bloqueio são duas reações distintas à emergência de novas velhas forças conservadoras que dominam ou querem retomar as rédeas de um país em convulsão.
1.
New Life S.A. parte de um princípio básico: a elite esta mais viva, dominante e repulsiva do que nunca; longa vida ao sarcasmo contra a elite. Se ela não implode, nem é explodida – pelo contrário, só cresce em poder e influência – que ao menos seja ridicularizada em seu alto trono imaculado. André Carvalheira não é o primeiro, nem o último a tentar denegrir a já defenestrada imagem do new (old) rich. E também não é o único a sacar que grande parte do problema da desigualdade não é exatamente dos políticos, mas da politicagem, sendo que politicagem envolve a sociedade civil, ou melhor, a ponta do iceberg que não se molha da sociedade civil. Até aí, obviedades. Mas elas precisam ser jogadas à mesa, justamente porque são de obviedades que vamos falar aqui, pois de obviedades que se faz o filme.
O primeiro plano do filme é uma gravação eleitoral de um senador. Poderia ser uma introdução do personagem ou do universo, mas vai se estender por boa parte da duração do filme, como um leitmotif, sem que daquela ação nada se distorça, nada se corrompa, nada salte do lugar: é a translúcida representação de um político aos seus eleitores (seus espectadores) posta em caixa alta. A mise-en-scène marqueteira de dupla frontalidade daquele homem se revela no primeiro minuto, mas isso importa menos que a reverberação ad infinitum (“se já foi dito ou mostrado à mesma luz, sem ressignificação da repetição, corte”). Essa modulação é análoga a boa parte da encenação do filme – o genro diabolicamente capitalista, a mulher-zumbi, os atores-mais-gado-que-com-Hitchcock como a família margarina, o peão cão de guarda, o peão escapista transão, o peão lacaio-opressor que se acha pertencente à classe dos opressores mas não passa de lacaio, o peão que não decide entre opressor e oprimido, logo morre, e o peão subversivo são vitrines para que o protagonista veja o reflexo de suas boas intenções caindo na vala.
New Life S.A. é sobre a construção de um grande empreendimento imobiliário em Brasília – esta cidade-empreendimento – e mais especificamente sobre Augusto (Renan Rovida), um famoso arquiteto se dando conta de que as formas desenhadas de seu AutoCAD se sujeitam a outras linhas de força fora de seu controle. Lúcio Costa, idealizador da New Life 00, costumava dizer do seu grande famoso companheiro que a “burguesia adorava ter sua cobertura projetada por um comunista”. Poderia ser o caso de Augusto, mas para além da indicação nepotista, o que sobressai ali é, sobretudo, um aparente idealismo, como o de Niemeyer, sem seu notório comunismo declarado. Na verdade, o que impregna mais forte é sua inocência quando se depara com todo um esquema onde as coisas não são feitas às claras. Em pleno 2018 aparentar-se alheio aos mecanismos sórdidos de empreiteira (que não vem de ontem, mas do tempo da fundação de… Brasília), é como achar que Niemeyer chora lamentosamente todos os dias pela criação de sua capela sistina porque surpreso com sua frequência. É quase como se estivéssemos a ver um romance de formação, para não dizer um filme infantil, onde o olhar requer uma absoluta condescendência a certa (falta de) experiência da personagem para que possamos seguir em frente.
Então, seguindo, esse grande acordão empresarial, com arquiteto, com tudo, convulsiona num desbotamento da índole dos que escapavam à start up das trevas. O ator fantoche pai de família, torna-se o macho mandão com a empregada e mulher, Augusto, depois da lição de manual de como se tornar um presidente leva bêbado a arma para casa e faz cagada. Deixa o genro e o peão opressor darem conta do problema. Mau-caráter por bundamolismo. Ninguém escapa ao Leviatã moderno. A elite não é só o Mal, mas contamina, dissemina seu veneno por entre o sistema circulatório das vias público-privadas. De novo, a questão não é a tese, mas o processo. Um filme não é uma lição e se fosse, na primeira conversa dos vendedores sairíamos com o dever de casa. Como o filme se apropria da ideia, acertada em sua bruteza, porém carcomida em sua dimensão? No fim das contas, como o prólogo prenuncia, acaba tomando o espectador como seu curral eleitoral, como alguém que carece de convencimento de uma ideia. Daí a limpidez da fotografia higiênica, da montagem circular, do histrionismo do jogo de cena, dos personagens-cera, do pacto publicitário das ideias. No intuito de ridicularizar a oposição, o insight é Deus. Louvai ao Senhor e keep walking.
2.
Ver filme em festival te dá esse “benefício” da escuta, desde interlocutores aos próprios realizadores e aqui em Brasília a velha vontade de descobrir (ou apontar) influências como código de acesso tem acontecido com um frequência razoável, especialmente por parte da imprensa. Foi assim com Los Silencios e Apichatpong (não foi à toa a tentativa de desatar esse nó nas últimas anotações), foi bem lembrado o Patricio Guzmán como vislumbre em relação a Bloqueio e no debate de New Life S.A, André Carvalheira respondeu uma pergunta citando o Discreto Charme da Burguesia (1972) como referência primeira de uma ironia cáustica e ácida. Acontece, de novo, que com Buñuel não é que o surrealismo instaurando o nonsense libera um vale-tudo assertivo sobre as coisas, mas é na forma que o espanhol leva a ironia às últimas consequências, a ponto do visível revelar uma verdade inimaginavelmente mais profunda. Com Carvalheira, o tom também não é de quinta justa, mas aumentada, a ironia vem em forma de desprezo cínico, grandiloquente, e redunda, sempre circular. O ponto é bate-estaca. Mas isso parece não martelar – até os destroços – a consciência de alguns que questionam se o autor não tinha medo, “pelo perigo da ocasião”, caso o filme fosse distribuído por todo o país, de ser mal interpretado por uma boa parte dos espectadores (a inflexão era clara em relação a eleitores de Jair Bolsonaro). O medo da interpretação alheia, pelo argumento de que vivemos em tempos sombrios é a cristalização de um velho axioma político do cinema como instrumentalização, ou pior, catequese. Quando a esquerda infla o peito por temor do subversivo é que a bandeira branca da derrota já está a pleno-mastro.
3.
Derrota é o sentimento definitivo ao sair da sessão de Bloqueio. O último plano onde uma grande parcela de fortes homens viris cantam o hino em direção à câmera, num misto de “vamos mudar esse país”, “não desistimos nunca” e “nada vai mudar, mas, ao menos, estamos tentando” relega um peso de xeque-mate aos nossos primeiros passos em direção à saída da sala de cinema. Virilidade em marcha poderia ser o correlato oposto àquele nem tão velho filme de Pedro Costa, em pleno 2006, tempos de euforia das commodities vermelhas. Tem algo de premonitório naquele plano se tomarmos a escalada fascista nas eleições. Tem algo de muito premonitório na greve dos caminhoneiros, parece nos dizer Bloqueio.
Passado alguns meses, talvez não seja absurdo dizer que ainda não entendemos com clareza – ou justeza – aquela paralisação. O mínimo que pode ser dito sem medo, sem freio, é que ali foi descoberto um poder, de fato, de parar as transações e as movimentações da população. Era uma greve de trabalhadores, reivindicando justas medidas de sustentação econômica da classe, ao mesmo tempo que se misturou ao bolo, aquela farinha placebo #foratemer e para inovar a receita pero no mucho, aquela pausa militar para deixar a coisa em ordem, respirando para depois crescer (não esquecer: na receita original para dividir o bolo é necessário primeiro deixá-lo crescer indefinidamente). Ou seja, no mínimo, há um manancial de complexidades e contradições encrustadas aí que dariam uma intrigante investigação. O próprio plano derradeiro aponta isso: são em sua grande maioria homens fortes vindo em nossa direção, mas ganha destaque na composição do quadro, uma mulher negra com uma camisa do Mickey (o capital é sempre esquecido da equação) também cantando o hino empolgada, além de Babá – figura emblemática da política, expulso do PT no começo da era Lula e um dos fundadores do PSOL, hoje vereador no Rio de Janeiro – claramente constrangido de estar ali no meio. Não é tarefa crítica impor aos autores o que fazer ou deixar de fazer, mas é inegável que, como este último plano demonstra, há nos detalhes uma tensão não investigada. Assumindo um generalismo impossível, me parece que se há alguma expectativa ao saber da proposição por parte do quarto campo é não a de que o filme resolva ou sequer dê conta do tema, mas que apresentasse e, quem dera, friccionasse as contradições envolvidas. Bloqueio é um filme de polifonia reproduzido em mono. A sensação é a de que, se tomada num establishing shot, estaríamos defronte a uma mina de ouro de subjetividades, que vai virando pó, a medida que os planos americanos não se desdobram em novas angulações. Um problema de decupagem investigativa.
Nos poucos momentos que isso acontece, o filme cresce. Um dos mais reveladores é a intervenção de um casal de esquerda que parece fazer o mesmo movimento de autoria do filme: chegar lá para entender o que está acontecendo. É sintomática a incomunicabilidade entre a garota grávida e um dos caminhoneiros. Não é só um desacordo de argumentos. A mulher diz ao caminhoneiro, quase se explicando, ao perceber que ela e seu companheiro de vermelho estavam se configurando como inimigos da causa: “eu concordo com todas as suas pautas, só acho que intervenção militar não seja o caminho”. Nenhuma explicação do motivo à recusa da intervenção por parte dela. Algo tão claro e límpido e que sempre passa batido na hora dos porquês. Um(a) (falta de) diálogo que espelha não só abismo entre as classes (que, sendo uma professora pública e outro caminhoneiro, em princípio deveriam estar sintonizados), mas também um abismo que a intelectualidade de esquerda cavou ao se afastar da classe operária, achando que as instituições por si só, com seu sistema de cotas e “redistribuição econômica”, reintegraria plenamente a paz, vulgo a conciliação de classes. Existe a reforma trabalhista pérfida e vampiresca atual, mas também existe uma reforma trabalhista idealizada e fantástica que não é pensada em consonância àqueles primeiros a serem atingidos por ela. Existe a garota que sabe o porquê da intervenção militar ser pavorosa e existe o caminhoneiro que primeiro quer a mínima dignidade operária. Dois mundos que se desvencilharam sem trabalho de base. Um problema de roteiro.
Não é que não exista contradição em Bloqueio, ela está lá. Mas ela está quase sempre en passant, sem profundos desdobramentos, como no caso do único homem que joga aos ventos de que “se tivesse o Lula seria diferente”. A câmera ouve, se interessa ao ponto de parar, de embutir na montagem, mas para nunca tocar a individualização de um coletivo, continua seu trajeto. Um cinema direto que se quer mosquito, raramente pica, e nunca pousa na epiderme por tempo prolongado (com medo da morte de seu dispositivo?). Numa das picadas, um dos caminhoneiros – um pouco mais velho, pelo visto em sua barba branca – é flagrado na hora de uma discussão com um jovem militar que, irônico, fala que, para reclamações, existe um setor de ouvidoria no quartel e dá as costas indo embora. O homem de barba branca vira para câmera num acesso de raiva com um olhar de “tá vendo, como é que é?!”, para no mesmo discurso, na mesma elaboração de pensamento, algumas frases à frente chegar a conclusão de que a única solução possível hoje para o país é a intervenção militar. Delaroche replica algo como “uai, mas você não acabou de falar mal do militar?”. A resposta do homem de barba branca é sintética, eco de milhões: “alguma coisa é preciso fazer. Continuar do jeito que está, não dá mais”. E sendo a casta política, zerada de qualquer credibilidade em sua inteireza pelos mesmos milhões, sobra a lógica aterradora – aparentemente alienígena – de que uma intervenção militar resolveria. Algum substrato psico-histórico pode vir à tona com a ideia de ordem atrelada ao progresso (maldito seja o velho Comte), de que a baderna é o problema fundante do país (maldita colônia), mas nada nos tira dessa parva cara de zumbi quanto à multicomplexidade do Brasil. Resta lembrar, como disseram Higino e Hesíodo, que da caligem fez-se o Caos, e do Caos nasce Gaia e Eros. Um problema, enfim, de imaginário.
Leia também:
- Anotações de Brasília #1: “Feliz é o povo que não precisa de heróis”, por Fabian Cantieri
- Anotações de Brasília #2 : “Da morte, renascemos”, por Fabian Cantieri
- A alma do negócio, por Raul Arthuso
- Proximidade e distância, por Victor Guimarães
- Crônicas de Tiradentes: 1. Em torno do singular, por Raul Arthuso
- A cena muda, por Juliano Gomes