Casa Grande, de Fellipe Barbosa (Brasil, 2014)

agosto 12, 2015 em Cinema brasileiro, Em Cartaz, Victor Guimarães

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Proximidade e distância
por Victor Guimarães

“Considerada de modo geral, a formação brasileira tem sido (…) um processo de equilíbrio de antagonismos. Antagonismos de economia e de cultura. A cultura europeia e a indígena. A economia agrária e a pastoril. A agrária e a mineira. O católico e o herege. O jesuíta e o fazendeiro. O bandeirante e o senhor de engenho. O paulista e o emboaba. O pernambucano e o mascate. O grande proprietário e o pária. O bacharel e o analfabeto. Mas predominando sobre todos os antagonismos,
o mais geral e o mais profundo: o senhor e o escravo.
(…)
É verdade que agindo sempre, entre tantos antagonismos contundentes, amortecendo-lhes o choque ou harmonizando-os, condições de confraternização e de mobilidade social peculiares ao Brasil: a miscigenação, a dispersão da herança, a fácil e frequente mudança de profissão e de residência, o fácil e frequente acesso a cargos e a elevadas posições política e sociais de mestiços e filhos naturais, o cristianismo lírico à portuguesa, a tolerância moral, a hospitalidade a estrangeiros,
a intercomunicação entre as diferentes zonas do país”

Gilberto Freyre, Casa Grande & Senzala

“Aqui, cumpre ressaltar, em especial, a estreita vinculação que se estabeleceu, geneticamente, entre interesses e valores sociais substancialmente conservadores (ou, em outras terminologias: particularistas e elitistas) e a constituição da ordem social competitiva. Por suas raízes históricas, econômicas e políticas, ela prendeu o presente ao passado como se fosse uma cadeira de ferro. Se a competição concorreu, em um momento histórico, para acelerar a decadência e o colapso da sociedade de castas e estamentos, em outro momento ela irá acorrentar a expansão do capitalismo a um privatismo tosco, rigidamente particularista e fundamentalmente autocrático, como se
o ‘burguês moderno’ renascesse das cinzas do ‘senhor antigo’”.

Florestan Fernandes, A Revolução Burguesa no Brasil

A abertura de Casa Grande impressiona. É noite e um plano geral mostra uma casa opulenta, com vários andares e um amplo jardim. Hugo, o pai (Marcello Novaes), sai da banheira de hidromassagem e caminha lenta e solitariamente pela casa, apagando as últimas luzes. Uma lâmpada se acende em um dos cômodos acima e, a partir daí, passamos a acompanhar o percurso inverso do filho Jean (Thales Cavalcanti), que se dirige aos andares inferiores em busca do quarto da empregada Rita (Clarissa Pinheiro). A referência inevitável do título – a incontornável obra de Gilberto Freyre, aglutinadora de tantos mitos nacionais – ressoa nessa economia espacial ao mesmo tempo colonial e muito contemporânea, que assinala a divisão do território entre patrões e empregados. A precisão arquitetônica e a eficácia narrativa desse primeiro plano dão o tom da primeira metade do filme, na qual predomina um olhar entre cirúrgico e afetivo sobre as relações no interior da casa e da família.

A opção pelo plano geral prevalece nesses primeiros momentos e faz do retrato da decadência financeira e moral de uma família da alta burguesia carioca uma questão de espaço. Tanto em termos visuais – o zoom out que conduz nosso olhar do jardineiro e motorista Severino (Gentil Cordeiro) à aula de francês no andar de cima – quanto sonoros – o interfone que toca três vezes quando uma das empregadas chega para trabalhar e revela a imensidão da casa –, é de espaço que se trata, e o filme demonstra uma rara consciência disso. Essa economia da divisão – sobretudo entre patrões e empregados, mas também entre homens e mulheres – também atravessa as zonas internas aos planos: os jantares com os patrões ocupando o centro do quadro (a mesa) e os empregados relegados ao fundo (o lugar do serviço); a exclusão verbal da filha Nathalie (Alice Mello), eterna coadjuvante, que logo se torna exclusão material do quadro. Essa mise en scène incisiva tanto revela uma hierarquia social extremamente rígida quanto intensifica (e, por isso, desnaturaliza) nosso olhar sobre ela.

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Em termos dramatúrgicos, o filme se move entre dois gestos: o painel generalista – marcado pelo olhar distanciado e pela caricatura – e a aproximação afetiva aos personagens burgueses, com atenção para seus dramas individuais. É nesse difícil meio termo que residem as virtudes do filme, e é também daí que surgem os problemas. Por um lado, o roteiro tem certa destreza em transpor para a tela situações e diálogos corriqueiros da vida contemporânea brasileira, que revelam índices de uma partilha social extremamente desigual e cuja expressão maior se dá no preconceito de classe, no machismo, no racismo que se materializam em diversos momentos do filme. Numa dicção próxima de O Som ao Redor (Kleber Mendonça Filho, 2012), abundam diálogos típicos dos almoços de domingo das famílias de classe média ou das caixas de comentários dos portais de notícias online: frases como “é preciso investir na base” (no debate sobre as cotas raciais nas universidades) ou “nenhum patrão ganha um processo trabalhista nesse país” surgem constantemente, no bojo de atuações convincentes.

Quando o filme abandona a perspectiva generalista e se concentra no percurso de Jean, há uma tendência aos planos próximos, ao campo/contracampo, que revela uma obsessão pela verossimilhança dos diálogos em detrimento da construção incisiva do espaço. Esses diálogos, no entanto, ora apontam para um retrato realista denso, ora são pouco mais do que um amontoado de clichês. O almoço de domingo é justamente o lugar onde os limites dessa abordagem começam a aparecer. Numa discussão sobre as cotas que opõe a família e os amigos próximos a Luiza (Bruna Amaya), a namorada de Jean que estuda em uma escola pública, a oposição discursiva entre os dois lados da polêmica não atinge a intensidade das atuações: enquanto a performance dos atores que interpretam os burgueses é bastante potente – ainda que caricatural –, Luiza só consegue ser a porta-voz de um discurso que não lhe pertence. A menina, personagem crucial enquanto contraponto ao mundinho fechado de Jean e que teria a potência de um bufão diante da família, torna-se o veículo de uma espécie de editorial malfadado do filme, superficial e manco. Esse desnível entre as atuações é o índice de uma divisão ainda mais importante e que diz respeito à dramaturgia: aos membros da família, o filme oferece um retrato pleno de nuances e de contradições (sintetizada na excelente atuação de Marcello Novaes, entre o charme decadente de um galã de telenovela e a sobrevivência anestesiada de um zumbi); aos outros personagens, resta um olhar condescendente e arquetípico, que os converte em meros acessórios do percurso de amadurecimento de Jean.

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A concentração crescente na trajetória de Jean acontece à custa de uma restrição espacial e de um estreitamento do olhar que perde de vista a acidez do retrato de classe, rumo a um típico coming of age que tem a diferença de estar imerso na tensão das relações de poder no Brasil contemporâneo, mas que não se contamina delas e acaba por dissolver os conflitos. Movido pela má consciência, o menino rompe com o pai e decide fugir de casa para procurar Severino na favela, numa busca por entrar em contato com tudo o que existe para além dos muros da casa grande. O distanciamento crítico que havia em relação à família, contudo, perde-se inteiramente na adesão do filme à sensibilidade do menino. É então que a fantasia harmoniosa do “equilíbrio de antagonismos” que definia a identidade brasileira no painel ideológico desenhado por Casa Grande & Senzala – e que foi tantas vezes refutada desde então, a começar pela obra de Florestan Fernandes nos anos 1950 – ressurge de forma espantosa numa imagem-síntese: o abraço acolhedor entre o menino e a família do motorista é o ápice dos limites do filme. Má consciência burguesa dificilmente produz boa arte – já o sabia Lukács – e Casa Grande é o último estágio dessa constatação.

A história da colonização se repete todos os dias – genocídio é a palavra, não há outra possível – e o filme não a ignora de todo, mas prefere transformar o imenso desastre histórico das relações raciais e de classe no Brasil em mero pano de fundo para o coming of age do protagonista, em ambiente para o conto de fadas que é o percurso final de Jean. “A primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”, nos lembrava Marx no primeiro parágrafo d’O 18 Brumário. Em sua atualização amena do mito freyreano, Casa Grande escamoteia a tragédia para fazer triunfar a farsa, anula o conflito latente pela mesma via da integração mítica imaginada por Freyre (e que continua a impregnar os negacionismos contemporâneos). Ao final, o burguês adolescente, enfim reconciliado com a própria sexualidade e o próprio desejo de poder (conseguiu, enfim, conquistar a empregada), fuma na janela, imerso no espaço acolhedor da favela, e é como se todos os conflitos esboçados até ali fossem neutralizados. Não há fora de campo, não há perturbação possível diante da placidez vitoriosa do herói mirim. Aos outros – aos ocupantes das bordas do quadro, aos que só existem através do olhar dos vencedores – resta a velha lata de lixo da história, sempre disponível para acolher mais alguns.

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