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3xCaleidoscópio

O olhar através do caleidoscópio é o do fascínio pelo jogo infinito de formas mutáveis dentro de um brinquedo cuja simplicidade mecânica é o que lhe dá o elemento de mistério. É sob essa ótica do jogo de corpos, paisagens e dramaturgias oblíquas, sob soluções formais assertivas, que a Mostra Caleidoscópio, no 51º Festival de Brasília, nos instiga a colocar também o exercício crítico sobre esses filmes sob invenção, sob investigação. A mostra paralela inaugurada nesta edição do festival se apresenta citando Jairo Ferreira e a maneira como ele cunhou o cinema ali sugerido, o cinema de invenção. A partir da reflexão sobre o termo “experimental” ao olhar do tempo, e o que ele significou enquanto categorização para toda uma brecha de possibilidades do cinema, Jairo Ferreira opta pela invenção para recolocar a investigação de abordagens, estratégias e formas em movimento, em que, por sua vez, se tornar gênero é seu exato contrassenso.

Os três primeiros filmes da mostra, O Pequeno Mal (Lucas Camargo de Barros, Nicolas Thomé Zetune), Calypso (Rodrigo Lima e Lucas Parente) e Os Jovens Baumann (Bruna Carvalho Almeida), são, de modos muito diversos entre si, filmes que se erguem entre lacunas: entre o apagamento momentâneo de uma convulsão; coberto entre fendas de rochas míticas; ou entrecortado por um registro afetivo incompleto e desorganizado.

Por ordem:

I.

Os personagens de O Pequeno Mal padecem de um mal-estar sem nome, uma saturação mental da vida cotidiana em São Paulo de efeitos somáticos, de um sentimento de ausência que não se concretiza em elementos palpáveis na vida das personagens, que descompensa todas as relações e corrói a possibilidade do amor. A narrativa orbita, justamente, a cratera do desastre na construção do metrô Pinheiros em 2007, como figura de linguagem neurótica de João (João Paulo Bienemann) que obsessivamente é magnetizado por esse vazio ininteligível.

A crise de ausência associada à epilepsia é o pequeno mal do qual sofre a personagem Janaína (Janaína Afhonso), apresentada sob estado de convulsão nos primeiros minutos do filme. A desconexão entre os diálogos narrados sobre o olhar vago dos retratos se conjugam a assertividade da câmera, que filma rostos como naturezas mortas, numa desierarquização bressoniana entre rostos e objetos, que enclausura as personagens na janela quatro por três, assim como estreita o horizonte do único plano geral que aparece repetidas vezes em variados horários, espremido entre dois prédios que emolduram o quadro.

De maneira fragmentária e elíptica, a narrativa de O Pequeno Mal ainda sim é movimentada de modo linear, num jogo de espelhamento entre Janaína e João, e finalmente uma terceira personagem que os replica, cada qual com a sua doença, imobilizados por uma libido destrutiva que não encontra disrupção. Em uma progressão de acúmulo que aposta em estratégias de estranhamento de maneira reiterada, o filme recorre a essa estratégia a fim de construir o peso vivido pelos personagens. Isso é, com tiques nervosos, convulsões, diálogos não-naturalistas, voice over e personagens catatônicos, O Pequeno Mal resolve na estilização aquilo que não aprofunda na relação entre as personagens e a destes com seu mundo.

Suas lacunas moram na impermeabilidade opaca dos rostos-naturezas-mortas, das personagens que não tocam o mundo ao olhar pela janela. Há um paradoxo entre a desconexão das personagens ao mundo que vivem e a desconexão do filme com o universo em que suas personagens se relacionam, parecendo ele mesmo cair nos becos da abstração das personagens, não encontrando na experiência sensível dessas pessoas elementos que concretizem suas mazelas. Ao mesmo tempo, uma voz monotonal pontua a narrativa enquanto caso médico, o que dá uma pista da própria frieza clínica com que o filme se relaciona com os corpos. O paradoxo aqui é do estabelecimento de critérios que sejam justos a experiência do filme: são essas lacunas insuficiência narrativa ou coesão formal?

II.

Calypso (Julia Gorman) e Ulisses (Walter Reis) na Ilha do Sol vivendo seus últimos dias juntos à espera do retorno do herói de Homero para uma Ítaca industrializada e infernal. No horizonte marítimo enevoado, pedras emergem assim como os “sonhos pululam” na narração em língua ameríndia. Um corte para cargueiros irrompe a iconografia idílica e passamos a ver as rochas entre fendas. “Calypso?” pergunta a voz feminina, e pululam antigas imagens em preto e branco da mesma ilha onde vemos mulheres nuas cruzarem o quadro, como um passado de uma comunidade feminina misteriosa.

A etimologia da figura mítica de Calypso aponta para “encobrir”, “ocultar”, “esconder”, e é no entrever das fendas das rochas que se posiciona a decupagem erótica de Ulisses e Calypso, cuja relação corporal encena papéis zoomorfizados e a dramaturgia recusa sentidos no plano do acontecimento ou da fábula, dando espaço para emanações filosóficas rarefeitas, falas em reverse e silêncios tomados pelo som implacável da natureza e da trilha carregada de saturações industriais ou da orquestra de Villa-Lobos. A experiência do filme se dá através da fruição de intensidades, de variações sobre a paisagem cuja espacialização cria um isolamento desse éden em um entorno de urubus, cargueiros e chaminés, uma espécie de contraplano amedrontador que o olhar de Ulisses teme ir de encontro.

As imagens de arquivo retornam, e são de Luz del Fuego, primeira naturista brasileira, se apresentando com uma serpente. Assim como as anteriores, pertencem ao documentário de Francisco de Almeida Fleming, sobre a naturista na mesma Ilha do Sol, um achado de pesquisa que dialoga preciosamente, através desse empilhamento temporal, com a experiência erótica entre corpos, paisagens e animais.

Assim, circulam no filme uma variedade inesgotável de conceitos e citações, resgatadas no debate após a sessão. E, em alguma medida, essa demanda referencial dificulta as chaves de entrada que nos situe minimamente na constelação simbólica proposta. Ao mesmo tempo, a experiência visual do filme tem dimensão autônoma à necessidade de legenda, e não é a tarefa aqui ligar os pontos ou estabelecer interpretações estanques. Pouco interessa ao filme criar chaves de compreensão do mito ou uma atualização que busca seus equivalentes no presente, e sim criar anacronismos e sobreposições temporais sob o ponto de vista das rochas, cujo tempo humano tem a duração de um relâmpago. É efetivamente dessas lacunas de sentido que se faz Calypso.

III.

Um arquivo em VHS datado em 1992, imagens de uma viagem de primos produzidas afetivamente de maneira desordenada e sem elaboração de sentido que as condense narrativamente. No tempo presente, uma narradora-personagem conta ter encontrado esse arquivo após um evento de grande mistério que envolve essas imagens, o do desaparecimento dos oito primos Baumann, sem indícios de qualquer razão. Os únicos rastros são os do VHS.

O material registra a viagem dos jovens Baumann para a antiga fazenda de café da família em Santa Rita do Oeste, sendo o olhar da câmera o de uma das primas, a Isa. A narrativa em falso-doc dos Baumann se constrói nesse jogo de dupla mediação: primeiro a mediação de Isa, cujo olhar silencioso enquadra e seleciona, ao mesmo tempo que pouco intervém em cena e pouco elabora plano a plano. Sob o regime amador do filme de família, a câmera de Isa está interessada no registro sem um fim, em que cada imagem vale por si, saltando dispersamente de um jogo de bola entre os primos para o detalhe de uma flor ou um café da manhã com histórias de bebedeira. E então sobre esse material, se debruça a mediação da narradora no presente, que anuncia ser filha de um prestador de serviços de manutenção da casa e lembra do estranhamento ao ver aqueles jovens que com tanta naturalidade lidavam com sua bonança. Ela anuncia reiteradamente o mistério que ronda as imagens e busca chaves que lhe indiquem algum caminho para sua investigação.

Cria-se uma colcha de retalhos, na qual filme mostra o jogo de amizade e desafeto entre eles e compõe a coletividade dos primos, entre os mais abonados e os menos privilegiados, os mais descolados e os mala-sem-alça, em um trabalho de construção de universo consistente na criação do material de arquivo e de invenção da memória. Ao mesmo tempo, é nítida a artificialidade com que a narradora do presente movimenta a narrativa pela repetitiva pontuação do mistério que ronda o caso, pois sua relação com o material não aponta para uma particularidade do olhar que ultrapasse a arbitrariedade do dispositivo.

Mas ainda que a narradora busque empurrar um vetor de sentido para a narrativa, as lacunas do registro recolocam o mistério incitado, e instigam justamente naquilo fora da imagem, nos cortes, nos lapsos da memória. Um mal-estar vai impregnando as relações sem qualquer elemento visível e imagens soltas carregam o tom familiar de estranhamento, como o primo que atravessa os arbustos fugindo de algo, o sumiço de um dos primos no campo aberto, e velas espalhadas pelo corredor. Imagens fugidias que magnetizam a busca do espectador por pistas.

E nessa estrutura fugidia do registro amador, o caso permanece sem resposta à investigação, que, como seria próprio do gênero de suspense, recompõe o passo-a-passo do caso e lhe dá sentido lógico. A solução formal que o filme dá ao sumiço dos primos a partir de um de uma trucagem primária e amadora é um achado de linguagem que dialoga com a despretensão da origem dessa imagens e o estatuto do VHS, além de reafirmar a primeira pessoa por trás da câmera, abrindo espaço para interpretações que vão da ufologia ao sumiço eletrônico na própria materialidade do vídeo. É no ponto cego entre um corte e o próximo REC da câmera de Isa que o desaparecimento dos jovens Baumann sustenta sua obscuridade.

***

Enquanto exercício reflexivo, esses três filmes, lado a lado, cotejando uns aos outros, colocam o bom problema de como lidar criticamente com eles. Eles nos desafiam os critérios reiterados por um cinema narrativo realista e bagunçam a formulação interpretativa da experiência. Se faz necessário, como Susan Sontag propõe em seu Contra a Interpretação, não uma hermenêutica, que se coloca a tarefa ingrata de “decodificar” e revelar um esquema de símbolos como passatempo de equivalências semânticas que reduzem a abertura de um filme; mas uma erótica, que se propõe a experiência sensível dessas obras como ponto de partida desarmado de pré-concepções que seriam alienígenas aos gestos desses filmes. São três propostas cuja assertividade formal se coloca o risco do desequilíbrio, das pontas sem nó, do ininteligível. Lacunas que não se instauram para serem preenchidas de significado, mas para desorientar as certezas universalizantes. São “as fronteiras mutantes do cinema” que Jonas Mekas propôs em 1962, que cito aqui para concluir com pontas sem nó:

Mesmo na crítica literária, encontramos com frequência críticos de romance que possuem um conhecimento insuficiente da poesia moderna, e vice-versa. Há pouquíssimos críticos que têm o conhecimento e o amor por todos os gêneros e formas da literatura. Vale o mesmo para o cinema. Temos críticos especialistas em cinema narrativo (usualmente chamado de “comercial”), em cinema documentário ou em cinema poético (“experimental”) (…) Quando um crítico, cujo domínio é o cinema comercial, dá uma passada de olhos no cinema experimental-independente e declara, como Andrew [Sarris] fez, que aquilo não vale nada, não podemos dizer grande coisa após uma declaração dessas. Tudo que podemos dizer é que os nossos críticos de cinema não são melhores do que os nossos críticos literários. Todos, ocasionalmente, gostam de fazer grandes afirmações sobre assuntos de que nada sabem. Ou agitam a bandeira da tradição e dos modelos universais, ou sacodem os cassetetes com os quais baterão nas cabeças de tudo aquilo que não parecer familiar ou que não estiver de barba feita.(…) Mesmo os erros de alguns desses cineastas são mais interessantes do que os sucessos de vários cineastas de Hollywood ou da Nouvelle Vague hoje.


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