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Treta no trampo, cinema de breque

Na semana passada, Ingá puxou uma conversa aqui na revista a partir de uma série de peças publicitárias da Ifood, lançada em meio às movimentações dos entregadores de comida país afora, que se organizam para denunciar as condições de trabalho impostas por um regime contemporâneo de trabalho que vem sendo chamado de Gig Economy, ou “economia dos bicos”. A certa altura do texto, ela menciona o canal Treta no trampo, em cuja produção estaria sendo elaborado “um exercício documental radicalmente distinto e inventivo”. Entro na conversa para me debruçar brevemente sobre esses filmes, encontrando neles ecos de uma tradição bem assentada – embora frequentemente escamoteada na historiografia canônica – e centelhas de invenção. 

Desde abril deste ano, o canal @tretanotrampo – espalhado em plataformas como Instagram, Twitter e Youtube – tem reunido uma série de filmes feitos em meio às mobilizações dos entregadores em todo o Brasil. A variedade é grande: são relatos de trabalhadores, convocações à luta, registros das condições de trabalho diárias, celebrações dos momentos de mobilização, canções. As durações vão desde poucos segundos até três ou quatro minutos. Quase sempre, os filmes são compostos a partir de materiais fílmicos enviados por trabalhadores – motoqueiros e ciclistas – de vários cantos do país. Ao final de cada um, há uma nova convocação para que os envios continuem. Diante de condições de trabalho em transformação vertiginosa, é preciso inventar novas palavras e novos gestos: na impossibilidade de fazer greve, inventa-se o breque; na ausência de sindicatos e partidos, a mobilização acontece entre uma entrega e outra, motoca com motoca, e se dissemina em redes sociais e grupos de conversa pelos telefones celulares. Na história das artes fílmicas engajadas, um rumor novo também se anuncia. 

A urgência dos conflitos do mundo do trabalho atravessa essa história ao menos desde as realizações da cooperativa anarquista Cinéma du Peuple, ainda nos anos 1910. Ela se adensa no cine-trem de Alexandre Medvedkine, que percorre as fábricas da União Soviética em 1932, ressurge nos anos 1960 em várias partes do mundo – dos comunicados cinematográficos do Ejército Revolucionário del Pueblo na Argentina ao Newsreel estadunidense, dos Grupos Medvedkine de Sochaux e Besançon ao Noticiero ICAIC Latinoamericano em Cuba – e floresce tardiamente no Brasil do ciclo das greves, na virada dos anos 1970 para os anos 1980. Em todas essas iniciativas, uma característica desponta: a necessidade de intervenção numa história em plena disputa redireciona o tempo lento da fabricação cinematográfica para um regime em que é preciso intervir numa luta em curso e com final aberto. O cineasta uruguaio Mario Handler dizia que era preciso filmar durante uma greve, montar nos intervalos dos piquetes e exibir antes que a mobilização arrefecesse. Tanto Greve (João Batista de Andrade,1979) quanto Que Ninguém Mais Ouse Duvidar da Capacidade de Luta dos Trabalhadores (Renato Tapajós, Olga Futemma, Zetas Malzoni, Maria Inês Villares, Francisco Cocca, Alípio Viana Freire, Claudio Kahns, 1979) seguem o imperativo: ambos são realizados durante a primeira fase da greve dos metalúrgicos do ABC, em março daquele ano, montados e exibidos a tempo de incendiar novamente a mobilização depois do recesso. 

Nos filmes do @tretanotrampo, a urgência é intensificada – é preciso, agora, intervir no tempo cada vez mais veloz das redes sociais, em que os desastres se sucedem a cada minuto –, mas há também uma diferença fundamental. A transformação da tecnologia, aliada às restrições impostas pela pandemia, implica uma mudança radical no processo: na maioria dos casos, não é mais o cineasta militante que vai até os sujeitos em luta para filmar junto deles ou para mediar uma aprendizagem. A montagem – anônima – dá forma a um material heterogêneo que chega das frentes de atividade na rua, de cada telefone empunhado como arma de luta. A articulação entre os fragmentos é veloz e efetiva, frequentemente pontuada pelo rap – o clássico Muita treta, do Pregador Luo, embala vários inícios e finais, como um refrão –, mas a univocidade da voz narradora se estilhaça. Particularmente impressionante é um filme de convocatória para o segundo breque dos entregadores, em que cada trabalhador que fala elabora o conflito político numa linguagem diferente. Os registros dos espaços esvaziados ou ocupados no primeiro breque – evidências do êxito da luta – se multiplicam por diversos espaços do país, em vistas narradas por vozes que imprimem sotaques múltiplos, de São Paulo ao Acre, de Goiânia a Recife. O endereçamento não visa os canais tradicionais (“Esquece esse bagulho de chamar repórter”), como já propunham Fernando Solanas e Octavio Getino na passagem ao Terceiro Cinema em 1969, mas tampouco se dirige aos espaços hegemônicos da militância de esquerda: se os sindicatos eram aliados importantes em iniciativas como os grupos operativos do Cine Liberación na Argentina ou no ciclo das greves brasileiro, agora a mobilização se projeta autônoma (“nós não precisa de sindicato, nós não precisa de ninguém”). As consequências políticas desse gesto autonomista ainda são imprevisíveis, mas do ponto de vista das formas fílmicas é notável a diferença em relação aos esforços tradicionais dos cineastas militantes.   

Em 1970, em entrevista à revista peruana Hablemos de Cine, Mario Handler definia a proposta do “cinema de quatro minutos”, recuperada alguns anos depois pelo colombiano Carlos Álvarez em “El tercer cine colombiano”, texto de 1975 que encontrava nessa duração o “tempo-chave” de uma “variante tática de um cinema subdesenvolvido”. Era preciso usar a precariedade de meios a favor de um cinema engajado na transformação. Nos filmes de breque do @tretanotrampo, a duração breve se alia a um mergulho ainda mais radical na precariedade: a aposta na autonomia dos registros elaborados pelos próprios trabalhadores é ao mesmo tempo uma condição do processo pandêmico e a garantia da invenção. É justamente nesse momento de precariedade total que as artes fílmicas descobrem uma possibilidade imprevista.  

Para retomar o argumento de Ingá, enquanto, ao forjar sua retórica publicitária, o aplicativo Ifood se isola em um espaço hermeticamente fechado, sob os auspícios do estúdio, do preto e branco estilizado, dos acordes edificantes, e dos equipamentos de proteção – o plano final sempre garante o isolamento da filmagem, contrariado pelo zoom dos depoimentos –, os filmes do @tretanotrampo assumem o risco absoluto dessa precariedade a que os entregadores foram submetidos nas ruas e encontram, nessa decisão, um fôlego novo. Aqui predominam os espaços abertos, a variação das texturas, a elaboração visual e sonora singular do conflito por cada um. Noutro filme impressionante, todo composto a partir de selfies em movimento filmadas pelos trabalhadores, a economia egóica das redes sociais é contrariada por essas intervenções ao mesmo tempo belamente individuais e fortemente coletivas, pois dirigidas a forjar uma aliança possível no terreno da luta. No filme publicitário, o dono de restaurante com sotaque francês carregado enuncia: “Graças ao delivery, a única coisa que foi pra rua foram meus pratos”. Enquanto os aplicativos pregam o milagre da multiplicação anônima e automática das pizzas, esses filmes nos restituem a presença do corpo e da voz dos que se expõem todos os dias às intempéries mais brutais do capital e do vírus. A cada filme, os trabalhadores desmontam essa mágica da desincorporação e forjam, aqui e agora, um outro corpo coletivo. 


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