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“Você vai me fazer chorar de novo?”

Na última semana, um aplicativo brasileiro de entrega de comida lançou uma série de vídeos em que pessoas da sua rede – que abrange, em suma, entregadores, clientes e donos de restaurante – são filmadas num estúdio oferecendo depoimentos enternecedores a respeito de suas experiências pessoais ligadas à plataforma de delivery. Os anúncios foram publicados numa plataforma popular de vídeos e sua data de disparo massivo coincide com a semana na qual, em menos de um mês, ocorre a segunda convocatória de breque para os trabalhadores de aplicativo no Brasil.

Filmagens em preto e branco, numa variação dinâmica de enquadramentos, a melodia com notas de piano ou dedilhar de cordas (com exceção do dono de restaurante, o único entrevistado para quem a trilha sonora concede um saxofone bem-humorado), enquanto uma ou duas pessoas narram histórias para a câmera. “Garra”, “família”, ”doçura”, “amor”, “amizade” e “responsabilidade” são os títulos-empreendimentos que compõem a série Viver é uma entrega. A câmera procura gestos corporais despretensiosos, monetiza-se em cima da espontaneidade. Uma mãe e seu filho contam do perrengue que passaram até criarem a confiança para ela começar a fazer entregas; outro rapaz diz que, com as entregas, conseguiu seguir pagando a faculdade mesmo durante a pandemia.

O conteúdo dos relatos não chega a colocar a empresa em perspectiva, não lhe confere agência direta – nada do que aconteceu foi feito por ela. Ela é posicionada pelos eventos narrados como uma mediadora. Novamente, a inscrição de um ente sem corpo, não apenas demonstrado no discurso publicitário, mas decisivo para a relação de trabalho que é enfiada nos termos de uso dos entregadores. Tentam fazer da presença desencarnada um sinal de independência para quem lida com ela. No momento em que a versão dos entregadores sobre a exploração abusiva de sua mão-de-obra ganha espaço, diante das condições agravadas pela pandemia, a plataforma de delivery exemplifica nas peças a operação de estruturar uma empresa de lucro em cima de empreendimento alheio.

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A estratégia adotada pelo conjunto de peças dispensa uma retórica de defesa em relação aos argumentos pelos quais é acusada nos protestos de rua e de rede. Ao invés disso, investe numa lavagem simbólica que acaba por decalcar nas imagens a prática cotidiana da empresa com seus entregadores. Lembremos dos bordões forçados que atravessam as vozes das entrevistadas, ou o momento em que a pergunta escapa, irresistível demais para sair da edição final: “você vai me fazer chorar de novo?”.

No aperto, a publicidade recorre ao regime híbrido-documental diante da necessidade de continuar em meio às reivindicações trabalhistas. Galo de Luta, em entrevista recente, chamou a atenção dos companheiros de trabalho para a inversão íntima da lógica empreendedora que, na tela, revela um desejo do rico de se ver no pobre: “você já viu os filmes que vão parar no Oscar? Só falam da vida da classe trabalhadora! São eles que querem ser a gente”.

A ifood escolhe, como uma das linhas principais da série, consumir a vitalidade de quem já vende diariamente a sua força de trabalho para o aplicativo administrar. Aponta para o fascínio inevitável que a figura de “persona batalhadora” gera no público, ao recolocá-la insistentemente numa condição de submissão por meio do choro ou do riso condicionado. Tal fascínio também é perseguido pelos vídeos produzidos nos últimos meses pelo canal Treta no trampo, a partir de um exercício documental radicalmente distinto e inventivo – no qual nada poderá ser gravado longe da rua, onde a pandemia não é mero recurso retórico, mas operação de montagem que aglutina num só corte funcionárias de call center, ambulantes, enfermeiros, ciclistas e motoboys.

Entre o algoritmo do youtube e o algoritmo do app, o que está em jogo nas propagandas da empresa é um retirar-se de cena que entrega ao cálculo virtual a condição de gestor da relação. Se as manobras retóricas do universo da economia GIG – substituir empregado por “empreendedor”, ocupar as falas por termos em inglês que refresquem os antigos embates trabalhistas – tentam se emplacar na via do discurso, a produção de imagens só atesta as regras parasitárias desse jogo. Reconstituindo, através da emotividade, uma indiferença crônica e doentia. Indiferença para a qual o único veneno acessível deve ser a centelha que mobiliza os levantes dos entregadores. Essa categoria capaz de apontar rumos numa organização digital do trabalho que se remodela a toque de crise e pretende abarcar todas nós.

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