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Cinemáquina de guerra de Spike Lee

Black is black

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Preto no preto. A certa altura de Destacamento Blood, Paul (Delroy Lindo) e David (Jonathan Majors), pai e filho, estão alarmados. É noite escura e, na mata vietnamita, “todos os gatos são pardos”, como diria o código da urbanidade.

A imagem da pele preta sobre o fundo preto é, na lente de Spike Lee, uma espécie de signo de intransigência, uma não concessão. Um pouco como uma rebatida ao blackface – a pele branca tornada preta na superfície, violência no contraste, como se a imagem não pudesse suportar o preto. Convém voltar a Malcolm X (1992), na antológica sequência do então Malcolm Little (Denzel Washington) com Brother Baines (Albert Hall), na biblioteca da penitenciária, lendo o dicionário em busca de sentidos. Eles procuram a palavra “preto” e descobrem que, de acordo com o dicionário, significa “destituído de luz”. E o que pode o cinema sem a luz? É possível um cinema preto no preto?

Mesmo se fica apenas na superfície, a luta contra o racismo cumpre objetivos concretos e é capaz de conquistas fundamentais. Por meio de cotas raciais, por exemplo, pode abrir portas nas universidades. Como estudante universitário, Spike Lee fez, em 1979, seu primeiro filme no Morehouse College, histórica faculdade negra (em outras palavras, uma instituição de ensino superior fundada antes do processo de minoração da segregação racial nos Estados Unidos e voltada exclusivamente para os negros).

Mas o racismo é profundo. Dependendo do ângulo a partir do qual se olha (ou se põe a câmera), é possível ver que o racismo é parte constitutiva da base de sustentação do imperialismo, encarnação do tráfico e da escravidão da gente da África. Essa gente que fez a América.

Neto querido do capital, o cinema americano exibiu sua forma-racismo desde os primórdios. Em 1915, D. W. Griffith dirigiu O Nascimento de Uma Nação, pedra primeira de Hollywood que levou um filósofo a dizer: “o cinema americano nunca deixou de filmar e refilmar o mesmo filme fundamental, que era o nascimento de uma nação-civilização, cuja primeira versão havia sido feita por Griffith.”1 Há também quem afirme, com toda razão, que o cinema de Griffith, assim como o “cinema narrativo clássico”, teria se tornado hegemônico justamente porque conduzia, através de uma linguagem coesa e formalizada, a energia de uma racialidade bélica, aspirada por movimentos supremacistas norte-americanos.

Spike Lee viu pela primeira vez O Nascimento de uma Nação, “em sua totalidade”, no primeiro ano de seu curso de graduação na Universidade de Nova York. E jamais esqueceu os efeitos que um filme pode ter além da tela. “A KKK (Ku Klux Klan) estava morta, dormente, e aquele filme, por si só, rejuvenesceu-a. O que levou a sabe-se lá quantas pessoas negras serem linchadas”, disse Lee, em uma entrevista a respeito de Infiltrado na Klan (2018).

Às armas

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Portanto, combater o racismo institucional do cinema requer as roupas e as armas. A obra de Spike Lee, num olhar de sobrevoo, sempre teve alvo. É uma cinemáquina de luta. Operar tal máquina de combate implicou, desde sempre, numa tomada de posição. Via de regra, no campo de batalha a posição é de fora-para-dentro. Especialmente para aquele que, como o negro, literalmente vem de fora, à força, para o continente americano.

(Nessa mise-en-scène, o índio era o autóctone vítima de proselitismo e extermínio; o negro foi capturado, transportado, escravizado e violentado. Tudo para erguer o Novo Mundo.)

Nessa América, o lugar “apropriado” da lente seria, então, de-fora-para-dentro. No entanto, Spike Lee posiciona sua cinemáquina de-dentro-para-fora. É o cinema feito na Grande Metrópole: o Império Cinematográfico dos Estados Unidos.

Veterano das primeiras gerações de cineastas formados nos bancos universitários do Tio Sam, Spike Lee trabalha no coração da Indústria (Hollywood, com sede em Los Angeles), mas vive do outro lado do território (em Nova York, sede do Capitalismo). Foi desse lugar que Spike dirigiu suas baterias desde o começo. Nos anos 80, com Faça a Coisa Certa (1989), filmou a erupção de um verão tórrido no Brooklyn, rugindo Fight The Power, um canto com função de palavra de ordem. Nos anos 90, Spike seguiu ora com lirismo e som (Mais e Melhores Blues, 1990), ora com ginga e atleticismo (Jogada Decisiva, 1998), ora com verve política e agressividade (Malcolm X, 1992).

Nos anos 2000, nos brindou com uma pequena obra-prima travestida de cinema de gênero (neste caso, filme de roubo a banco). O Plano Perfeito (2006) é uma encenação do lugar em que Spike Lee posiciona sua máquina de guerra: dentro. Inside Man. Um filme que ele dirigiu por obra de ofício mais do que por projeto pessoal. Ainda assim, trata-se de uma legítima joint. O mocinho é preto (Denzel Washington), mas o narrador, arquiteto da ação, é branco (Clive Owen). Ele é como Spike Lee, de certa maneira. Alguém que opera por dentro do capital, tranquilo e favorável dentro do cofre.

Lee faz seu cinema com o melhor que o dólar consegue comprar. Mas trabalha de tal forma que desarticula as conjugações axiomáticas da cultura americana, ressoando outros imperativos. No filme, o que então seria um roubo a banco literalmente cinematográfico, um crime perfeito, é algo mais: um assalto ao coração do Capitalismo, é tomar do Banqueiro (aparelho de captura por excelência do Capital), numa gaveta minúscula, a sua propriedade de maior valor. Na boca de uma deslumbrante Jodie Foster, a frase “Quando há sangue nas ruas, compre propriedade” é o reverso cínico do “Fight The Power!”.

Escavar a terra, em transe

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Destacamento Blood parece estar para Spike Lee como Era Uma Vez em Hollywood estava para Quentin Tarantino e O Irlandês para Martin Scorsese. Três diretores monumentais dos Estados Unidos, três filmes que se voltam para um período específico e decisivo de suas vidas. São como filmes autobiográficos, de tão caras que são essas histórias para os diretores. Na tela, temos três visões marcadas por grandes crimes. Para Tarantino, Los Angeles e o assassinato de Sharon Tate. Para Scorsese, o submundo da máfia e o sumiço de Jimmy Hoffa. Para Lee, o Vietnã e os soldados negros enviados para combater numa guerra alheia.

Como mostrar o indizível de tanta violência? Em Bloods, muito do que ocupa a tela é a forma explícita dos crimes de guerra cometidos no Vietnã. É napalm e tiro na cabeça. Entre tantas imagens reais sem concessão nem perdão, os combatentes negros da ficção voltam à cena para um acerto de contas com o passado. E lá vemos não só uma operação subversiva com o cinema de gênero, como também a remissão a filmes específicos como Tesouro de Sierra Madre (John Huston, 1948), Apocalypse Now (Francis Ford Coppolla, 1979), A Ponte do Rio Kwai (David Lean, 1957) e a diretores como Akira Kurosawa.

É como se Spike Lee convocasse todas as suas tropas. Diretor que nunca fugiu da briga, ele faz em 2020 o seu grande filme de guerra. Armado até os dentes. Seja com as armas que aprendeu a usar na escola e na universidade (estudo, trabalho de pesquisa, documentos, a não-ficção fria e científica dos fatos históricos); seja com as armas da escola da vida (o arsenal atômico da cultura black: Marvin Gaye, Freda Payne, David Ruffin e não o Davi da Bíblia). Afinal, é ano de eleição para a presidência dos Estados Unidos. A votação, independentemente da pandemia, já se daria num país conflagrado pela liderança de um supremacista, a personificação do Agente Laranja.

Nessa hora e nesse ambiente, o enredo se move em torno de uma busca tão espiritual quanto material. Onde está o ouro? Onde está o corpo? E se volta mais uma vez para dentro, para dentro da floresta, para dentro da terra. Quais fantasmas aparecem, o que acontece quando se escava, em transe, a terra…?

What’s happening, brother?

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O que acontece é que, talvez pela primeira vez, temos um filme norte-americano sobre o Vietnã envolvendo na equação narrativa não somente as parcas imposturas da visão norte-americana média, mas múltiplas visões, inclusive dos vietnamitas e das diversas e contrastantes perspectivas domésticas.

Talvez Pecados de Guerra (Brian de Palma, 1989) tenha escancarado de maneira mais dolorosa a questão desse encontro trágico entre soldados estadunidenses e vietnamitas. Em todo caso, no cinema de guerra estadunidense voltado ao Vietnã, das duas uma: ou os “charlies” são ameaçadores ou são inimigos, ou seres inferiores a serem desprezados e/ou revestidos pelo discurso do salvador branco. Em Destacamento Blood, emerge uma representação mais dilatada desse fenômeno, marcada pelo efeito característico do encontro entre negros e vietnamitas, que, em termos de relação de forças, difere substancialmente do encontro entre o soldado vietnamita e o soldado branco norte-americano.

Logo nos primeiros minutos, o depoimento de Muhammad Ali deixa clara a visão, sublinhada por célebres Panteras Negras, de que a verdadeira guerra enfrentada pelo negro era contra a América Branca, não contra os vietnamitas. A verdadeira guerra para o negro norte-americano é a guerra doméstica, contra a polícia e a política.

O soldado branco norte-americano, ao contrário do soldado negro, estava longe de enfrentar uma guerra em seu próprio país e contra si próprio. Não enfrentava, portanto, as contradições concretas que os negros encaravam ao lutar contra os vietnamitas. Por outro lado, à semelhança do Vietnã do Sul e da Frente Nacional de Libertação (Viet Cong), os soldados negros norte-americanos encaravam os prejuízos de uma guerra doméstica contra si próprios, uma guerra declarada e organizada pelas mesmas forças políticas que agora os enviavam aos montes para lutar pelos interesses de seus inimigos domésticos.

No entanto, esta visão não é compartilhada por todos os negros. Assim como no Brasil, surge a feição monstruosa, patológica, dos eleitores negros das forças e plataformas fascistas e antipolíticas. Com o peso da culpa nos ombros, Paul (Delroy Lindo) se alimenta do ressentimento que produz seu discurso de ódio e vai às raias do delírio.

Do outro lado, estão os vietnamitas. Se na guerra o inimigo é Um (aquele a ser morto, rendido, vencido), no filme o Vietnã são muitos: o menino sem a perna (provavelmente por pisar em uma mina), a namorada ex-prostituta e atual businesswoman, a filha de um encontro que não terminou (uma filha negra e vietnamita), o guia turístico na corda bamba entre o Sul e o Norte, o vendedor de frango no mercado flutuante, exibindo uma consciência política profunda contra os invasores norte-americanos. Em uma das sequências mais estridentes do filme, quase que desenhada por detalhes, soldados vietnamitas conversam sobre amor e poesia enquanto caminham despreocupados pela floresta, até serem metralhados pelos estadunidenses.

Spike Lee introduz novos funcionamentos em dispositivos já conhecidos que integram a máquina narrativa clássica, do ponto de vista das categorias, dos usos e abusos. O jogo fílmico de contrastes acentua o tempo todo a ressignificação. Já nos primeiros acordes extravagantes da “Cavalgada das Valquírias”, de Richard Wagner, Lee estampa, tremulante, o vermelho da bandeira do Vietnã, com uma estrela dourada no centro. É um tratamento de choque ao olhar tão acostumado a ver desfraldada a bandeira estadunidense. Além disso, em vez de uma esquadrilha de helicópteros a caminho do bombardeio sangrento e devastador, como em Apocalypse Now, vemos a marcha lenta da traineira singrando o rio, a estrada fluvial que leva os heróis ao coração da floresta, numa jornada rumo a lembranças e ressentimentos, ao “coração das trevas”.

Da mesma forma, a radiofônica aliança de interesses dos vietnamitas com os negros é sublinhada pelas intervenções da locutora de rádio. Em vez de uma comunicação alto astral com o propósito de encorajar as tropas ao som de Beach Boys e The Rivieras, como em Bom Dia Vietnã (Barry Levinson, 1987), o papo da locutora é direto e reto: black music para alimentar ouvidos e mentes. Para entrar no território selvagem, é preciso cantar. What’s Happening Brother é a trilha sonora da trilha que abre a selva. Cada verso importa e cada personagem corresponde à encarnação das contradições das tendências ideológicas do presente. Mas, ao mesmo tempo, Lee faz uma análise psico-patogenética que multiplica as perspectivas. Como o ser-negro entra e como o ser-negro sai da guerra? Como o povo vietnamita entra e como sai da guerra?

Post Scriptum

Spike Lee é cineasta que aborda temas e se posiciona como cineasta negro em um país que mantém o traço escravocrata e violento. Mas Spike Lee também gosta de cinema, inclusive o cinema branco da virada dos 60 pros 70, com toda a carga renovada que este cinema irá trazer consigo em termos de referência e estilo. Tourneur e Hawks, Fuller e Ray mais do que Hitchcock ou Orson Welles. Transubstanciado em um produto coeso, Lee joga na fórmula um filme tradicional de aventura colonial (com direito a francês de terno branco “fazendo negócios”), filmes de guerra como Apocalypse Now e O Franco Atirador (Michael Cimino, 1978), filmes do heroísmo colonizador (Cowboys do Dspaço, Clint Eastwood, 2000) e de enlouquecimento pela “febre do ouro” (Tesouro de Sierra Madre) – todas essas são matérias a serem apropriadas e reutilizadas em sentido estritamente oposto ao das tendências formais e ideológicas pregressas. Filme anticolonial, antiguerra, que busca equilibrar as perspectivas manifestando uma consciência aguda dos modelos de representação patrióticas do cinema americano.

Tal como Scorsese e Tarantino, Spike Lee não é apenas um diretor. É um cinéfilo, um pesquisador do cinema, da música, da cultura americana. Mas diferentemente dos dois primeiros, seu cinema é quase sempre enquadrado pela cor da pele… Em Destacamento Bloods, Spike Lee solta um canto de guerra. De pé, postura ereta e cabeça erguida. Uma mão segura a câmera e a outra tem o punho cerrado.


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