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Anotações a quatro mãos em torno do Faroeste Spaghetti. Parte 1: a morte cavalga ao vento

Pintaremos de rojo sol y cielo

Hay que ganar muriendo, pistoleros

Hay que morir venciendo, guerrilleros

Luchando por el hambre y sin dinero

Vamos a matar, compañeros

Fabian Cantieri: Acabei de ver Os Quatro do Apocalipse  (1975) do Lucio Fulci. É impressionante como você pode ver trinta faroestes spaghetti e ainda se surpreender com certos caminhos de direção. Dá pra enxergar o filme como o velho mote da vingança, mas aquele final onde ele vai atrás do Chaco (Tomás Milián) pra matá-lo parece só um posfácio. No fundo o que interessa tá no nascimento do filho da puta (literal) e na mobilização daquela comunidade de machões em torno desse milagre. Um filme estranhíssimo dentro dessa seara dos spaghetti, mas nem tanto se considerarmos a filmografia do Fulci. Tô falando isso porque se, por um lado, existem definições bem cristalinas do que seja o gênero do faroeste à italiana, fico com a impressão de que essa facilidade de tomá-lo como um só universo pode virar também uma armadilha.

Nesse sentido eu entendo a preponderância do Leone até certo ponto… é um grande artesão, provavelmente o mais regular – nunca vi o peplum dele, mas quando vai pro faroeste não tem filme ruim – e no entanto é uma espécie de antítese do Damiano Damiani, por exemplo, que negava ter feito um western (no L’Avventurosa storia del cinema italiano [Franca Faldini e Goffredo Fofi] o Damiani diz que o western pertence à cultura protestante da América do Norte e se alguém abandona essa cultura, não está mais fazendo western; então se Uma Bala para o General é sobre a Revolução Mexicana seria apenas “um filme político e nada mais”).

Filipe Furtado: Tem algo aí de ser um ciclo muito curto. O filme do Fulci é de onze anos após o Por um Punhado de Dólares (Sergio Leone, 1964) e já estávamos no último suspiro do gênero. Isso erroneamente passa uma ideia de que deve ser algo fácil de sistematizar. E apesar de existir algo que aproxima esses filmes neste desejo de fazer uma releitura barroca do western americano, existe sim uma armadilha para a historiografia de planificar demais esta aproximação. Se formos pensar os três Sérgios, eles podem ter em comum a paixão pelo excesso operístico e todos terem pelo menos um flerte com o partidão italiano que está sempre ali no pano de fundo da ação, mas as personalidades não poderiam ser mais distintas: o Leone está interessado na fábula, o Sollima é um cara da sistematização, o Corbucci coloca ênfase nos efeitos dos gestos cruéis que ficam para trás.

Voltando a esta formulação inicial, acho que às vezes se perde de vista que o que une os filmes é serem uma releitura. Porque existe ali uma base proposta pelo cinema americano que os italianos deturpam ao gosto próprio. E cada um faz isso de uma maneira muito diferente. O Damiani que você mencionou faz a ponte entre o faroeste americano e Glauber no Uma Bala para o General (1966), por exemplo. É algo que não podia estar mais distante seja do Leone, seja do Fulci.

Acho que dá para retomarmos o filme do Fulci, no Os Quatro do Apocalipse tem um eco do O Céu Mandou Alguém (1948) do John Ford, são duas fábulas católicas de renascimento, mas no Ford os criminosos são os reis magos e no Fulci os cavaleiros do apocalipse. Ambos propõem uma purgação e um recomeço sobre um viés do tormento religioso, mas a forma como Fulci chega lá é radicalmente outra. Daquela fagulha inicial você faz toda uma desleitura.

FC: É curioso notar como esses “criminosos” do Fulci, dentro do tal gênero “imoral e sanguinolento” são os foras-da-lei mais banais possíveis: um jogador trapaceiro, uma prostituta (que naquele tempo era legalizada), um esquizofrênico e um bêbado.

Mas taí uma chave de leitura entre o western americano e o italiano: os três reis magos da bíblia talvez nem sejam reis, ninguém sabe, se astrólogos-astrônomos, sacerdotes ou conselheiros, mas são, sem dúvidas e antes de tudo, peregrinos. Já os cavaleiros do apocalipse são a peste, a guerra, a fome, a morte, são as agruras do mundo. Longe de tomar isso como essência de cada lado do Atlântico, mas existe aí uma incidência do olhar que talvez possa ser estendida ao resto do gênero.

O Tag Gallagher, nessa eterna luta de desenraizar conceitos frouxos, tem um texto (Shoot-out at the genre corral na Film Genre Reader) onde ele desanca um octeto de críticos porque eles teimam em enxergar uma mudança drástica na feitura dos faroestes, cada um escolhendo um período – às vezes a mudança paradigmática é pré-segunda guerra mundial, às vezes pós-segunda guerra, às vezes é uma comparação entre os filmes dos anos 1950 e 1970 – mas cada um deles chega mais ou menos num mesmo consenso, segundo o Gallagher, mesmo que datando diferente: “1) os faroestes tardios são menos otimistas e menos embevecidos com a potencial visão sintética entre natureza e cultura do Oeste; 2) o herói, antes um agente da lei e ordem (mais tarde volto nisso), se tornou um renegado, um matador profissional, um anti-herói, neurótico, psicótico, menos integrável a uma síntese; 3) os faroestes tardios são menos simples, limpos e ingênuos, mais ambíguos, complexos e irônicos, mais autoconscientes na ‘arte de narrar’”.

Agora eu que talvez tenha criado uma armadilha pinçando o cara que não acredita nem na existência do cinema moderno, mas botei ele na roda, justamente pra te perguntar: você que viu provavelmente centenas de faroestes, mas que deve ter algum buraco inevitável dos anos 1910 pela enormidade de filmes perdidos, o que você acha que muda nessa transição de continentes?

FF: O Fritz Lang contava a história de que quando ele dirigiu o seu primeiro faroeste em 1940, perguntaram se não era estranho para ele como alemão dirigir algo tão americano como um faroeste. E ele explicou que fazer um faroeste em Hollywood não era nada diferente de filmar Os Nibelungos (1924) na Alemanha. Mitos de formação, em suma. Eu não concordo com a forma radical com que o Gallagher recusa uma movimentação no gênero, apesar de dividir com ele uma certa antipatia com a forma em que essas transformações são tratadas como um progresso natural e não como uma mudança. Mas acho que podemos estabelecer que o faroeste americano, mesmo quando cínico e destrutivo, não perde este caráter formativo que o Lang observava, seja como observação de história, seja num forjar mais mitológico mesmo de uma ficção de construção nacional.

Nos italianos, essa relação com história e identidade nacional se perde. Mas ainda assim existe um mito. Os italianos levam a cabo o “imprima-se a lenda” do Liberty Valance, mas de uma forma muito diferente da que Ford imaginara. O faroeste é um gênero naturalmente civilizatório, para o bem e para o mal, e acho que os italianos acabam invertendo um pouco a equação. Acho que um elemento forte que os italianos trazem para a balança é uma má consciência do europeu para com todo o processo colonial. Daí talvez inclusive a fascinação com o México como cenário, pois o México paga a conta do processo colonial duas vezes, dos espanhóis e dos americanos. Os americanos forjam uma civilização, os italianos operam pela ausência da mesma. O faroeste italiano é cruel por princípio: o novo continente é um espaço bárbaro. Daí a sujeira da direção de arte, o brutalismo das ações, o perfil marginal dos heróis.

Para puxar o Tag, não é bem o revisionismo que os fanboys de spaghetti gostam de imaginar quando preferem um tipo de mito ao outro, mas expiação. Os italianos partem da base do que os americanos criam para encenar horrores e, nisso, acho sempre útil ter em mente que esses filmes vêm da geração que se formou durante a segunda guerra. Sollima (1921), Damiani (1922), Questi (1924), Corbucci (1926), Fulci (1927), Leone (1929), Margheriti (1930) e podia continuar enumerando. Acho que, de exceções mesmo, só Giorgio Ferroni que é um pouco mais velho e o Castellari que é um tanto mais jovem. O Questi tem um filme incrível que é o Django Vem para Matar (Se sei vivo spara – o título original por si só diz muito), de 1967, que é um catálogo de ações destrutivas, uma verdadeira viagem ao inferno muito humano. Muito depois ele fez um curta sobre o qual eu escrevi aqui na Cinética muitos anos atrás, chamado Visitors, no qual ele, no fim da vida, recebe a visita dos fantasmas dos fascistas que matou quando membro jovem da resistência. Acho que, de formas diferentes, os dois filmes querem dar vazão ao mesmo processo de violência.

Então, acho que você tem nos filmes italianos o encontro dessas duas chaves de horror histórico, o colonial e o da segunda guerra (que não deixa de ser uma forma de carregar para dentro do solo europeu os horrores que eles promoveram nos séculos anteriores nos demais continentes). Voltando ao Os Quatro do Apocalipse e O Céu Mandou Alguém, essa diferença entre os peregrinos e as agruras do mundo me parece indicativa sim. Porque, em termos narrativos, ambos são marginais e rejeitados da sociedade e ambos caminham em direção a essa fábula católica de renascimento, mas no filme do Fulci isso só é possível sob o signo do tormento. Os sentimentos, o passado dos personagens, as suas futuras ações sempre existem sobre essa chave da convulsão.

FC: E no filme do Ford essa vida que, tô contigo, tem rumo, destino – não existe deambulação sem sentido, mesmo nessa grande metáfora cíclica e interminável que é o deserto – só é possível sob o signo da provação, como em Moisés. Quando a personagem de John Wayne descobre que seu galão de água levou um tiro e eles vão sofrer de sede, o plano que dá início à travessia é uma montanha de areia que eles precisam subir. O trajeto de ascese é o da redenção através de um caminho epifânico, miraculoso, sacrificial e teleológico (sobre teleologia: o recém nascido, como o título original indica, tem 3 GOD-Fathers, 3 padrinhos que o tutelam e o guiam para Jerusalém. Deus existe e é abundante. Com Fulci, o bebê nasce e o homem que deveria assumir a paternidade, renega, desapega, o entrega para a comunidade – inúmeros pais são também nenhum. A personagem de Fabio Testi se recusa a ser Pai, enquanto a personagem de John Wayne assume vinte anos na cadeia se for preciso mas não abdica do elo com o milagre.) No fim do filme do Fulci, a vingança sobre Chaco (Tomás Milián), a eliminação do Mal não é exatamente o norte, mas uma etapa, porque na verdade não há um Mal, vivemos num purgatório.

ascese 3 godfathers

[Quando os Brutos se Defrontam (Sergio Sollima, 1967) tinha uma cidade chamada Purgatory city. Que é um pouco a cidade fantasma de Os Quatro do Apocalipse, onde eles se abrigam da chuva e o “louco que fala com os mortos” some. Todas as cidades ítalo-americanas têm essa coisa meio limítrofe, morta-viva. A cidade inicial do filme tenta quebrar isso fazendo uma limpa ku klux nazifascista no que há de podre por lá. Se chama Salt Flat, “deserto de sal”, que, no filme de Ford, é onde começam as mortes, a do primeiro rei mago, morte que seria refilmada em Gerry (Gus Van Sant, 2002), sem Deus nem documento.]

Em relação ao “imprima-se a lenda”: a “América” é essa miríade de possibilidades. Uma terra tão vasta quanta a petulância que quer condensar metonimicamente um continente em um país. Ela é um Éden a prosperar e ela é carente de substância histórica – instituições, leis, relações de classe – à frente, ou a Oeste, só há o obstáculo natural. Eu não sou fã de Os Brutos Também Amam (George Stevens, 1953), mas ele mostra de forma didática, numa conversa noturna entre os antagonistas, o ranço da velha geração que liderou o genocídio indígena e agora perde suas terras para a nova geração que está disposta a morrer pela propriedade privada. A geração pós-tábula rasa: depois de dizimar, precisa cultivar. Enquanto o fato é que geral tá se matando, imprima-se a lenda da terra de oportunidades. Esse “geral se matando” interessa ao spaghetti, porque isso é basicamente a história da Europa da colonização às grandes guerras (pra não voltar a Grécia e Roma antigas). Você fala de um gênero “naturalmente civilizatório”: ainda mais fundamental e mais básico que a chegada do capitalismo e da modernidade, ao meu ver, o que primeiro interessa ao western americano é esse limbo entre wilderness e civitas. Um tempo onde as instituições e as leis estão determinadas, mas não inteiramente estabelecidas ou fortalecidas. Onde a figura do xerife é reconhecida, mas muitas vezes enfrentada sem medo, de igual pra igual, pra não dizer das vezes em que é ridicularizada. A lei é insuficiente diante da brutalidade dos homens. Daí a dependência dos valores. Os americanos ficam com o bildungsroman de uma comunidade diante desse impasse e os europeus com a brutalidade. Se existe Deus e Diabo na terra do sol, os americanos com sua aspiração eterna à ascese querem chegar mais perto de Deus. Os europeus estão mais acostumados a conviver com o Diabo.

Quanto ao histórico de formação desses autores italianos, não só era o período de guerra, como era também um período onde a influência norte americana na Itália ajudava a moldar a consciência moderna: Sollima, fã dos faroestes do William Hart, dizia que seu primeiro choque na vida foi quando alguém o contou que ele não era americano; Aconteceu Naquela Noite (1934) do Capra foi o filme que fez Damiani querer virar diretor. A Itália pós-guerra era uma grande colcha de retalhos da unificação. O Fascismo fracassa na tentativa de cultivar a lealdade ao Estado como era com a Família; a imprensa nacional demora para se estabelecer; até meados dos anos 1950 nem a língua restava – a comunicação da absoluta maioria da população era ainda a dos dialetos locais. Num país de industrialização tardia (e intensamente rápida), onde o elo maior de identidade era o Papa e a Squadra Azurra, um vazio se abre e assim a Itália se torna o país europeu mais receptivo às importações americanas.

E não só se formaram no tempo da guerra, como Sergio Sollima, Giulio Petroni, Giulio Questi, Franco Solinas eram partigianos né. Assim como o Damiano não assumir o Uma Bala para o General como faroeste, acho curioso o Questi só ter feito o Django Vem para Matar no gênero. Ele realmente se destaca no conjunto das obras. Não só pela ideia de higienização da cidade (Campo di Angoscia na língua indígena), que além de querer limpar criminosos como a Salt Flat de Fulci, distorce alguns dos elementos mais rudimentares – é a primeira vez que eu lembro de ver os bad guys, i cattivi, terem medo de uma cidade –; mas pela montagem do horror em staccato, pelos closes dos mais expressivos, pela estranheza de um certo companheirismo indígena, pela falsa loucura uivante da mulher engaiolada na própria casa, pelo fato de ser o único faroeste spaghetti abordando em primeiro plano a homossexualidade e principalmente pela cena do suicídio. Para um filone definido por seu barroquismo e teor operístico, o traço que mais ficou na minha memória é a sutileza de uma elipse: o jovem loiro angelical estuprado por uma orgia de capangas blueshirts.

sei vivo suicidio 1

FF: Acho que o Django Vem para Matar é um filme bem representativo justamente porque ele se assume bem como um filme-catálogo. Não é um filme que tem um movimento narrativo grande, é um filme que acumula esses momentos de horror, uma soma progressiva deles. O cinema popular italiano como um todo sempre tendeu a ser muito pouco narrativo, seja o filme de horror, seja a comédia de costumes, seja o peplum. Ele sempre operou muito pelo viés dos blocos isolados de ação. Até porque é um cinema pensado para salas populares, nas quais as pessoas frequentemente entravam e saíam dos filmes, conversavam muito etc. E no spaghetti esses blocos de ação tendem a ser blocos de violência. No Django Vem para Matar a gente aguarda qual vai ser o próximo movimento terrível que aqueles homens violentos vão cometer naquela cidade. Existem lá as motivações básicas – vingança e ganância – que, invariavelmente, desembocam nas mesmas ações violentas. E o filme vai funcionando em círculos que se retroalimentam.

Acho que isso é algo recorrente no gênero. Esta fragmentação e como ela é usada para reforçar esse mundo de violência. Se formos fazer uma observação mais geral ao olhar para o histórico dos filmes populares que lidam com algum tipo de limite civilizatório, o próprio faroeste americano, o filme de samurai japonês ou de espadachim chinês (ambos lidando diretamente com sociedades feudais), o filme de pirata, o nosso ciclo de cangaço etc. Todos esses gêneros lidam muito com estatutos de violência, mas é frequentemente uma violência como um dado, resultado de um espaço anárquico ou de uma ordem do mais forte. Nenhum deles porém tem esse gosto dos italianos pelo selvagem, pelo catálogo da brutalidade. Os filmes italianos vivem esse estatuto de violência como uma incrível naturalidade e acho, inclusive, um tempo presente muito próprio. Porque esses gêneros todos que eu listei são históricos, o spaghetti em tese também, mas os italianos não estão preocupados de fato com a história americana. Um Os Brutos Também Amam se interessa pelas diferenças entre as gerações de colonos. Para os italianos é tudo um grande palco, essas diferenças se dissolvem porque os colonos não passam de corpos diferentes para pôr em movimento aquele estatuto de violência. Quando eles bebem mais diretamente na história é para, num O Vingador Silencioso (Sergio Corbucci, 1968), encontrar nela mais atrocidades para filmar. Tem um pouco de diferença no ciclo mexicano, mas mesmo ali é uma questão de marxistas de primeiro mundo reconhecendo num movimento revolucionário do terceiro algo com um valor alegórico para eles, mas que ainda assim existe sempre num caráter bastante simbólico.

Nisso da violência, me veio à mente a presença da morte, que é algo que aproxima o faroeste do filme de horror. Os ciclos na Itália acontecem bem no mesmo momento, e é curioso observar como o barroco do spaghetti por vezes flerta mesmo com o gótico. O herói de spaghetti por vezes é como o vilão do filme de horror, com aquele flashback traumático da morte servindo como história de origem. A presença recorrente do coveiro e dos caixões. Tem um filme muito interessante do Corbucci, chamado Os Cruéis (1966), com a Norma Bengell e o Joseph Cotten, no qual os personagens passam o filme todo viajando com um caixão – e essa imagem do caixão é uma que está lá no Django (Sergio Corbucci, 1966), está no Leone etc. Você mencionou que era interessante que o Questi só tenha realizado o Django Vem para Matar no gênero. Ele havia começado a carreira com um curta de horror gótico (Il passo, 1964), para um desses filmes em episódios e depois foi fazer giallo e filmes sobrenaturais (A Morte Fez um Ovo, de 1968, Arcana, de 1972). Imagino que, na cabeça dele, o Django Vem para Matar é uma continuidade da mesma estética num espaço outro, mas que está lidando com a mesma antecipação de morte e violência. Interessante é que, quando ele leva esses sentimentos para o espaço imaginário do oeste selvagem americano, ele pode deixá-los mais explícitos. O faroeste é mais gore que os filmes de horror.

escalpelamento

FC: Mas até nesse gore existe uma distância entre autores né. A brutalidade tá lá, mas qual a representação disso? Se você for pegar as críticas americanas da época em que esses filmes foram lançados, a maioria fica espantadíssima e horrorizada, jogando no papel todas as derivações adverbiais possíveis em relação ao sadismo e à violência. Termos como savagery, vicious, brutal, senseless slaughter (o Austin Fischer no Radical Frontiers in the Spaghetti Western foi lá e enumerou tudo isso). O mais irônico são as palavras pra descrever a sanguinolência – bloody, bloodthirsty, bloodlust, bloodbath, bloodshed – quando, na filmografia inteira do Leone, você não vai achar um ketchup, uma bolsinha de sangue sequer de alguém que levou um tiro. A revista Time teve a coragem de publicar uma crítica de alguém que descreve “litros de sangue falso vazaram, pingaram, derramaram e jorraram sobre a paisagem” diante do final de Três Homens em Conflito – um tiro no mau, que depois de tanto close, acontece num plano aberto e um tiro numa corda que salva o feio. Se você ver um filme como Terror nas Trevas (1981) do Fulci, fica muito claro o interesse dele pela textura do gore. O Os Quatro do Apocalipse tem um esfolamento vivo, Django Vem para Matar tem lá a cena do escalpelamento do indígena em evidência, a orelha arrancada no Django do Corbucci… mas outros muitos desses filmes usam a estratégia do “atira-e-cai” do James Bond. Essa técnica do clutch and fall o Leone pega dos faroestes americanos antigos que ele conhecia como poucos e torna quase um pastiche. Se juntar com os três filmes mais famosos do Terence Hill incorporando Ninguém e Trinity que têm essa vibe meio sessão da tarde com uma violência burlesca, já temos aí os cinco faroestes spaghetti de maior bilheteria da Itália sem qualquer sangue, sem visceralidade visual.

clutch and fall 3

Eu levantei essa bola das críticas diárias da época porque acho que a especulação enviesada e a sujeição exacerbada à violência criou um ponto cego diante da recepção desses filmes: a violência como causa/questão política dos faroestes zapatistas que é hoje, do nosso ponto de vista histórico, a coisa mais clarividente do sub-gênero. E de todos os marxistas partigianos, eu diria que tem uma medula óssea aí fundamental que é o Franco Solinas, dialogando com diretores diferentes, sendo roteirista e/ou argumentista de Uma Bala para o General (Damiano Damiani), O Dia da Desforra (Sergio Sollima, 1966), Os Violentos Vão para o Inferno (Sergio Corbucci, 1968) e Tepepa (Giulio Petroni, 1969). Três desses filmes (Uma bala…, Os Violentos… e Tepepa) têm como elemento crucial a figura do gringo e dois desses filmes (Uma Bala… e Tp) têm exatamente o mesmo diálogo, um menino perguntando ao gringo: “você gosta do México?”. O “não” é óbvio e sem vergonha com o gringo desprezando o México. O americano (Uma bala…) é um mauricinho pragmático que se acha superior e não se mistura, não fica na fila como os mexicanos e só atravessa a fronteira pela grana, o britânico (Tp) até compreende o gesto revolucionário, mas tá ali pela vingança pessoal. Os dois matam os agentes revolucionários, por mais que em boa parte da trama pareçam simpáticos à causa. Uma bala… me parece ser o mais direto em relação ao intervencionismo nos países de terceiro mundo, trabalho que o Solinas continuaria com os filmes do Pontecorvo depois. A cartilha política de Tepepa me parece a mais alinhada à pauta dos levantes contemporâneos: Tepepa morre porque peca, acha que o estupro não é significante, faz a luta justa, mas erra grave e os meios não justificam os fins. Os Violentos vão para o Inferno tem a melhor e mais irreverente explicação para a revolução (dentro desse universo absolutamente machista), comparando-a a um corpo de uma mulher onde a cabeça é a elite e a bunda é o povo e estes nunca vão se encontrar porque existe um tronco no meio, mas também é o que mais leva a sério o Fanon que o Solinas adorava: “A Europa assumiu a direção do mundo com ardor, cinismo e violência”. O Polaco tá lá junto aos mexicanos, ou melhor, acima deles mandando e dando check em cada nova estratégia, matando geral, mas enxerga aquilo tudo como business: Viva la Revolución más rentable.

O americano de O Dia da Desforra já não lida com a insurreição, mas com um problema central do capitalismo que se agravaria no neoliberalismo: quem manda no mundo, na verdade, não são as figuras institucionais do poder – os políticos –, mas quem tem a grana – a oligarquia. O filme do Sollima pega a persona de bounty hunter do Lee Van Cleef da trilogia do Leone, mas transforma as ambições financeiras estritas que havia lá (dinheiro pro Leone é majoritariamente um McGuffin) em um código de conduta da “lei e ordem”. Qual a diferença entre um bounty hunter e um vigilante? Ninguém responde essa pergunta melhor do que O Vingador Silencioso, mas no filme do Sollima, Corbett toma a limpeza como virtude (“no meu país, qualquer cidadão que acredite na justiça pode ajudar a lei”) e se considera um adepto do progressismo apto a virar senador. Gosto da estratégia de direção de deixar em aberto até os 3/4 do filme se o peão mexicano Cuchillo (Tomás Milián) estuprou ou não. O ponto-de-vista do filme é movente, contra o vigilantismo da lei e ordem, levanta questões da própria lei – “é certo condenar sem antes julgar?” –, mesma pergunta que o Clint Eastwood vai fazer em 2019  por bases opostas. O único cineasta que eu consigo imaginar que ainda defende esses valores de forma frontal, desenhando um Richard Jewell de forma que você nunca tenha qualquer dúvida sobre a honestidade dele, o bastião da lei e ordem, mesmo considerando que, se estivesse vivo hoje, ele seria a caricatura do eleitor do Trump e poderia ser facilmente confundido com um incel.

A história original do Franco Solinas era sobre um chefe de polícia que persegue um camponês idoso acusado de molestar uma criança. O Sergio Sollima inverte as idades pra poder usar o Lee Van Cleef no papel de Corbett, mas também muda o final, dizem que por sugestão do Leone. Na história original, o Corbett mata Cuchillo, mesmo sabendo que ele não estuprou a menina. Não tem esse final onde o mexicano e o americano cavalgam lado a lado e se separam no horizonte, invertendo o otimismo da correção de caráter e o salvacionismo gringo do filme por um niilismo à la O Vingador Silencioso que me parece mais impactante.

Aliás, O Vingador Silencioso… que filme. Aquele plano final… o zoom out da janela quebrada como quadro categórico do faroeste: as mortes dentro do saloon, o reflexo da lei se distanciando. Impávida, imperativa, imperial.

plano final de il grande silenzio

FF: Essa mediação do estrangeiro como mercenário/agente da lei no México é uma recorrência muito interessante. Sobretudo quando consideramos que o maior sucesso do faroeste americano do começo dos anos 60 é Sete Homens e um Destino (John Sturges, 1960), que transforma o Kurosawa numa defesa clara do papel dos Estados Unidos como polícia do mundo. O ciclo de filmes mexicanos, especialmente estes escritos pelo Solinas, tem uma especificidade que geralmente escapa aos spaghetti. Damiani e Solima em especial têm um gosto pela observação do processo que sistematiza os efeitos dessa intervenção em filmes como Uma Bala para o General e O Dia da Desforra, que move esses filmes um pouco da ênfase nos gestos violentos que dominam o gênero para as motivações por trás deles. O título original de O Dia da Desforra (La resa dei conti) se traduz de forma bem livre como o acerto das contas, esse momento que vale ali tanto para a relação violenta como para a relação financeira entre aqueles homens, a intervenção bem direta do capital sobre essa lógica do poder, lei e ordem. É um conflito fascinante porque o gênero tende a esse excesso, essas tintas fortes, que inclusive explicam como alguém pode enxergar uma carga de violência que às vezes permanece só sugerida em certas imagens. E nos filmes do Solinas/Sollima existe esse esforço maior de ancorá-las numa observação dessas relações, num desejo de posicionar um Corbett/Cuchillo para além da violência do calor do momento.

Tem uma ironia aí desses filmes sobre gringos intervindo na América Latina virem de um grupo de realizadores europeus discutindo essa ideia de liberação do terceiro mundo. Acho que o tom farsesco/picaresco desses filmes ajuda com que eles não se sobrecarreguem, do mesmo jeito dos filmes de Solinas/Pontecorvo. Porque entendo como Damiani possa não ver grandes diferenças entre Uma Bala para o General e Queimada! (Gillo Pontecorvo, 1969), os pontos de partida certamente são os mesmos, mas os detalhes e andamento desses filmes são bem diferentes. Nisso os filmes do ciclo mexicano do faroeste italiano com a sua mistura entre política e exploitation são um corpo bem particular no universo de cinema radical europeu do período. Tem um desejo de existir entre a intervenção e a análise com fabulação que, de um modo geral, tende a escapar aos filmes do período. Nisso acho que se aproximam mais de um O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro (Glauber Rocha, 1969) do que de um Queimada!.

FC: Falando em ironia, vi ontem o Tempo de Massacre (Lucio Fulci, 1966). Primeira cópia efetivamente ruim dentre um pouco mais de duas dúzias nessa revisão. E baixei dois torrents, um cortava janela, a outra cópia melhor, ainda assim tinha som ruim, cores lavadas/desbotadas, acho que ambos da mesma origem de um dvd italiano. Mas antes disso, tudo lindo, techniscope, eastmancolor lindassos. Nessas horas você percebe como nunca o abismo entre o subdesenvolvimento como representação e o incorporado na alma.

Sobre fabulação e tintas fortes: sabe aquela imagem americana dos anos 1940 do maestro criando cores sem batuta, só no gestual das mãos no Fantasia da Disney? Eu vejo o Ennio Morricone um pouco do lado inverso no espectro do arco-íris, aquele que tem um pote de ouro perto do inferno. E justamente esse ante-lugar do precipício é um manancial de emoções. Pra mim o Morricone ocupa um espaço na música incidental que os Beach Boys ocuparam no pop que é o de desbravador de possibilidades. O teremim da banda está para a ocarina do maestro. Brian Wilson trabalhando na chave da expansão – a amplitude da multi-track pra brincar, se apropriando dos instrumentos de orquestra num pop de câmara – e Morricone na contenção – sem dinheiro pra contratar grandes orquestras nas primeiras experiências, recorre aos tiros de revólver, chicotes, apitos, berimbau de boca, a Fender, etc. como timbre diferenciador de melodias que te embalam ou te põem em suspensão (sem falar no trabalho único de vocalize, que banda e maestro assumem cada um à sua maneira, modulando nossas expectativas). Com o Leone, reverte-se o processo e as trilhas são feitas antes da filmagem pra que aquilo interfira diretamente na temporalidade da montagem, na reação das atuações e na ambiência da mise-en-scène. Acho que muito da nossa apreensão sensível desses filmes e suas altas tensões tem esse contorno único por conta do cara. Como o Peter Paul Rubens que usava não só a perspectiva, mas principalmente a cor para evidenciar os contrastes na tela, toda essa instrumentação nova do Morricone é uma palheta que desterra o lugar comum da violência no faroeste e desenraiza dali os sentimentos mais improváveis.

E aí, você falou antes sobre polícia do mundo… ou seja, a assunção pelo liberalismo de que a força é o caminho. E, pra além da figura da lei, os spaghetti repetidamente satirizam o fracasso colonial da liberdade. A epítome disso está no Quando os Brutos se Defrontam (Sergio Sollima, 1967), que tira o terceiro-mundismo de cena pra filmar Gramsci. A primeira frase do filme é um professor falando “sou incapaz de continuar este curso de(a) história”. A marcha ao Oeste/Sul da personagem é esse movimento malogrado de polinização do Leste/Norte iluminista, europeizado, colonial ao encontro de uma certa raiz americana escravocrata (esse ponto de partida universitário o Michael Cimino iria reelaborar com uma sofisticação avec décadence mais tarde em O Portal do Paraíso, de 1980). De novo: terra de ninguém versus país civilizado. E aí o professor de história que, em tese, poderia semear os frutos das belas letras, do pensamento, nesse lugar vulgar, de fraco vira carrasco, saca que a força é o caminho, o poder é uma atração natural, entende o uso da violência e elucubra sua filosofia: “uma alma violenta é só um fora-da-lei, a violência das massas é chamada História”. O Walter Benjamin dizia que o fascismo leva às últimas consequências a combinação tipicamente moderna de progresso técnico e regressão social. “A catástrofe é o progresso (…) é o contínuo da história”. Taí o que o professor nos ensina. Itália como paroxismo americano.

viole¦éncia chamada histo¦üria 2


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