Todos os caminhos levam à morte – as ficções caseiras de Giulio Questi

maio 16, 2013 em Em Vista, Filipe Furtado

Mysterium Noctis (2004), de Giulio Questi

Mysterium Noctis (2004), de Giulio Questi

por Filipe Furtado

Não há no cinema contemporâneo exemplares tão bem acabados de um cinema de imaginação que busque transportar o espectador para seu mundo próprio e em que o seu próprio prazer de fabular tome o centro da imagem como a série de curtas-metragens que Giulio Questi realizou na década passada. Há, neles, pouquíssimos elementos: o apartamento do cineasta que lhe serve de locação, o próprio Questi que interpreta todos os papeis (e é sempre um prazer vê-lo solucionar a decupagem de cenas para que ele possa ocupar dois ou mais espaços no mesmo ambiente) e a câmera digital geralmente sobre um tripé, já que Questi não só é seu único ator, mas é também seu único técnico. São filmes literalmente caseiros, cinema amador no sentido mais completo da expressão… um cinema que existe porque, após cinco décadas de cinema, um homem encontrou algo (a câmera digital) que lhe permitia exercer a paixão uma última vez.

O mais impressionante é que são filmes assombrados pela ideia da morte, nos quais o mundo esta sempre prestes a desaparecer, mas ao mesmo tempo que recusem este mesmo sentimento de desaparecimento. Ao encenar seu próprio fim (e nestes filmes Questi é repetidamente assassinado, torturado, visitado por fantasmas do seu passado, etc.) revela-se a verdadeira profissão de fé do realizador: se, como disse Jorge Luis Borges, todos os caminhos levam à morte, é necessário se perder. Nas suas ficções Questi consegue justamente isso – por algum tempo adia o desaparecimento, contra atacando com a descoberta de outro mundo.

Já no primeiro destes curtas, Doctor Schizo e Mister Phrenic (2002), este sentimento é exposto com precisão. Há ali duas imagens de caráter opostos: um homem lê suas poesias, solitário em seu escritório, enquanto é captado por uma câmera paciente e fixa que se alterna entre planos dele e outros de seus livros e objetos de cena que parecem igualmente caros a ele; o apartamento, porém, é violado por outra imagem de uma câmera na mão, subjetiva e transtornada; de seu dono, vemos somente as mãos (com luvas pretas de assassino de giallo), enquanto segue à procura de algo, violando de forma incessante todo o ambiente. Ao filme, cabe encenar o encontro violento inevitável destas duas imagens: um assassinato que, revelado o assassino, se desdobra no suicídio simbólico já anunciado pelo próprio titulo do filme. “Era meu companheiro de 78 anos, já não lhe aguentava mais”, explica Dr. Schizo em sua confissão telefônica à polícia. O cinema de Giulio Questi sempre foi da poesia e da grosseria, e nunca fugiu de buscar uma imagem que desse conta de um estado terrível de violência. Doctor Schizo e Mister Phrenic funciona como uma espécie de carta de princípios que expõe as regras do jogo pela qual Questi a partir dali procederá. Os filmes seguintes são variações sobre esta mesma ficção de desaparecimento.

Doctor Schizo e Mister Phrenic (2002), de Giulio Questi

Doctor Schizo e Mister Phrenic (2002), de Giulio Questi

Poucas cinematografias apresentam a riqueza da italiana. Por consequência, poucas têm tantos caminhos ainda por serem descobertos. Giulio Questi é uma destas figuras perdidas do cinema italiano, cujos filmes existem com murmúrios alentados ocasionalmente por algum especialista. Não ajuda se tratar de uma obra mutante que pouco parava no mesmo lugar. Como boa parte dos cineastas italianos do imediato pós-guerra, Questi começou com curtas documentais de encomenda que eu não conheço, mas têm a reputação de serem bastante experimentais e com gosto por personagens e uma representação pouco comuns no gênero. Questi entrou na ficção com alguns episódios para coletâneas no começo da década de 1960 (o melhor dos quais é provavelmente Il Passo, de Amores Perigosos) antes de finalmente partir para uma série de longas de gênero muito peculiares no fim dos anos 1960: o spaghetti Django Kill… If you Live, Shoot! (1967 – nenhuma conexão com o clássico de Corbucci), o giallo marxista Death Laid an Egg (1968) e o inclassificável Arcana (1972). A reputação de Questi reside sobretudo nestes três filmes realizados entre 1967 e 1972, e eles de certo estão entre o que de mais interessante a indústria de gênero local produziu no seu momento mais rico. Django Kill…, por exemplo, abandona narrativa quase completamente em favor de produzir um catálogo de imagens de ganância e violência no qual uma série de elementos iconográficos do gênero são retirados do seu contexto habitual e expostos com feiura exuberante com poucos similares. O fracasso de Arcana encerrou a carreira de Questi no cinema, e ele ressurgiria anos mais tarde dirigindo filmes e minisséries para a TV italiana (Vampirismus, em 1982; Il Segno del Commando, em 1992) até aparentemente se aposentar em definitivo em 1994. Doctor Schizo e Mister Phrenic começou a circular nos festivais oito anos mais tarde, adicionando mais uma etapa a uma obra já muito fragmentada e particular.

Nem todos os curtas recentes de Questi são igualmente fortes. Tatatatango (2003) é divertido, mas um tanto leve demais, e Vacanza com Alice (2006) – uma variação a partir de “Alice no País das Maravilhas” em que a própria Alice convida Questi para um passeio na floresta em que algo terrível lhe acontece – extrai alguns momentos de força dos perigos da literatura infantil, mas é mais curioso por ser o único dos filmes a abandonar o apartamento do diretor. Por outro lado, Mysterius Noctis, Lettera da Salamanca, Repressione in Città e principalmente Visitors são exemplares. A morte do mundo se traduz como um longo blecaute em Mysterius Noctis (2004). Nenhum dos filmes de Questi reflete tão bem a sua força de fabulação e capacidade de usar seu minimalismo como elemento de criação. A estrela do filme é uma lanterna, que ajuda Questi a se guiar pelo apartamento, símbolo maior do seu poder de sugestão. É como se estivéssemos numa das aventuras de imaginário de Raul Ruiz, mas a ficção aqui é questão de uma sala escura, uma lanterna e alguns barulhos fora de quadro que aos poucos tomam conta tanto da imaginação do protagonista como da nossa. A luz é um elemento sempre presente como forma de traduzir um misto de maravilhamento e perigo constante que domina as cenas. O fora de campo como um risco, ideia comum a vários destes filmes de Questi, funciona como um contraponto à presença do apartamento como um espaço privilegiado que os filmes propõem. Haverá sempre este mundo exterior e com ele o risco do invasor, o temor da interrupção da rotina. O limite do quadro se desdobra como o limite da segurança: é no fora da imagem que os fantasmas se encontram e é o papel do cineasta justamente promover este encontro, se retirar da complacência. A lógica que se repete filme após filme é a mesma: ao fim, o homem estará sempre sozinho com seus fantasmas.

Se a morte é presença inevitável, é preciso confrontá-la por todos os meios. Em Lettera de Salamanca (2002), Questi recebe a visita de certo senhor Nada, que traz consigo uma carta da Universidade de Salamanca que informa que ele deveria falecer três dias atrás (Sr. Nada se atrasou por conta de um encontro teológico-erótico). A morte está ali naquele figura do homem sem rosto de sobretudo e chapéu, falando numa língua estrangeira incompreensível, uma tradução suficientemente mundana de todo um imaginário popular sobre a visita da morte (O Sétimo Selo reimaginado como uma ficção caseira, felizmente acompanhada de bom senso de humor), mas ela também esta na figura do próprio Questi, que, diante do chamado da morte, se levanta da cama nu, seu corpo frágil a nos assombrar com seu reconhecimento da própria finitude. Se a morte pode chegar a nós com a poesia do imaginário popular, ela também é a concretude de um corpo cansado. Lettera de Salamanca termina por responder à pergunta: com que sonham os cadáveres?

Em Salamanca, a morte chega como um sonho, mas em Repressionne in Città (2005) ela é um pesadelo dos mais concretos: a morte chega outra vez como uma visita, mas agora pelas mãos de um burocrata torturador. Se todos os curtas caseiros de Questi apostam muito nos closes como elemento de construção cênica, até como uma forma de driblar as limitações de se fazer um filme solitário, aqui a ênfase em superfícies ganha uma função táctil. Isola-se cada parte do corpo para, quando ela for violentada, o peso da ação registrar com maior impacto. O filme é um catálogo muito particular de imagens de abuso. Há algo a se dizer sobre a forma como Questi propõe o próprio o corpo como matéria a ser atacada, um desagrado muito grande na forma do filme cujo tom direto revela um profundo mal-estar. Questi, num dos seus muitos gracejos, localiza a alma numa balão cheio de gás; mas qual o lugar do sublime, o filme parece se perguntar, se toda a carne pode ser colocada num moedor? Ao insuportável da violência, resta a graça da ficção com seus múltiplos detalhes que permitem enriquecer qualquer situação. Pode-se ficar caolho, mas não se pode perder nunca a dimensão da arte.

Repressionne in Città (2005), de Giulio Questi

Repressionne in Città (2005), de Giulio Questi

No melhor e mais rico dos filmes de Questi, Visitors (2007), a finitude e esta busca por formas de representar um desaparecimento é incorporada a um forte sentimento histórico. A morte de Giulio Questi não é mais o esvaziamento de um corpo, mas o desaparecimento de toda uma memória. O aspecto implícito de resistência política presente em todos estes filmes, escritos na sua própria insistência em existir completamente fora do eixo do cinema, seja ele industrial, seja de festival (concepções tão próximas num espaço como o do cinema italiano), toma o primeiro plano. É um principio como sempre dos mais simples: Questi é acordado pelos visitantes do título, fantasmas dos soldados fascistas que ele matou quando membro da resistência italiana na segunda guerra; “há uma espaçonave”, eles informam, “pronta para nos levar a outro mundo, mas antes é preciso que todos nos esqueçam, e você ainda esta aqui”. Da concepção dos fantasmas como fotos P&B, avatares de um processo histórico que a Itália de Berlusconi teimava em buscar apagar, até o momento em que Questi, arma contra a cabeça, pondera o pedido dos fantasmas e o filme se suspende para que a vida toda de um homem passe diante dele, Visitors encontra uma força enorme diante da ideia do desaparecimento, de todo um esgarçamento da memória. Há, neste sentar-se à mesa fictício de Questi com seus fantasmas, um encontro entre história pessoal (e o filme faz sentir todo o peso do que significa a consciência de que um dia se tirou a vida de outro homem) e do país e todo um olhar para as dificuldades de tal encontro e como esta mesma dificuldade serve para expiar um processo de amnésia histórica. Deste encontro na sala de estar, a ficção caseira abre espaço ao documento histórico: a memória da guerra civil italiana é liberada, pode retomar seu espaço reprimido. O homem diante da tentação suicida, a mesma que Questi refilmara várias vezes ao longo de todos estes filmes, pode contemplar o significado do chamado da terra dos mortos.

Visitors (2004), de Giulio Questi

Visitors (2007), de Giulio Questi

Todos os caminhos levam à morte. Questi retoma esta ideia filme após filme, mas é necessário sempre ao artista puxar a marcha ré e atrasá-la. É possível sempre que nos entregue mais vinte minutos sábios sobre o que um homem fez, sua permanência, seu lugar na história, o significado do seu desaparecimento. Estes são filmes muito particulares – não por nada, seus créditos são somente uma assinatura “por Giulio Questi” – sempre prontos a abraçar os conceitos de ficção mais excessivos e inesperados; da sua pobreza, brota sempre um imaginário rico e fascinante, Giulio Questi não partiu neste último suspiro criativo para filmar a morte em ação, mas seu oposto: o ato da criação, a última resistência do poeta.

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