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Anotações a quatro mãos em torno do Faroeste Spaghetti. Parte 2: o vento assobia e a tempestade se enfurece onde o sol do futuro nasce

O partigiano portami via che mi senti di morir

Il fiore del partigiano morto per la libertà

FF: Nós falamos muito sobre representações de história e colonialismo e isso faz muito sentido dada a iminência histórica do gênero e como ele acaba importado para a Europa. Uma coisa que me veio à mente é tentar pensar o spaghetti dentro da história do cinema popular italiano. Como eu disse lá antes, acho que ele se conecta muito bem, por exemplo, com o filme de horror. Há muitos pontos de contato entre os desvios que eles promovem em relação ao western americano com o que o peplum faz com o épico americano. O ciclo do spaghetti vai mais ou menos de 1965 a 1972 e é substituído quase que imediatamente pela ascensão do Poliziotteschi como o gênero de ação italiano. Porque o Poliziotteschi faz a mesma carnavalização barroca dos gestos de poder violentos que o spaghetti, mas não está mais ali localizado no novo mundo e nos horrores do colonialismo e expansionismo, e sim na própria história italiana – inclusive, frequentemente, direto das páginas policiais da época. E são filmes feitos às vezes pelo mesmo talento seja atrás das câmeras (Damiani, Castellari, Sollima) seja na frente (Nero, Millián). É fácil reconhecer a influência de um gênero sobre o outro e é curiosa essa mudança de significados quando do deslocamento espacial. Voltando ao faroeste italiano, também me chama muito a atenção o fato de que as últimas grandes produções do gênero – que de forma bem consciente parecem querer funcionar como um final, Keoma (Enzo G. Castellari, 1976) e Um Homem Chamado Blade (Sergio Martino, 1977) – sejam obras de realizadores associados primeiro com o policial, um com Franco Nero e o outro com o Maurizio Merli – que era o Dirty Harry local. É o último suspiro do gênero, puxando a autoconsciência da fabulação muito longe. Essas contaminações e os efeitos dela me interessam muito.

keoma

FC: Pra mim a geração do Keoma fechava o ciclo dos spaghetti, mas pode ser porque eu não conheça tão bem os filmes dos anos 80 e 90. Mas também acho que são os filmes enterrando o gênero, assim como o Clint faz nos EUA com Os imperdoáveis (1992). Tem o Monte Hellman um pouco depois do Keoma fazendo A Volta do Pistoleiro (1978) que é um filme de autor americano (mas não qualquer americano, aquele que tinha feito no fim dos anos 1960 dois faroestes sem família aparente), filmando na Almeria, numa produção espanhola e italiana, com um protagonista dos EUA (Warren Oates) e outro da Itália (Fabio Testi). Como com Fulci, é um filme estranho se tomarmos como base os spaghetti, mas não a filmografia do Hellman. É um filme-fênix: dessa fase final dos faroestes, mas o gesto inicial é de renascimento com a refilmagem da cena-prólogo que ele fez pro Por um Punhado de Dólares pra TV americana incidindo alguma moral ao longa do Leone. É um filme-híbrido, ao mesmo tempo que ele retoma toda uma safra italiana, ele tá ali dialogando com a herança americana dos mitos, dos laços de família, do estrangeiro shane-às-avessas, da terra fordiana por direito, que a essa altura foi ressignificada por Leone (a espera da estrada de ferro passando por sua terra valorizando seu capital). Não acho um filme fatalista, como muitos dizem, ele está o tempo todo às voltas com um recomeço apesar do destino, e aí é que a liberdade emerge… Além disso, é um filme de puro amor: a cena de sexo, que num primeiro olhar desconfiado alguém vai se enganar achando brega, tem uma verdade tão profunda naquele country meio Alcione quando canta a plenos pulmões que nem o Morricone alcançou esse lugar (vide a trilha da cena de sexo de O Vingador Silencioso).

A gente falou bastante de homens de esquerda da resistência no spaghetti e a ironia é que um dos retornos mais imediatos ao cinema americano foi, depois do Meu Ódio Será Tua Herança (Sam Peckinpah, 1969), a persona do Clint Eastwood, que é deslocada pro universo policial reaça do Dirty Harry, e o Clint diretor, um cineasta conservador republicano. Ao mesmo tempo, Revolver (Sergio Sollima, 1973) e Confissões de um Comissário de Polícia (Damiano Damiani, 1971), respectivamente, são filmes que caberiam inteiramente na nossa discussão anterior sobre lei e ordem e exemplos do que você menciona dessa substituição ao Poliziotteschi. Confissões… é a hipérbole da estrelinha de xerife sendo jogada na latrina. O que chega após o western é a modernidade kafkiana. E a lei se subjuga à vontade de poder e ao capital.

Gosto de como os gestos de violência são claramente contidos pelo diretor do presídio em Revolver – é uma frieza estratégica pra recuperar a mulher, mas também carrega um moralismo italiano carola. É um personagem que tá sempre prestes a explodir, em convulsão, mas segura cada impulso e expele no olhar. Já teria metido três balas no crânio de geral se fosse um spaghetti, mas em se tratando dos bons costumes da burguesia moderna italiana…. e aí é que o nó moral do último capítulo funciona mesmo sendo previsível. Isso não teria nunca como rolar num spaghetti porque em terra onde a vida tem pouco valor, quase nada, um conflito entre a vida da tua mulher e de um bandido recém-conhecido, você não tem nem porque piscar.

Mas de todos, o giallo A Morte fez um Ovo, do Questi, me parece o maior passo de radicalização estética, especialmente em relação à montagem. Eu já gostava bastante daqueles cortes ensandecidos das explosões na noite americana no final de Django Vem para Matar, mas o começo do filme seguinte… Não só por ser uma inversão narrativa, mas a forma como ele intercala os planos criando uma substancialidade para as elipses, dando um efeito de uma temporalidade esfacelada, quebradiça, como se o tempo fílmico compreendesse uma outra relação das imagens entre si, que não aquela de Lumière, Griffith e Kuleshov. É um outro obturador do mundo. O filme é sobre como a modernidade cria monstros e ele filma aqueles tonéis que processam a comida, que tritura a cadela, como um obturador da câmera, como uma arma, a mais poderosa.

Uma coisa que alguns Poliziotteschi têm em comum com os faroestes spaghetti são esses estudos da masculinidade. O Revolver tem esse quê salvacionista desse homem provedor; o Confissões são esses homens-emblemas da Justiça, o homem moderno utópico que acredita nas leis versus o homem arcaico que já abandonou-as por conhecê-las na prática. A mulher é a amante em fuga, a que se meteu no meio do furacão dos homens (máfia e política), logo precisa morrer. Nos faroestes a coisa é mais emblemática porque não há dialética (penso num filme distante como Uma Mulher sob Influência (John Cassavetes, 1974), por exemplo, onde o autoritarismo patriarcal ganha outra relevância e dinâmica quando na ausência da onipresente Gena Rowlands). N’A Volta do Pistoleiro, a mulher é a espiral da ação, n’ Os Violentos vão para o Inferno (Sergio Corbucci, 1968) tem a revolucionária que é peça-chave para salvar o mexicano e o polaco, Companheiros tem a líder rebelde; mas, grosso modo as mulheres se existem e não são bengalas, pontas, prostitutas, cuidadoras, emblemas familiares ou pretexto de sexo são meio que um guarda-sol ali atrás da esquina como cenário de fundo. Clint nesse sentido é muito sagaz no seu faroeste tardio: toda a trama se desenrola por causa de um cara que se sentiu ofendido quando uma puta riu do seu pau pequeno. E a surpresa da noite é o Leone que só filmava barba até chegar em Era uma Vez no Oeste com aquele final onde a modernidade é matriarca. Assediada e empoderada.

matriarca

FF: Uma coisa que me veio a cabeça com essa aproximação com o Poliziotteschi é que se western é um gênero no qual se está sempre negociando as bases do pacto civilizatório, a relação spaghetti/poliziotteschi, no que ela leva as alegorias de violência para dentro do espaço italiano, explicita duas coisas: primeiro como os italianos viam o próprio país como esse lugar em que questões de lei e ordem estão sempre sobre ataque e em frangalhos e, segundo, que, se a herança da civilização italiana é milenar, a Itália como nação é um fenômeno bem mais recente, como você já apontara lá em cima, uma república muito nova. Acho que esses dois fatores explicam muito esse fascínio dos italianos por essas histórias bárbaras do novo mundo e, de certa forma, o que os policiais fazem é um pouco o desfazer da ilusão de que elas não são sobretudo sobre o próprio barbarismo italiano.

Uma diferença notável entre os dois gêneros é que, apesar de muitos poliziotteschi se voltarem para o cidadão comum envolto em crimes ou para marginalidade, existe um filão grande de filmes sobre a polícia e policiais. É incrível observar como agentes da lei são figuras raras no centro dos spaghetti. O protagonista típico vai ser sempre um andarilho e este pode ser um pistoleiro ou um caçador de recompensas, mas ele raramente vai ser um representante oficial da lei. É uma recorrência no western como um todo a ideia da polícia como extensão dos interesses privados, o xerife como um pacificador em meio às várias forças da cidade ou lutando contra as pressões da mesma. Os italianos levam essa ideia além – a lei é invariavelmente muito fraca, frequentemente corrupta ou incapaz, a preferência será sempre pelo caçador de recompensas, que representa uma forma clara de privatizar o policiamento, sobre a figura do xerife. Mesmo o Corbett do O Dia da Desforra, que deve ser o caso mais claro de um agente da lei com um ponto de vista moral no gênero, está ali como uma figura de contrato. Falamos de Eastwood e é interessante notar que o primeiro veículo americano dele – A Marca da Forca (Ted Post, 1968) – tentava conservar o clima do Leone, enquanto o segundo, Meu Nome é Coogan (primeira parceria dele com o Don Siegel, do mesmo ano) era construído no movimento de levar o xerife do velho oeste para a cidade grande americana, um rito de passagem da persona dele.

corbett

Complementando uma historiografia rápida do pós spaghetti, existem mesmo bem poucos westerns italianos nos anos 80. Ali após Keoma são bem poucos filmes. Temos o do Hellman com o Testi, este do Martino que mencionei, Giulianno Gemma protagonizou dois últimos filmes no gênero no fim da década (um deles dirigido pelo Fulci). Keoma meio que funciona mesmo como fim simbólico do ciclo, até porque todas as últimas tentativas de fazer westerns com um orçamento mais robusto como o próprio Keoma, Vingança Cega (Sergio Martino, 1977) ou Trinity e Seus Companheiros (Damiano Damiani e Sergio Leone, 1975) perderam dinheiro. Depois dali existem filmes muito soltos: Nero protagonizou uma sequência tardia para Django e no começo dos anos 90 na cola daquele ciclo americano da época, ele e Castellari se juntaram uma última vez para um filme bem interessante chamado Jonathan e o Urso (Enzo G. Castellari, 1994) no qual, inclusive, o Nero co-escreveu o roteiro. Nessa mesma época o Terence Hill fez uns pares de adaptações do Lucky Luke do Goscinny. Imagino que, se a indústria italiana estivesse em melhor estado nessa época, teria se aproveitado mais do surto americano. Sei que em 1981, já no meio do colapso geral da indústria, teve um último spaghetti de sucesso com um filme do Ferdinando Baldi chamado Comin’ at Ya!, que inclusive foi bem exportado, mas pelo que li – nunca o vi – foi muito na cola do 3D cheio de tiros contra a plateia e gimmicks similares. Acho muito simbólico do esgotamento da imaginação do gênero na Itália o fato de que, no meio dos anos 80, Duccio Tessari e Gemma, que tiveram uma parceria de muito sucesso nos anos 60, se reuniram para uma adaptação de Tex (Tex Willer e os Senhores do Abismo, Duccio Tessari, 1985) e o resultado tenha sido um sub Indiana Jones muito mais que um revival do gênero.

FC: Na segunda cena de Companheiros, a primeira do flashback, o Vasco (Tomás Milián) engraxa as botas de um militar do Porfírio Diaz, enfia-lhe a espada criando uma revolta relâmpago pra, em menos de um minuto, engraxar as botas do general da revolução, o Mongo. No spaghetti, as coisas são bem claras, postas com uma frontalidade evidente e ainda assim isso torna tudo mais interessante: num faroeste zapatista, o “bem contra o mal” até está lá, porque de fato os oprimidos têm mesmo é que se rebelar contra os opressores, mas como um norte, não como prática didática. Existem as nuances que dão a graça da coisa, existe o revolucionário que, no fundo, mas nem tão no fundo assim, só está interessado na grana (o Mongo, por ex.). A grande cena de Tepepa é quando Milián vai devolver sua arma ao presidente após ter ganho a revolução. “Eu roubei esse rifle do exército pra lutar contra o exército. E agora eu tenho que devolver pro exército. Quem ganhou, a revolução ou o exército?”. No começo de Quando Explode a Vingança, Leone exacerba a asquerosidade da elite na diligência, mas o assalto logo em seguida, num filme zapatista, não é político no sentido estrito, é um ato de banditismo, inclusive com direito a estupro do personagem mais cativante da estória. Em Da uomo a uomo o Bill Meceita (John Phillip Law) descobre ao fim que o Ryan (Lee Van Cleef) estava na gangue que matou sua família e mesmo assim são os dois contra o mundo. Uma das coisas mais cativantes pra mim do Três Homens em Conflito é a relação – não exatamente de amor e ódio – entre o bom e o feio. Começa por aí: seus arquétipos não são de oposição. Eles precisam criar uma parceria até que o ouro seja encontrado. Eles tentam se matar, ou pior, assumem a crueldade mais torpe um com o outro até que ressurja a co-dependência vinda da ganância. Em alguma fração, seja no Quando Explode a Vingança, Companheiros, A Morte Anda a Cavalo, Os Violentos vão para o Inferno, Uma Bala para o General vai haver um gesto de… humanidade (eu ia escrever ternura, mas aí já é demais). Esses gestos não são sempre elevados, singularizados, realçados, mas estão lá, numa troca de cigarro ou de amantes, num salvamento de degola ou de tortura, numa briga despropositada ou oportuna. Não existe empatia, mas desconfiança. Existe andar lado a lado. Cumplicidade criminal, ocasional broderagi. Tapinha nas costas. Dentro de um cenário de caos, guerra e fome, de eterna trapaça. O Vingador Silencioso não tem isso, mas ainda na coisa do “bem contra o mal” tem uma sagacidade de início: revirar as já viradas figuras dos bounty hunters do Leone (dos samurais de Kurosawa). Não são mais anti-heróis, são vilões tacanhos, mas ao fim “superiores” (nunca moralmente) porque ao lado da lei. Quando Tigrero (Klaus Kinski) mata seu primeiro alvo, fala à mãe da vítima de forma zero convincente algo como “eu também preciso comer”. Os faroestes spaghetti partem de um processo de rebaixamento das figuras de poder a um patamar igualitário da danação. Uma espécie de comunismo utópico às avessas.

O capitalismo maximiza a oferta da disciplinarização dos corpos. Ganha-se em técnica. A modernidade vira uma questão de opacidade e transparência. O Poliziotteschi lida com a “invisibilidade” dos métodos: assim como não se enforca mais em praça pública, deixando-se apodrecer nas prisões (que costumavam ser temporárias na época dos xerifes do velho oeste), não se pode tocar na máfia, nem no sistema (se alguém é pego, o organismo não é comprometido, substitui-se por outro e pronto). Daí os filmes policiais serem mais labirínticos. A trama dá voltas, se contorce por cima de si própria para muitas vezes chegar na conclusão de que a lei tem um ponto cego e isso ou 1) torna-se impraticável de implodir ou 2) o protagonista precisa criar seu próprio salvo-conduto para fazê-lo, o que gera novos pontos cegos na lei – o germe da bactéria fascista.

veias abertas

Espacialmente não poderia ser mais distante do faroeste: sai a claustrofobia labiríntica moderna, entra os grandes quadros, veias abertas. Um filão paisagístico, afinal. Nos spaghetti, uma entonação constante são os movimentos bruscos de câmera que irrompem da fluidez classicista (Corbucci o faz como ninguém). Mas eles são só a outra face da moeda de um gênero que trabalha o estanque, o retratístico (marca especial do Leone). É um trabalho muito específico, paralelo ao do Warhol diante da fascinação do screen magnetism, mas com bases diferentes e um sentido oposto: Warhol vai ao universo pop em busca do glamour. Glamour pra ele é aura. Os spaghetti querem desidratar o glamour, a maquiagem não serve para enfeite, embelezar, mas como emulação da aridez, da desidratação, da insolação. A secura da pose não é só para a captura da iconicidade – a força daquelas presenças é o castelo de cartas diante de um furacão de violência. É o que resta. Os três últimos planos de Quando Explode a Vingança e, portanto, a despedida da carreira do Leone no faroeste spaghetti, são literalmente um close em slow motion de um flashback, uma explosão que sangra o quadro e um close no presente pra entrada dos créditos. A nota pedal que estende as breves melodias do Morricone, seja da harmônica, da ocarina ou o zumbido da mosca, o chiado do mijo, o farfalhar do cata-vento juntos à decupagem dialética entre grandes-angulares e os super-closes contribuem pra formulação de uma imobilização temporal daqueles corpos. A absurda pesquisa de fotos do século XIX que Leone fazia era sua graça pessoal, foi o que inspirou aquelas caras marcadas de sol e poeira, é o que contribui com o tom ocre da geração.

tom ocre

gnd ang. prof. campo

Outra pesquisa, esta mais técnica, nos laboratórios da Technicolor em Roma, desenvolveria um formato crucial ao filone: o Techniscope. Tecnologia um tanto desprezada pelos grandes estúdios americanos porque na ampliação do negativo “perdia-se qualidade”, mas por outro lado seu barateamento dos custos de produção viabilizava a obsessão/ambição de muitos diretores. Diminuindo as perfurações pela metade (4 pra 2) e invertendo a relação da área do negativo do Cinemascope (este dobra a largura em relação ao 1:1,17 pelo processo de anamorfização, já o Techniscope diminui pela metade a altura do negativo), usa-se a metade de filme para a mesma minutagem. Além disso, existe uma lógica de decupagem contrastada e violenta do spaghetti que preza o (super) close em tele (às vezes em movimento), e também uma profundidade de campo absurda, às vezes junto ao close (por isso os fotógrafos usavam tanta luz direta no sol de rachar da Espanha), geralmente misturada à câmera na mão nos momentos de turbulência e porradaria. Pra essa lógica (é claro que existem as exceções, Django nem scope é) fazem toda a diferença a facilidade do manuseio do equipamento em set e as lentes esféricas (não anamórficas como o Cinemascope), que, além de mais leves, não distorcem o horizonte nas grandes angulares. Acho que muito da liberdade e inovação formal que estabeleceu o imaginário do gênero vem daí.

muita luz 1

FF: Desconfiança é um bom termo. Algo que une muito esses filmes é um sentimento de paranoia. Todos os três grandes filones do cinema italiano do período 65-80 são paranoicos de formas diferentes. O giallo lida diretamente com a imprevisibilidade da morte, whodunits no qual o quem nunca importa, só a certeza de que esta construção violenta está destinada a se repetir em eco. No Poliziotteschi existe essa certeza de um estado insuperável das coisas, a corrupção italiana é sempre intransponível. De certa forma, o spaghetti aproxima as duas tendências, a condição mais existencial dos gialli com a paranoia social e histórica do Poliziotteschi. Essa crueldade e essa brutalidade são intransponíveis para além desses momentos de alianças sempre temporárias que são forjadas. Aquela imagem do forasteiro chegando à cidade enquanto a câmera descortina as reações tensas dos moradores locais. Os povoados do spaghetti vivem sempre nesse estado de alerta de violência. Ninguém chega à cidade sem deixar de despertar esse temor. No poliziotteschi vive-se sempre entre um estado criminoso e um estado policial, enquanto no spaghetti essa relação é tênue e turva. Um dos efeitos disso é que os povoados são quase sempre retratados de forma mesquinha (sobretudo os americanos, porque em contrapartida há sempre um mínimo de simpatia paternalista quando a ação transcorre no México). Um tribalismo muito forte que olha para o que vem de fora com suspeita e que, inclusive, pouco diferencia entre os errantes violentos que tendem a protagonizar os filmes e os ocasionais inocentes que entram ali. Penso por exemplo em como em Joe, o Pistoleiro Implacável (Sergio Corbucci, 1966) as lideranças da cidade no fundo preferem que ela queime a aceitar a ajuda do índio protagonista, inclusive com uma cena na qual o Burt Reynolds precisa lembrá-los de que ele é o único não estrangeiro ali. São filmes nos quais as relações de poder violentas são tão explícitas que todos suspeitam de todos o tempo todo. As cidades são quase sempre imaginadas como um amontoado de individualidades. São comunidades cujas vivências são mediadas constantemente menos pela violência em si do que pela ameaça dela.

Claro que muito disso é também da esfera da convenção. E quando discutimos um fenômeno como o spaghetti não podemos ignorar por completo a lógica do filone. Estava aqui assistindo A Estrada para o Forte Alamo (1964), que é um filme que Mario Bava dirigiu mais ou menos ao mesmo tempo que o Leone realizava Por um Punhado de Dólares, e é um filme muito bem-acabado e visualmente expressivo, apesar de ser óbvio que faroeste não é bem a praia do Bava, mas o que me impressionou é que o filme passaria fácil por um filme B de cavalaria dos anos 50. É um filme pré Leone e tudo dele reflete isso. Não haverá afinal espaço para uma pretensa força estabilizadora como a cavalaria americana, a não ser como pano de fundo nesses filmes (no Três Homens em Conflito, o exército faz justamente a função oposta e ajuda completar o retrato do caos selvagem), assim como ataques de tribos indígenas ocupam um espaço mínimo na imaginação deles. Nessa hora ficam explícitas as rupturas com as ideias de ficções possíveis e de como vai se buscar novas fundações para servirem de ponto de partida aos filmes.

Penso muito nisso porque algo que o Leone introduziu foi esse sentimento de fábula que o gênero de um modo geral abraça, seja nos melhores ou nos mais tolos filmes. Esse picaresco que se move via um acúmulo de situações violentas, que estão sempre em choque umas com as outras. Tem uma ideia recorrente de que existem muitas histórias sendo contadas ao mesmo tempo, de que cabe ao filme escolher em quais delas focar. Daí essa progressão entre aproximações e afastamentos. Sabemos de antemão, tanto em Por uns Dólares a Mais como em Três Homens em Conflito, como as triangulações dos protagonistas vão se organizar no fim, mas o filme se move sempre no sentido de dispensá-las, mandar as três partes em várias direções, permitir que tracem alianças e voltem atrás delas. Claro que Leone depois do primeiro filme tinha mais bala para pintar esse cenário numa lógica de epopeia que a maior parte dos realizadores, mas esse mesmo princípio de acumulação picaresca de situações violentas, alianças e traições vai estar num filme como Companheiros, O Dia da Desforra ou por exemplo na série Sartana. Claro que tem exceções: me lembro de um filme interessantíssimo do Tonino Valerii, O Preço do Poder (1969), que é uma reimaginação do assassinato do Kennedy com um presidente americano visitando o interior do Texas em 1881, e ali o desejo de espelhar a história faz a narrativa ter um foco maior e dispersar menos, mesmo que o filme precise encontrar espaço para as expectativas de gênero. É um filme muito interessante, inclusive, porque abastece de forma bem particular a lógica da paranoia que menciono acima.

Você fala do refinamento específico dos italianos e enquanto costuma-se passar muito tempo tratando das diferença e aproximações entre os americanos e italianos (e nós mesmos fizemos isso muito nesse papo), tem algo ainda a se dizer sobre o que esse deslocamento significa. Porque se o ponto de partida inevitável é um período expansionista da história da América do Norte, ele faz isso com uma série de especificidades seja de técnica, seja de bases narrativas, e aí acrescentando dois outros elementos de atuação e de espaço. Sobre os atores, um problema desse filme do Bava que mencionei – e que é recorrente nos filmes feitos entre 1963-1965 – são justamente os atores, muitas vezes bons, mas que apenas reproduzem os códigos de presença dos filmes americanos – algo que se torna cada vez mais raro a partir da metade da década. Existe uma forma de estar no mundo muito própria nesses filmes, e alguns atores a dominam e outros não. Acho que o mesmo vale para o espaço, pois as pradarias espanholas e iugoslavas em que a maioria desses filmes eram rodados (ou as fazendas e pequenos povoados do interior da Itália nos filmes de baixíssimo orçamento) são muito diferentes do Monument Valley. Têm uma característica própria, mais melancólica e menos grandiloquente, que influencia diretamente a personalidade dos filmes. Inclusive nisso, o ir ao Monument Valley, adentrar a terra do John Ford, é um gesto muito claro do Leone no Era Uma Vez no Oeste, que ajuda a explicar o caráter mutante e híbrido do filme. Falamos muito hoje em dia em novas formas de ficções, e ali, nessa transmutação EUA/Itália, essa passagem de olhares tem uma ilustração bem clara de como isso pode acontecer, como algo novo pode brotar (curiosamente um fenômeno reverso, e bem menos expressivo artisticamente, vai acontecer na direção oposta quando, no fim dos anos 70, o giallo se transmuta do outro lado do Atlântico no slasher).

o especialista

FC:  Três Homens em Conflito era meu filme preferido de pré-adolescência, que eu via nas tardes de bangue-bangue com meu avô. Nunca me perguntei o porquê. Podia ser a sujeira, a coisa picaresca, a anarquia dos atos ou só um magnetismo sobrenatural, mas eu suspeito que fosse essa sucessão de momentos explosivos que, como você disse lá em cima, podem ter sido configurados para as salas italianas de prima, seconda e terza visione com muita rotatividade, mas é também uma costura, um craft muito inspirado. Às vezes essa costura não funciona pro filme de cabo a rabo, mas vai ter uma sequência aqui ou ali que é decupada de forma a valer pelo filme todo. Eu já não lembro muito da estória do O Especialista (Sergio Corbucci, 1969), mas aquele sequência perto do fim em que os moleques botam a cidade inteira pra rastejar pelada, isso vai ficar na memória até eu perder minha segunda bengala. Esse acúmulo que você fala não tem tanto a ver com planos bem compostos, apesar de o serem quase sempre, vem de uma dinamite de adrenalina, como no caso das explosões das pontes de Três Homens… e Quando Explode a Vingança, e normalmente não estão isolados, vêm como uma ligadura que atravessa compassos. É puro ritmo – tensão e relaxamento, suspensão e conclusão, tônica, subdominante e dominante – composto como música orquestral. E aí a relevância fundamental do Morricone. Se, como John Cage dizia, todo ruído é som/trilha, todo gesto importa, é movimento, pro bem ou pro mal, tudo precisa ser incorporado. Tá tudo lá naquele final da trilogia… o feio, a grande personagem do filme, fugindo de um tiro de canhão, batendo a cabeça numa lápide, entra o oboé de The Ecstasy of Gold, as quatro notas sobre dois acordes do piano, sobe a grua revelando a vastidão do cemitério, o cachorrinho assusta, os dois correm, a coloratura indescritivelmente estonteante da Edda Dell’Orso tomando o lugar do oboé como força primária melódica se junta às pans teladas sobre o feio correndo. “Ache o tesouro”, a brincadeira infantil mais lúdica fechando um faroeste. A guitarra distorcida oscilando entre duas notas e o quadro virando uma pintura abstrata em movimento e nem chegamos ao duelo final. Se essa profusão de estímulos, cores, movimentos, modulações não comovem ou sequer abalam a gestalt de um ser humano… bicha, esse spaghetti então é Westworld e você já é um andróide e nem sabe.

FF: O cinema de gênero italiano tem esta qualidade maravilhosa que é uma condução musical. Esta confiança de uma organização operística que abandona a narrativa por essas imagens orquestradas. É parte do encantamento desses filmes e quando falamos no spaghetti, encantamento é uma boa palavra. E aí o grande paradoxo: como pode encantar algo cuja matéria prima é tão bruta? Acho que parte do fascínio constante desses filmes vem dessa contradição. Um filme como O Vingador Silencioso é ao mesmo tempo lindo e terrível. São filmes de uma carga pesadíssima, quase todos na chave negativa, mas tem algo neles muito convidativo e sedutor. Tem algo aí que me parece muito relevante quando pensamos esses filmes dentro de um quadro de 2020, que é pensar como o cinema contemporâneo em todas as suas esferas tem uma tendência a limpar a imagem. O western italiano faz justamente o movimento oposto: ele emporcalha ela, é tortuoso, trágico por princípio (é notável quantos desses filmes partem dos clássicos para construir versões corrompidas, mas muito fortes deles, como Deus Criou o Homem e o Homem Criou o Colt, de Enzo G. Castellari, de 1968, ou O Pistoleiro da Ave-Maria, de Ferdinando Baldi, de 1969), dedicado quase sempre a deformar o drama de retribuição. Mas faz tudo isso por meio de uma ficção vibrante, tem ali uma poética da poeira com a qual ainda pode se aprender muito.

poética da poeira

Filmografia comentada e indicada:

1964 

Per un Pugno di Dollari (original) / Por um Punhado de Dólares (Brasil) / A fistfull of Dollars (Int.) [Sergio Leone]
La strada per Forte Alamo / A Estrada para o Forte Alamo / The Road to Fort Alamo [Mario Bava]

1965

Per qualche dollaro in più/ Por uns Dólares a Mais / For a Few Dollars More [Sergio Leone]

1966

Django [Sergio Corbucci]

La resa dei conti / O Dia da Desforra / The Big Gundown [Sergio Sollima]

Il buono, il brutto, il cattivo / Três homens em conflito / The good, the bad and the ugly [Sergio Leone] 

Quien Sabe? / Gringo ou Uma Bala para o General) / A bullet for the General [Damiano Damiani]
Navajo Joe / Joe, o Pistoleiro Implacável / Navajo Joe [Sergio Corbucci]

Le colt cantarono la morte e fu… tempo di massacro / Tempo de massacre / Massacre Time [Lucio Fulci]

1967
Faccia a Faccia / Quando os Brutos se Defrontam / Face to Face [Sergio Sollima]

Se sei vivo spara / Django vem para matar / Django, Kill! If you live shoot [Giulio Questi]

I crudeli / Os Cruéis / The Hellbenders [Sergio Corbucci]

Da uomo a uomo / A Morte Anda a Cavalo / Death Rides a Horse [Giulio Petroni]

1968

C’era una volta il West / Era uma vez no Oeste / Once upon a time in the West  [Sergio Leone]

Il mercenario / Os Violentos vão para o Inferno / The mercenary [Sergio Corbucci]

Il grande silenzio/ O Vingador Silencioso / The Big Silence [Sergio Corbucci]

Corri uomo corri (Saludos hombre) / Corre, Homem, Corre / Run Man Run [Sergio Sollima] 

Ammazzali tutti e torna solo / Mate Todos Eles e Volte Só / Kill Them All and Come Back Alone  [Enzo G. Castellari]
Se incontri Sartana prega per la tua morte / Se Encontrar Sartana, Reze pela sua Morte / If You Meet Sartana… Pray for Your Death [Gianfranco Parolini]

Quella sporca storia nel west / Deus criou o homem e o homem criou o Colt / Johnny Hamlet [Enzo G. Castellari]

1969

Gli specialisti / O Especialista / The Specialists [Sergio Corbucci]

Tepepa [Giulio Petroni]

Il prezzo del potere / O Preço do Poder / The Price of Power [Tonino Valerii]
Sono Sartana, il vostro becchino / Sartana, o Matador / Sartana the Gravedigger [Giuliano Carmineo]
Il pistolero dell’Ave Maria / O Pistoleiro da Ave Maria /Forgotten Pistolero [Ferdinando Baldi]

1970

Companeros/ Vamos Matar, Companheiros! / Companeros [Sergio Corbucci]

Lo chiamavano Trinità / Trinity é o Meu Nome / My Name is Trinity [Enzo Barboni] 

1971 

Giù la testa / Quando Explode a Vingança/ Duck, You Sucker ou A fistfull of Dynamite [Sergio Leone]

… continuavano a chiamarlo Trinità / Trinity Ainda é Meu Nome / Trinity is Still My Name [Enzo Barboni]

1973

Il mio nome è Nessuno / Meu Nome é Ninguém / My Name is Nobody [Tonino Valerii]

1975 

I quattro dell’apocalisse  / Os Quatro do Apocalipse  / The four of apocalypse [Lucio Fulci]

Un genio, due compari, un pollo / Triniy e seus companheiros / A Genius, two partners and a dupe [Damiano Damiani]

1976 

Keoma [Enzo G. Castellari]

1977
Mannaja / Mannaja – Um Homem Chamado Blade / A Man Called Blade [Sergio Martino]

1978

Amore, piombo e furore/ A Volta do Pistoleiro// China 9, Liberty 37 [Monte Hellman]

1994

Jonathan degli Orsi / Jonathan e o urso / Jonathan of the Bearts [Enzo G. Castellari]


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