A dificuldade da fala

agosto 12, 2015 em Cinema brasileiro, Em Pauta, Raul Arthuso

Meu Nome é Tonho

Meu Nome é Tonho (1969)

por Raul Arthuso

Uma das linhas de força pela qual é possível se fazer uma leitura da história do cinema brasileiro é a busca de diretores e pensadores por um gestual tipicamente brasileiro. Espremidos desde sempre entre a leveza prática do cinema americano e a expressividade artística do europeu, os estetas e profissionais brasileiros se vêem maravilhados e, ao mesmo tempo, apavorados pela tarefa histórica de realizar um cinema brasileiro, ou melhor, de realizer filmes cuja matriz é clara – o “grande” cinema estrangeiro -, mas aclimatados pela “cor local”. Mas como inventar um conjunto gestual, um modo de comportar-se diante da câmera, a prosódia e a fala, em uma cultura mal-formada, impotente em seu próprio reconhecimento enquanto expressão viva do povo e incapaz de criar seu próprio modo de representação nas outras artes antecedentes do cinema? – e a genialidade de Machado de Assis não reside também em sua clarividência do processo histórica mal-ajambrado da sociedade brasileira cuja representação só pode, por conseqüência, ser fragmentária, incompleta, impotente, imprecisa e deficitária como ela?

O cinema brasileiro moderno enfrentou frontalmente essa questão a partir do Cinema Novo. Se algumas chanchadas – especialmente no diálogo franco entre o grande-branco-falso-nobre Oscarito e o pequeno-negro-sobrevivente-populacho Grande Otelo – intuíram a dificuldade da expressão nacional na forma cinematográfica nas tensões nem sempre evidentes e quase nunca bem resolvidas entre a cópia brasileira e a matriz estrangeira, a fala e a expressão no cinema brasileiro até os anos 1960 é uma caça ao tesouro por bandeirantes cegos. No melhor dos casos, resta um equívoco bem intencionado como O Cangaceiro (1953), de Lima Barreto; o grosso da produção, contudo, é a busca histérica pela superação do mal-falado, do mal-expressado, do mal-gestualizado da cópia para alcançar a leveza e a beleza das matrizes do grande cinema estrangeiro. É só com o Cinema Novo que o modernismo de 1930 alcança as telas: gestual, expressão (ou a falta dela) e a fala (ou a falta dela) ganham valor como elemento de verdade e de fato viram objeto de estudo dos artistas em busca de autenticidade.

Com Ozualdo Candeias, a “dificuldade da fala” torna-se a “fala difícil” – parafraseando a fórmula de Rodrigo Naves. Em seus filmes, as personagens têm dificuldade de falar, mas ao mesmo tempo falam tudo. Em A Margem (1967), ouvem-se poucas frases. “Me dá a flor” talvez seja a mais marcante delas. A voz não é porta para os sentimentos, mas expressão de sua alma. É com o corpo que os marginalizados de Candeias existem como civilizados; o rebolado, o andar, o jeito de arrumar o terno, o riso, os tiques do louco colocam as personagens no mundo e as posicionam em relação às outros. A fala, teimosa, rara, tenra e violenta, é o fiapo de alma resistente trazido ao mundo. A repetição de “Me dá a flor” com intensidade, tonalidades e sentimentos diferentes transforma a curta frase num pequeno grande suplício, a tragédia íntima de existir e resistir. As personagens de A Margem pouco falam, mas expressam toda sua fome de viver o amor, a amizade ou a simples experiência de andar pela cidade. Viver a vida.

Inesperadamente, Candeias é o único cineasta brasileiro a concretizar plenamente a Estética da Fome de Glauber Rocha: “somente uma cultura da fome, minando suas próprias estruturas, pode superar-se qualitativamente: e a mais nobre manifestação cultural da fome é a violência”. O silêncio de A Margem é, por um lado, poético, mas ao mesmo tempo violento. Violentamente poético. A repetição de poucas palavras ao longo do tempo dá força pulsante às palavras, como o intenso “Enfia no cú”, ultimato dado pela “Fortuna” ao personagem de Zézero (1974) quando, de volta da cidade, rico após ganhar na loteria esportiva, pergunta a ela o que fazer com aquela quantidade de dinheiro após descobrir que toda sua família morreu de fome. As palavras, no cinema de Candeias, aumentam o volume e explodem o significante. “Me dá a flor” em A Margem não é só um pedido ou uma súplica, mas uma forma de estar no mundo: sua fome de viver.

Zézero

Zézero (1974)

Evidentemente, um equívoco pode ser extraído desse procedimento: é possível aceitar os poucos diálogos de A Margem não como uma dificuldade da fala, mas como uma opção elegante pela imagem. É um equívoco recorrente demonizar o diálogo e a palavra como algo menor na linguagem cinematográfica. A palavra seria o lugar da explicação, do sentido, da vulgaridade. Elegante é dizer menos e mostrar mais. Excesso de diálogo recebe, muitas vezes por muitos escribas, o selo de verborragia e, portanto, algo nocivo ao grande cinema. Mas Candeias não é um beletrista, muito menos um primitivo. Seu uso da palavra e dos diálogos se dá no terreno da música. Ele não escreve, mas modula os diálogos, como frases musicais numa partitura invisível apenas concretizada na conjunção da tessitura sonora e da violência de sua mise en scène. Pois, o diálogo em Candeias não está lá para ser filmado, mas para ser expressado. Eles existem não para a câmera, mas para o próprio cosmos das personagens. Por isso, sua construção de frases, suas modulações e ritmos, não comportam o ritmo da câmera, mas o da própria existência.

Em Meu Nome é Tonho (1969), ao contrário de A Margem e Aopção ou as Rosas da Estrada (1981), as falas são abundantes. Candeias não economiza em tentar colocar pelo menos uma palavra na boca de cada personagem. Se há uma mudança de quantidade, a essência, porém, é a mesma. O recurso é musical: há repetições, transformações de entonação, mudanças de tempo para dar novos significados às palavras, às frases e, no limite, ao emissor delas. Alguns dos capangas de Manelão (Nivaldo Lima), por exemplo, dizem sempre a mesma frase em contextos diferentes, repetindo as mesmas palavras que, em seu esvaziamento ou insistência, ganham novos sentidos ao longo do filme. Em outra instância, é o diálogo que estratifica as relações de poder no bando de Manelão. O “senhor feudal” do bando é o único que se expressa por palavras propriamente; seus capangas apenas obedecem e tomam posses de seus respectivos bordões. São tipos: Mineiro, Baiano, Gaúcho, Cuiabano – homens retirados de seus lugares e de suas especificidades, reduzidos, pela submissão ao poder tradicional da força, da bala, do dinheiro e do sexo, à sua essência estereotípica. Esta, por sua vez, é indiferenciada na imagem: a diferença entre Mineiro e Cuiabano pouco importa na caracterização das personagens. Não é sua roupa ou algum gesto que os diferenciam de fato (pois estão reduzidos ao essencial Mineiro ou Cuiabano), mas sua fala, seu bordão, seu refrão. O riso em Meu Nome é Tonho é a marca do tratamento da voz e da expressão no filme. Ele atravessa a narrativa e as personagens, ganhando novas significações: ora é crueldade, como Manelão rindo da morte de um de seus rivais; ora é inocência, quando um dos interioranos pensa ter convencido Manelão a mudar de idéia; ora é sacana, quando Tonho e um desconhecido “apeiam seus cavalos” na beira da estrada – na verdade, uma insinuação de homossexualidade do herói após o incesto com sua irmã. A questão é a modulação de um mesmo signo vocal ao longo do filme: o riso é usado como uma nota musical em meio à tessitura complexa do som do filme.

Daí o papel fundamental da música em seu cinema. Tanto o jazz quanto a música caipira, o sertanejo ou a banda sinfônica fazem uma espécie de cama onde se deita a encenação. As imagens seguem a música e não o contrário. Seus filmes se iniciam pela música e os créditos compõem um pequeno ensaio sentimental da participação dos profissionais nessa peça musical que se desenrolará por uma hora e meia. A ficção, em Candeias, começa com a música; a imagem induz a realidade da vida. O diálogo, a voz e sua potência expressiva ganham força a partir de um pensamento conjunto com a música, composição do mesmo evento sonoro. Voz é igual a som; diálogo é frase musical.

O auge desse meio expressivo se dá em A Herança (1970) quando as vozes são substituídas por sons de animais, não sincrônicos, mas trabalhados em harmonia com os ambientes e a música. A Herança é uma corruptela do Hamlet de Shakespeare sob o filtro da picardia machadiana. A ausência de voz não significa falta de diálogo: a palavra está lá, escrita nas legendas e nas bocas silenciosas, proferindo frases. Falta, isso sim, a matéria dele, sua carne. As legendas, por sua vez, reproduzem o estilo elizabetano da peça, ainda que modificações nas frases se dêem aqui e ali para a adaptação ao interior paulista. Mas, em essência, A Herança concretiza a incapacidade de expressão do cinema brasileiro: ungido a fazer de sua cultura equivalente à grande cultura do outro ou a macaquear a excelência estrangeira sob cor local, o cinema brasileiro fica sem expressão.

A Herança

A Herança (1970)

A Herança é uma grande zombaria do expressionismo caipira formulado por Sganzerla em crítica no início dos anos 1970 ao cinema de estúdio paulista. Não é Hamlet ao mesmo tempo em que não poderia deixar de sê-lo; não é nacional, na medida em que é sua maior expressão. O filme existe como decalque da grande cultura universal recalcada em grande cultura nacional. É um grande “Enfia no cú” para a obsessão freudiana do cinema brasileiro em posicionar-se ao lado da indústria e garantir sua existência pela relevância histórica frente a uma sociedade que pouco ou nada tem a ver com a modernidade inerente do cinema. Cinema não combina com o Brasil: falta-lhe voz. A dificuldade em compor um conjunto de artifícios expressivos de nossa “brasilidade” no cinema torna-se um difícil vazio de expressão. Essa dificuldade/deficiência, quando transformada em expressão, só pode ser violenta. A câmera de Candeias não filma a cena; a invade; coloca-se a noventa graus do corpo do ator, gira ao redor da ação, penetra no corpo da mulher quando Zézero tenta o estupro frustrado da prostituta, passa com o veículo na estrada, fixando-se nos rostos das mulheres que preferem vender o corpo a continuar cortando cana em Aopção ou as Rosas da Estrada.

Mais uma vez: Candeias é o verdadeiro cineasta a concretizar a estética da fome, e por isso seu cinema não cabe exatamente no rótulo do “cinema marginal” e tão pouco fica confortável ao lado dos cinemanovistas. Sua originalidade é sua fome e sua maior miséria é que esta fome, sendo sentida, não é compreendida. Pois essa conjunção da “fala difícil” e a violência invasiva de sua imagem valeram a Candeias um lugar de primitivo – mais uma vez a estética da fome: “para o observador europeu, os processos artísticos do mundo subdesenvolvido só o interessam na medida que satisfazem sua nostalgia do primitivismo”; aqui, nós, aculturados, seres pensantes, urbanos, instruídos, somos os europeus. Ou seja, a cultura.

“Primitivo” é um estágio pré-cultura. Candeias é, em geral, entendido como um cineasta da matéria bruta, da rudeza do mundo e o estado quase natural de suas personagens. Mas, Zézero não é Fabiano – um é reduzido a bicho, é todo bicho, enquanto o outro passa por uma processo civilizatório atravessado pela violência. O universo dos filmes de Candeias não é pré-civilizatório. Pelo contrário: seus filmes se passam num mundo pós-civilização, quando o projeto moderno de emancipação do homem falhou, o humanismo é incapaz de resolver a questão cultural e as estruturas sociais são tão bem delineadas que é possível enxergá-las em sua faceta pública – a divisão centro e margem de A Margem; interior e cidade de Zézero; estrada/casa grande e acostamento/senzala de Aopção – e em sua intimidade – a ordem feudal do interior paulista em A Herança; a estrutura hierárquica do bando de Manelão em Meu Nome é Tonho. A violência da mise en scène que contamina as personagens não é animalesca, mas apocalíptica. A fala difícil que a origina não expressa um retardo, mas uma superação: a linguagem explode ao longo do cinema de Candeias em uma sinfonia corporal e gestual que representa a própria dificuldade de uma cultura mal-formada. Contra o gesto defectivo, pois mal-ajambrado, a violência do gesto aleijado. Ver Candeias com exotismo domestica a violência de seu cinema: ela é a real expressão da sofisticação do cinema brasileiro – poética, na medida em que alinha um cosmo de sensações e gestos; sádica, pois rompe essa poética para ver sangrar as estruturas nela representadas. A precisão contemporânea de seu cinema é essa desmedida em que a violência brutal ultrapassa o estado bruto e formula uma crítica da falência da cultura. Afinal, a Fortuna aparece em seu cinema como uma alegoria de todas as mídias – uma fantasia composta de negativos cinematográficos, fitas sonoras magnéticas, jornais, revistas. E quando sua ação se mostra um grande engodo, ela mesma, Fortuna e Cultura, nos manda “enfiar no cú”.

Share Button