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O funeral do século

O cenário em tela é a desintegração da União Soviética e suas sequelas. Loznitsa atualmente vive na Alemanha, filmando com parcerias internacionais: Donbass, de 2018, foi construído a partir de material coletado no Youtube, postado por milícias pró-Rússia e separatistas da Ucrânia, que apoiam a República Popular de Donetsk, estabelecida em 2014. Por sua vez a Rússia anexou, também em 2014, a Crimeia, território ucraniano. Pagou um preço elevado em sanções econômicas dos EUA e Europa, que atingiram pessoalmente aliados do Presidente Putin. Em dezembro de 2019, Putin e Zelenski, mandatário ucraniano, reuniram-se sob as vistas de Macron e Merkel, com propostas de troca de prisioneiros e cessar fogo. Foi nesse ambiente que Loznitsa lançou, em novembro de 2019, na Lituânia, Funeral de Estado, longa-metragem feito a partir do material de arquivo das cerimônias em torno da morte de Josef Stalin, ocorrida em março de 1953.

Os três dias de eventos fúnebres foram filmados e gravados em diversos locais da URSS, captando uma comoção que se pretendia universal. Os filhos Vasili e Svetlana, dignatários dos países-satélites, representantes dos Partidos Comunistas europeus, o Primeiro-Ministro da Finlândia (solitário não-comunista), Zhou Enlai, Primeiro-Ministro da China, Dolores Ibárruri (“La Pasionaria”), a nomenklatura civil e militar, etnias variadas em fábricas e canteiros de obras espalhados pelo país, o povo espremido na filas e ruas – não faltou ninguém, aparentemente, da constelação socialista. Foram 70 horas filmadas, parte em preto e branco e parte em Agfacolor, filme virgem oriundo do butim de guerra que o Exército Vermelho trouxe da Alemanha em 1945 (Stalin-personagem já estava habituado à qualidade do negativo alemão, em A Queda de Berlim, de Mikhail Tchiaureli, 1949). À época, uma plêiade de notáveis foi convocada para realizar o filme: o próprio Tchiaureli, Alexandrov, Gerasimov (o mesmo que dá nome ao Instituto), o documentarista Ilja Kopalin e até a mulher de Vertov, a talentosa montadora Elizaveta Svilova. A montagem foi em tempo recorde, resultando em 65 minutos intitulados O Grande Adeus. Na última hora, a exibição foi cancelada: a razão foi que figuras “erradas” seriam mostradas, já que a liderança soviética estava começando a reorganizar-se, com a prisão (e posterior execução) de Lavriénti Beria em 26 de junho de 1953, e Nikita Khruschov substituindo Málenkov como primeiro-secretário do Partido Comunista, em 14 de setembro de 1953.

Um vazio, supressão abrupta do último registro do corpo de Stalin: embora nunca tenha sido divulgado que um documentário sobre o evento estava em produção, a expectativa era naturalmente imensa, centenas de cinegrafistas foram vistos com suas câmeras, em Moscou e alhures. A morte do líder onipresente precipitou uma sequência vertiginosa de acontecimentos. Em meses foi negociada a paz na Guerra da Coreia, a tortura banida, boa parte dos presos políticos anistiada. Perseguidos pela derradeira obsessão paranoica de Stalin, os médicos acusados de conspiração foram soltos e o antissemitismo conexo descontinuado, informou o Pravda. Em 1956, no 20º Congresso do Partido, Khruschov pronunciou o famoso discurso denunciando os abusos de Stalin e, implicitamente, liquidando a infalibilidade do Partido. Somente em 2012 foi liberado na Rússia O Grande Adeus, exibido no canal Kultura em versão reduzida de 46 minutos. Segundo Loznitsa, a própria filmagem já teria sido uma maciça operação de cover-up, em suas palavras “para que ninguém adivinhasse o que estava por vir”. Dessa forma eventual coautoria nos crimes de Stalin ficaria diluída ou recalcada.

Funeral de Estado já nasceu, portanto, mergulhado na intrincada teia da manipulação da memória no gigante soviético, onde escrever a história era uma tarefa a um só tempo urgente e fundamental – como seria de se esperar de uma ideologia revolucionária orientada pela teleologia marxista-leninista da progressão da história – mas, também, sujeita a um jogo de poder conjuntural de intensidade imprevista. Se uma das premissas do registro documental dos grandes fatos jornalísticos é justamente a autenticidade instantânea da imagem, neste caso o ato mesmo de registrar é em si um signo ambivalente. O crítico Jim Hoberman sugere que o filme de Loznitsa “evoca o espetáculo de um faraó morto colocado para descansar em uma pirâmide de celuloide projetada por ele mesmo”. A alusão ao imaginário hollywoodiano não é casual: os enquadramentos, os planos gerais da Praça Vermelha e das multidões, a profusão das coroas de flores, a sequência infinita das filas carregadas de luto e melancolia – aqui remetendo, lembra Hoberman, a Ivã, o Terrível (1944), de Eisenstein – convergem para a emulsão magnífica do Agfacolor, um mundo onde a definição das cores atinge a categoria de sublime, causando espanto, admiração e quase um sentimento de terror, pela grandiosidade e singularidade. Mesmo as interpolações em preto e branco, tão frequentes no cinema soviético a partir dos anos 50, parecem funcionar como gatilhos do real para o arrebatamento do espectro luminoso.

Além da restauração do negativo, Loznitsa teve que solucionar o problema da ausência de som, já que, como salienta a historiadora Birgit Beumers, no cinema soviético quase nunca o áudio era gravado no local, a trilha sonora era construída na pós-produção em estúdio. O talento do colaborador assíduo do diretor, o engenheiro de som Vladimir Golovnitski, foi mais uma vez certeiro. Ruídos de passos, suspiros, choros contidos, murmúrios da massa, discursos solenes, e música fúnebre foram meticulosamente reconstruídos, acrescentando dimensões extracampo cinematográfico, registros onidirecionais e textura sonora ao eixo das imagens, contribuindo em última análise para a conformação de uma espessura audiovisual. Combinado à percuciência do montador Danielus Kokanauskis, outro colaborador habitual de Loznitsa, no uso de planos de gestos e expressões faciais muitas vezes pela repetição exaustiva, na conexão das tomadas dos passantes diante do corpo presente, uma onda interminável, terminaram por gerar uma ambiência sensorial que convida o espectador a uma imersão balizada por estranhamento e proximidade. Em um momento, conta o diretor, “Khruschov segue Beria e Beria faz um gesto. Olhei várias vezes, quadro a quadro: ele se vira e resmunga alguma coisa, e com um gesto desleixado mostra a Khruschov que este último deve caminhar ao lado dele. É apenas um momento, e sua mão se move tão rápido que eu pensei que havia um corte em algum lugar … então [Khruschov] obedece e fica imediatamente claro quem é quem”.

“O documentário opera em conformidade literal com o habeas corpus. ‘Você deveria ter o corpo’ – sem ele o processo legal fica paralisado. ‘Você deveria ter o corpo’ – sem ele, a tradição documental carece de seu referente primário, o ator social real de cujo engajamento histórico fala” – a asserção é de Bill Nichols (no ensaio History, Myth, and Narrative in Documentary), seguida à risca por Loznitsa. A hierarquização das imagens, povo-corpo-povo, entretanto, é subvertida: se na ordem soviética a verticalização é incontornável, como aponta Beumers, em Funeral de Estado o movimento centrípeto periferia-centro é subvertido na montagem, sugerindo uma dispersão na unidade espacial do império. A vastidão original da Rússia czarista, ampliada no período comunista, é frequentemente abalada por movimentos de expansão e contração, dada sua diversidade, como o confirmam as disputas contemporâneas com a Ucrânia e as fricções permanentes com o entorno. O corpo de Stalin, ícone dessa unidade, ingressou no Mausoléu de Lenin como mostram as imagens, mas acabou trespassado pela luta do poder nos bastidores. No 22º Congresso do Partido, em 1961, a bolchevique histórica Dora Lazurkina afirmou que Lenin lhe fez uma visita e disse: “estou desconfortável por estar ao lado de Stalin, que trouxe tantos problemas ao Partido”. O corpo foi retirado do Mausoléu e jaz hoje na necrópole da muralha do Kremlin, ao lado de outros próceres.

Os discursos do funeral, último ato dessa tragédia farsesca, foram proferidos por Málenkov, Molótov e Beria, com Khruschov atuando de mestre de cerimônias. Tragédia que matou 409 cidadãos, segundo Khruschov , em meio às escaramuças para chegar perto do corpo. O líder checoslovaco, Klement Gottwald, stalinista convicto e um dos primeiros a chegar, morreu pouco depois de assistir ao funeral, em 14 de março de 1953, depois que uma de suas artérias explodiu. No filme de Loznitsa, o único momento verbal são os discursos na Praça Vermelha, já que o diretor rejeita o recurso narrativo, seja falado por ele ou qualquer outro locutor: “se ponho a voice-over, ofereço minha visão do assunto…ele (o espectador) tem de concordar comigo ou não”, disse certa vez, referindo-se a Blokada (2005), outro de seus filmes feito com imagens de arquivo. É uma ousadia que desorienta, suprime a explicitação do objeto. Aos enlutados que conseguem chegar até o caixão, resta apenas um rumor de “Lacrimosa”, do Réquiem de Mozart.

Nesses tempos de uso e manipulação das redes sociais em que vivemos, onde os jogos entre imagem e poder são parte crucial da estratégia dos governantes, como o ilustra o caso brasileiro, a linguagem minimalista de Loznitsa afigura-se como uma força inaudita e surpreendente – em uma palavra, contemporânea.


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