Django Livre (Django Unchained), de Quentin Tarantino (EUA, 2012)

março 11, 2013 em Em Cartaz, Filipe Furtado

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História de violência
por Filipe Furtado

Entre os muitos elementos que Quentin Tarantino compartilha com Brian De Palma, há um que ajuda a explica porque os dois cineastas são frequentemente mal compreendidos: em seus filmes, existe o mesmo gosto por compartilhar do drama e da sátira com igual desenvoltura – às vezes nas mesmas sequências – por caricaturar o aparentemente sério e, ao mesmo tempo, sentir na carne a violência grosseira que infligem, eles próprios, sobre suas personagens. Esta aposta contínua no drama e na caricatura faz com que De Palma frequentemente seja reduzido a um mero cínico e que Tarantino seja por vezes tratado como um troglodita grosseiro a canibalizar a história do cinema. É uma imagem ao qual se retornou com frequência desde o lançamento deste novo filme, que, mais do que qualquer outro de Tarantino, parece ter despertado a ira de muitos, em parte justamente pela sua disposição em se equilibrar entre o trágico e o caricatural. Django Livre certamente não é uma lição histórica sobre escravidão nos Estados Unidos – Tarantino não tem o menor temperamento para uma empreitada como essa –, mas um muito autoconsciente filme sobre histórias de violência, em que o foco não é a verdade dos fatos, e sim a maneira como a permanência de tal violência depende que todos assumam os mesmos papéis, a começar pela figura do próprio cineasta. Perto do final de Django Livre, Tarantino implode a si mesmo, no que deve ser um dos momentos mais honestos do cinema em 2012.

Como quase todos os filmes sobre escravidão de realizadores brancos, Django Livre é essencialmente sobre a culpa branca. Nos termos de exploitaition tão caros ao cineasta, podemos dizer que se trata de uma releitura de Sweet Sweetback’s Baadasssss Song, de Melvin Van Peebles, na qual a raiva incontida que o cineasta exibia enquanto construía sua série de imagens de abuso é substituída por iguais doses de arrependimento. Só que, se filmes de expiação do artista branco se caracterizam, de Stanley Kramer a Steven Spielberg, pela nobreza do tom, nada poderia ser mais distante do que vemos aqui. Django Livre se constrói, assim como Sweet Sweetback’s Baadasssss Song, por meio de uma série de imagens de violência perpetuada por figuras de autoridade, oficial ou social, sobre o corpo do seu protagonista. Quando Quentin Tarantino se dispõe a lançar uma manada de cães de caça sobre um pequeno coadjuvante negro, ou quando coloca Jamie Foxx dependurado nu para ser torturado, é impossível esconder seu próprio prazer em encenar tais situações.

Se o sadismo nos filmes de culpa branca é geralmente apresentado com a distância de uma lição de civilidade, não haverá espaço para tais bons modos em Django Livre: longe de apaziguado, o sadismo aqui não foge ao seu papel de espetáculo. Se a última década da obra de Tarantino apostou na capacidade de redenção do próprio cinema, ele finalmente encontra um tema que o cinema (e, por consequência, o próprio Tarantino, grande consumidor de imagens que ele é) não pode redimir – muito pelo contrario – fundado como o cinema americano é sobre imagens de violência que frequentemente trazem consigo um forte componente racial. Se todos são muito conscientes do próprio papel em Django Livre, nenhum ator será mais consciente que o realizador, produtor e consumidor voraz do próprio sadismo (e, por consequência, ao próprio espectador, a quem jamais será permitida a superioridade diante do que vê). Logo, não é surpresa que ele exploda a si mesmo com igual entusiasmo sádico minutos antes de explodir a casa grande tão simbólica do racismo americano no século XIX.

Este é um filme assumidamente confuso, que começa com o bom europeu libertando o escravo e termina fechando seu foco menos sobre escravocratas do que sobre um “negro de casa”. Mas esta confusão colabora para sua força, pois não lhe permite saídas diante da própria ambivalência. Django Livre, com seu ritmo torto – o filme todo parece constantemente pronto para se desmanchar na frente do espectador – perde a história em meio à farsa, mas permanece de grande transparência emocional. É um filme honesto na sua grosseira feiura.

Há, porém, muito do que suspeitar: a ambivalência de Tarantino para com a própria empreitada faz com que o filme não se mova com a mesma exuberância e desenvoltura que a maioria dos seus outros trabalhos. Mais grave, a esposa de Django jamais registra no espectador como mais do que uma desculpa para mover a ação (o filme, estranhamente, é incapaz de dar a ela ou mesmo ao casal uma existência palpável), o que torna a dramaturgia da segunda metade da projeção por vezes abstrata em excesso. Django Livre frequentemente excede a tendência à impaciência que por vezes domina o cinema de Tarantino, queimando novos gêneros e situações em grande velocidade, enquanto o filme parece se mover rápido sobre uma lista de história do cinema que o cineasta decidiu cortar (um problema muito sentido principalmente nas sequencias iniciais e finais do filme).  Ele, ao mesmo tempo, bate como um filme muito longo e também curto demais, em meio a digressões que sugerem vários outros filmes imaginários que Django Livre poderia ser. Alem disso devo dizer que, se tendo a simpatizar e concordar com os defensores do diretor de que as acusações sobre falsificações históricas perdem o ponto do filme, é também verdade que Django Livre se move por um terreno bem mais pantanoso do que Bastardos Inglórios; a excursão à Segunda Guerra revista pelo cinema do primeiro filme pisa num terreno muito mais firme junto ao espectador do que a excursão à escravidão, que passeia por uma série de elementos e situações que o cinema poucas vezes se prestou a representar bem. A fronteira entre história e ficção é muito melhor demarcada no primeiro filme, o que por vezes acrescenta a Django Livre uma tensão nem sempre bem resolvida.

Dito isso, é útil apontar que Mandingo, de Richard Fleischer, um dos poucos olhares honestos sobre o período (e um filme que Django Livre referencia múltiplas vezes), foi recebido à época do seu lançamento num tom derrisório não muito diferente das piores criticas aplicadas ao filme de Tarantino, o que sugere que, mesmo que houvesse aqui uma preocupação maior a se ater aos detalhes históricos da vida nas plantações e uma seriedade mais inquestionável na forma que confronta o tema, a mera opção de não apresentar a escravidão num tom aprazível provavelmente bastaria para colocá-lo em problemas junto a muitos. Django Livre tenta com frequência ultrapassar Mandingo na força brutal das suas imagens, e, se é certo que o filme é ainda mais gráfico na sua violência, o seu universo certamente é mais confinado que o do filme de Fleischer, e a força destas imagens, mais difusa, por mais gráficas que sejam. Por conta de o sul norte-americano do filme não ter a mesma textura, elas terminam por se revelar mais abstratas.

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Desde Kill Bill, o cinema de Tarantino se mostrou cada vez mais monotemático, com espaço exclusivamente para vingança e poder. Seja a noiva em Kill Bill, as protagonistas de À Prova de Morte, Shoshanna e os bastardos em Bastardos Inglórios, ou Django aqui, o que move os protagonistas de Tarantino pós-Jackie Brown é invariavelmente a mesma ideia de reparação, de preferência da forma mais violenta e cartunesca quanto possível, como se o mergulho no caricatural fosse a única forma aceitável de purgar a violência inicial. Não há nada em Django Livre tão memorável quanto a sequencia de abertura de Bastardos Inglórios, na qual o nazista interpretado por Christoph Waltz vai, diante do fazendeiro francês, passo a passo estabelecendo quem manda. Mas o mesmo sentimento controla boa parte das suas sequências, sobretudo na sua forte segunda metade.

Cada gesto em Django Livre – e este é um filme em que tudo se resolve em gestos – é uma forma de expressar poder, seja ele real ou fictício. É algo que esta escrito da postura de Samuel L. Jackson, na reinvenção de Django como herói de blaxpoitaition transportado para o sul americano do meio do século XIX… da cortesia dissimulada de DiCaprio ao sotaque europeu “civilizado” de Waltz. Como em Bastardos Inglórios, a história é revista como teatro que se revela pura farsa. Django Livre por vezes procede como uma inversão exata do filme anterior, em que o barbarismo muito americano dos bastardos era usado para encerrar uma barbárie europeia – certamente não é por acidente que a paixão de Waltz por Os Nibelungos sirva para colocar a trama em movimento. O filme se apresenta como uma série de painéis de violência que se movem até o momento inevitável que um homem abusa de outro, e cada situação é devidamente ritualizada, retirada da sua normalidade rumo à farsa grotesca, como se o filme soubesse que está é a melhor forma de fazer justiça a elas.

Em certos pontos, o Tarantino apreciador do mais grosseiro cinema B reconhece que, na irresponsabilidade de muitos destes filmes, se escondem por vezes um horror potente. Uma sequência como aquela em que Di Caprio ordena que soltem os cachorros sobre seu escravo poderia facilmente constar em algo como Blacksnake – filme picareta de Russ Meyer sobre uma revolução de escravos no Caribe, em que situações começam quase como gracejos e terminam horripilantes. Neste sentido, uma das melhores sacadas do filme é sem dúvida reduzir o então nascente Ku Klux Klan a uma ponta ridícula na sua incompetência. É como se dar a eles qualquer peso de representação fosse transferir a tal organização uma respeitabilidade que ela jamais fez por merecer.

Assim como a maioria dos filmes recentes de Tarantino, Django Livre se divide em duas partes muito claras. Como bom vendedor, o cineasta abre o filme com uma convidativa fantasia de poder: o escravo que passo a passo conquista não só a liberdade, mas sobretudo se transforma no grande pistoleiro cool que pode finalmente partir no resgate da esposa. É uma seção dominada por muito do que esperamos do Tarantino: um pastiche jocoso, mas respeitoso por cinema de gênero (no caso o faroeste); uso amplo de trilha sonora de outros filmes; uma atuação icônica de Waltz; diálogos rápidos; a já mencionada cena de KKK; violência artificial, etc. Há também, nestas sequencias iniciais, um uso dos mais expressivos das paisagens, em externas que não ficariam deslocadas em alguns grandes faroestes de locação do cinema americano.

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Tudo isso, porém, é prólogo. Após convidar o espectador para seu universo, Django Livre tem uma virada radical e se transforma em outro filme. Vamos a Candieland, fazenda do aristocrata racista Di Caprio, e trocamos um registro mítico (o da liberdade dos amplos espaços sugeridos pela conquista do oeste) por outra mitologia muito diferente das plantações sulistas e seus escravos, um espaço que a ficção americana tradicionalmente apresenta paralelamente não como o território da descoberta, mas o da decadência. É como se, enquanto o comboio se desloca para aquele lugar, o filme também se movesse do nascimento para a vergonha de uma nação.

Ao longo da travessia que os personagens fazem até Candieland (o nome por si só sugere uma espécie de parque temático de horrores), o trato que Tarantino dá para as locações se transforma: de esplendorosas, elas se estreitam e sugerem outro tipo de espaço muito mais artificial e sinistro. Se, antes, havia um estranhamento e uma consciência de papeis representados, isto se dava exclusivamente pelo corpo estranho do caçador de recompensas negro (muito similar, de certa forma, ao de Boss Nigger, um forte, se bem tradicional, faroeste que Jack Arnold realizou com Fred Williamson em 1975). No caminho para Candieland, porém cada gesto é redimensionado, cada movimento passa a ter um peso especial. Quando as máscaras podem cair e algum dos atores fugir do seu papel, o resultado final não será outro que não a consumação da violência, como na já mencionada sequência com os cães. Se há uma grande contribuição do filme para a ficção sobre o período, ela se dá justamente por esta estrutura bifurcada e na forma que Tarantino sugere que estas ficções não são excludentes, mas complementares e essenciais umas às outras. É o mesmo mundo que nos deu Paixão dos Fortes que também nos deixou Mandingo, e o primeiro não poderá jamais existir sem o segundo.

Na altura que chegamos à casa grande, entramos definitivamente num espaço alegórico, e já não resta nada para além da mais completa farsa histórica, em que cada movimento busca retardar ao máximo a explosão de violência inevitável por vir, e a forma como Tarantino sustenta tal clima por meia hora, até que o personagem de DiCaprio expõe os papéis de cada um, é de um controle tão preciso quanto a sequência da taverna de Bastardos Inglórios.  A falsificação de sentimentos domina a ação a tal ponto que não só o filme nos nega o reencontro de Django com a esposa, como media ele todo com uma segunda língua, como o alemão é filmado de forma a reforçar que, num ambiente tomado por violência, até um reencontro amoroso carrega consigo o peso da crueldade. Há muito a se dizer sobre o trabalho que Tarantino e seu fotografo habitual, Robert Richardson, fazem para estabelecer aquela casa grande como um espaço de trevas, que traz consigo toda uma historia de abuso e violência muito antes da câmera registra-lo.

Waltz e Foxx recedem o espaço para os dois atores mais autoconscientes do filme: o escravocrata (Di Caprio) e seu negro da casa (Samuel L. Jackson), cujo flerte de mestre e seguidor passa a monopolizar cada gesto (o grito desesperado do segundo diante da morte do primeiro é o momento mais expressivo de toda a parte climática do filme). Mais cedo, quando Django é originalmente introduzido ao aristocrata racista, há um plano rápido em que ele olha feio para o atendente negro que lhe serve bebida, e o filme estabelece com precisão a antipatia que posteriormente lançará sobre a figura de Jackson. No teatro proposto por Django Livre, os atores vistos com piores olhos são os negros da casa que assumem com grado o papel de si mesmos (uma leitura certamente discutível que o filme leva até sua conclusão extrema, na sua sequência final, e que só se sustenta graças ao trabalho de Jackson no tom certo entre o puro artifício e o trágico). Há também alguns ótimos detalhes às margens, como a figura da irmã do aristocrata que, em algumas poucas cenas, estabelece todo um retrato muito crível de mal dissimulado.

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É também neste jogo de atuações que o gosto de Tarantino por equilibrar o trágico e o caricatural mostra sua maior força. Se Django Livre começa quase como um pastiche e perde toda sua graça no caminho de Candieland, o filme jamais perderá seu gosto pela caricatura.  Mas, por mais artificial se revele cada tipo que o filme lança mão, mais ressonante dramaticamente ele se tornará.  Não haverá, por fim, espaço para nenhum outro papel que o dos violentadores e dos violentados (até Waltz, cuja presença ao longo de todo filme é da caricatura de um ideal civilizatório europeu, não consegue resistir aos seus próprios piores impulsos). Numa história de violência – menos a destes personagens, mas também de todos os outros personagens que o cinema americano já colocou naquelas mesmas posições – não haverá lugar para conciliação. Somente mais violência.

Se, por fim, após toda a destruição promovida pelo sadismo culpado de Tarantino, o centro de Django Livre se revela o corpo abusado de Jamie Foxx e o peso simbólico que ele carrega consigo, é nesta hora que percebemos que o filme todo também trava um forte paralelo com a série de filmes que Rainer Werner Fassbinder realizou com o ator Gunther Kauffman, eles próprios apresentando um subtexto sempre complicado das relações de poder entre cineasta e seu ator (o melhor filme de Fassbinder, Precauções com a Puta Sagrada, não deixa de ser entre muitas outras coisas uma dramatização destas tensões). Vale apontar que, entre as parcerias entre o cineasta alemão e Kauffman, está justamente Whity, um faroeste sobre a herança maldita da escravidão americana, em que uma família decadente manipula o negro da casa (Kauffman) até que sua revolta deixa uma pilha de corpos não muito distante na sua sugestão daquela que Django Livre produz ao longo dos seus dois clímaxes.

É uma dramatização de uma relação de poder/violência que chega ao filme de na figura dos mandingos (os negros lutadores que Tarantino importou de Fleischer), mas que se resolve melhor na presença de Foxx, a quem o filme dá uma dimensão mítica de grande vingador, mas de quem ele também abusa com uma frequência incomum dentro da lógica de star system. Quando a Foxx finalmente é permitido liberar toda o desejo de retribuição que carrega consigo, no tiroteio final do filme (ao som de hip hop, a contribuição mais visível da cultura negra americana para o imaginário branco sobre a violência do outro), curiosamente, Tarantino dissipa o que poderia ser o efeito catártico do momento ao suavizá-lo, com o uso de uma série de planos que apresentam-no como uma figura muito mais humana e falha do que o momento suporia.

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Não há catarse possível para Django Livre, por mais que a culpa do cineasta muito lhe fizesse desejar. Tarantino não é tão sofisticado como Fassbinder, mas por fim chega ao mesmo impasse de representação: a ele, o cinema deposita poder demais sobre a presença daqueles que a sua câmera violenta, simplesmente por se disporem a se colocar na frente dela, quanto mais aqueles tantos aos quais ele próprio não consegue resistir em lançar sobre mais e mais armadilhas. Django Livre adoraria redimir o cinema de gênero – o território que Tarantino sempre visita, mas é incapaz de habitar – de toda sua história de violência, de todos os seus Djangos e todas suas outras Candielands (não só aquelas que se referem exclusivamente à escravidão), mas pode no máximo esvaziá-la por um momento, antes que ela retorne em filmes posteriores. Django Livre parece ele próprio bem consciente dos seus limites: sua imagem final de Django em triunfo será ao mesmo tempo edificante e vazia na sua exuberância. Terminado o filme, haverá muitas outras Candielands, e muitos sádicos bem menos culpados do que o próprio cineasta.

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