No meio da estrada tinham uns cavalos

setembro 1, 2016 em Em Pauta, Fabian Cantieri

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Disparo para Matar (1966)

por Fabian Cantieri

Existem três coisas que podem interessar em Paris nos Pertence (Paris nous Appartient, 1961) de Jacques Rivette para começar a falar de Monte Hellman:

      1. o diálogo entre Gerard e Anne num banco de Paris;
      2. A teia paranoica tecida ao longo dos últimos vinte minutos de filme;
      3. Este plano:
Paris nous appartient (1960), Jacques Rivette

Paris nos Pertence (1961), Jacques Rivette

1. No banco, vemos a cena em que Gerard (Giani Esposito) vai chamar Anne (Betty Schneider) para ser atriz da peça de Shakespeare que está dirigindo, Péricles, Príncipe de Tiro.
Gerard: O que você acha de Péricles?

Anne: É um pouco desconectada, mas isso não importa.

G: Porque?

A: Porque tudo acontece em outro plano…

2. Em filmes como Disparo para Matar (1966), A Vingança de um Pistoleiro (1966), Corrida sem Fim (1971) e Galo de Briga (1976) as peças à vista quase nunca estão claramente conectadas; ou, antes, as peças raramente estão à vista para se montar. Estas peças não são necessariamente desconjuntadas, mas elas não estão ali fundamentalmente para servirem a um fim narrativo. Não se preocupe em antever um arco dramático da estória ou finalmente montá-la catedraticamente ao fim; isso importa pouco. “Tudo acontece em outro plano”. É como se Monte Hellman quisesse perscrutar certos sentimentos e a obrigação de levar adiante a narrativa, beat ante beat, não tivesse, necessariamente, conectada ao que mais lhe interessa: o magnetismo daquela personagem à nossa frente, com tudo que seu olhar, seus gestos, sua gestalt pode nos oferecer. Analisar certos filmes de Hellman é como tentar entender o funcionamento de um motor Chevy: nada é melhor do que simplesmente escutar seu arranque.

Um espanhol chamado Juan se suicida no filme de Rivette, mas pode não ser um suicídio. Esta morte anunciada pode ser a abertura para uma grande teoria conspiratória que flana em segundo plano por quase toda a projeção, até seus derradeiros minutos. Terry (François Prévost), ao fim, conta a teoria para Anne e logo depois a desmente. Joga com o ímpeto de Anne de ir em busca da verdade, do enredo misterioso (na realidade, brinca com a gente, espectadores), revelando que o grande esquema das coisas, a narrativa balizadora dos eixos e das verdades não passa de um grande MacGuffin. Na Paris de Rivette, o MacGuffin é metalinguístico: ele está lá avisando que existem coisas maiores no presente vivido do que a grande trama que inventamos. Elas se chamam História.

3. Em um frame não é possível captar o que vemos em movimento: Terry, logo depois de botar pra tocar a música que Juan compôs e no instante antes de contar toda a teoria político-conspiratória, some na escuridão no centro do quadro. O jogo de luz e sombra, durante toda a cena, coaduna com as palavras de Terry – a escuridão associada aos tempos sombrios narrados; a frecha de luz como um “nem tudo está perdido”, como possibilidade de “salvação”. O chiaroescuro do bem e do mal, decretado morto com o fim de Hitler e da segunda guerra em 1945, está de volta: existem aqueles que perceberam e se organizam secretamente para combatê-los (Terry no escuro) e aqueles inocentes que vagam tranquilos pelas ruas sem saber de qualquer coisa (Anne entrando na luz).

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A íntima relação do fundo com a palavra, do espaço com suas personagens é um traço permanente do cinema de Monte Hellman: o deserto interminável de Disparo para Matar, as landscapes de Corrida sem Fim, o castelo de pedras à altura do mar do rei de rosto poroso em Iguana (1988) são quadros com vida própria, que tecem essa espécie de consanguinidade entre os elementos da superfície e do fundo. Mas não só os grandes cenários – o talento de Hellman está não só em achar esses icônicos melting pots como em desvirtuá-los quando necessários: os traços abstratos criados pelos movimentos velozes das brigas de galos de Cockfighter se dão não só nos cultuados ringues, mas diante das pavorosas paredes brancas (terror de quase todo fotógrafo) dos quartos de hotéis. A emoção da luta é reificada pela torcida na arena enquanto sua falta de sentido é transposta pelo silêncio de um tedioso quarto. Hellman sempre foi meticuloso em suas pesquisas de locação, pois só assim poderia trabalhar em sua artesania de mão dupla: se, por um lado, parecia um antigo escultor talhando seus personagens a partir do cenário, por outro preparava seu trabalho como um velho pintor: cristalizada a figura central, nada mais impregnante do que seu entorno.

Pintor, escultor

Hellman já se declarou numa entrevista a Michel Ciment para a revista Positif em 1973 como um “pintor de paisagem” (“pra mim, espaço não é neutro (…) Novo México não é Oklahoma e eu nunca usei uma cena fora do seu contexto geográfico (…) Num certo sentido eu sou um pintor de paisagem mas não quero mostra-la só pela beleza ou para aumentar seu valor”). A metáfora do pintor pode ser tanto útil quanto enganosa. Hellman não é daqueles cineastas que buscam o pictórico na cena, apesar de saber construir quadros com precisão. A plasticidade alcançada num plano como o abaixo, de Iguana, não é mero acaso, mas importa mais a inversão da ideia de prisão infernal, além do respiro de cena, do que a beleza em si.

Iguana (1988)

Iguana (1988)

Outras vezes, brotam diálogos frontais com a história da arte, como é o caso de um dos planos finais de Iguana, no qual Carmen (Maru Valdivieso) vê seu filho recém nascido sendo levado por Oberlus (Everett McGill).

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A dor e a incapacidade de ação estão lá n’O mundo de Christina (1948), quadro que Andrew Wyeth pintou baseado em sua vizinha que passava a maior parte de seu tempo em casa por conta de uma poliomielite que a impedia de andar. Nos dois quadros, a mesma agonia diante da impotência do gesto mais banal: levantar-se e ir atrás do conforto desejoso mais básico – a casa, o filho, a paz – fisicamente próxima, psicologicamente distante – que nunca chegará.

O Mundo de Christina (1949), Andrew Wyeth

O Mundo de Christina (1948), Andrew Wyeth

Falar de psicologia em Hellman é trabalho delicado. O díptico de faroestes que o tornou notório é justamente conhecido pela temática do abandono. Na superfície, Disparo para Matar e A Vingança de um Pistoleiro são filmes sobre justiça – a mulher (assim é creditada Millie Perkins) quer se vingar de Colin; Wes (Jack Nicholson) e Vern (Cameron Mitchell), confundidos com bandidos, são perseguidos por justiceiros – mas ao fundo, são filmes de narrativa rarefeita condensados sobre o peso do tempo. Em Disparo para Matar cada novo plano atrás de Colin se torna mais duro e insustentável; a cada novo passo, mais difícil o próximo; a aridez da jornada é como uma densa gravidade que sobrecarrega os ombros.

Em A Vingança de um Pistoleiro o peso vem do tédio, da incontingência daquele lugar, da solidão. Eles fogem da forca mas, ao atracarem na casa no meio do nada, Wes não consegue dormir, precisa de um jogo de damas. Vern pergunta se não é um lugar solitário para uma mulher e a mãe de família rebate com a única resposta possível: “para um homem também”. Sobre o trabalho solitário do patriarca, “há quanto tempo ele lasca aquele tronco?” – parece uma eternidade. A grande maestria de Hellman está nessa duração interminável (Vingança) e árida (Disparo) que nos acomete junto a suas personagens, nesse esculpir do tempo associado à trama ao mesmo tempo que independente dela.

A Vingança de um Pistoleiro (1966)

A Vingança de um Pistoleiro (1966)

Pois Monte Hellman é um escultor mais interessante que pintor. Não era um grande esteta do plano como Ozu, Bresson, Costa ou Apichatpong mas tinha uma aptidão inegável para a decupagem. Era ainda melhor montador, carreira que o introduziu e manteve na indústria. É predominantemente na montagem que vemos algumas primeiras rupturas ao clássico-narrativo, como por exemplo em algumas elipses de Disparo para Matar: a mulher cai do cavalo e Colin vai conferir se está tudo bem. Corta pra ela pedindo ajuda e, quando voltamos a Colin, já é noite. Ao cortar pra ela de novo, Perkins continua deitada, só que agora já descansada com um lençol a cobrindo e pedindo chá.

Esse padrão de rupturas havia antes começado mais sutil em Guerrilheiros do Pacífico (1964), quando Jersey (John Hackett) fala para Burnett (Jack Nicholson) aproveitar a noite e aponta uma mulher atrás dele. Burnett questiona “o que eu vou falar com ela?” e o corte já responde com uma elipse de outro personagem, não mais no bar, mas em uma casa, dando a cantada barata que cabia a Burnett “eu quase não reconheci você hoje nesse vestido”. É o tipo de elipse espacial de tempo contínuo que Bob Rafelson espertamente aproveitaria para incluir em seu Five Easy Pieces, filme que deve muito a Hellman – a caroneira fala num momento de parada da viagem e corta pra ela continuando o assunto dentro do carro em movimento.

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Além das elipses, é pela montagem que Hellman desata (e recria) certos nós das estruturas fílmicas. Em termos de esqueletos narrativos, sua carreira criaria um gráfico de montanha russa: existem os filmes pré-díptico mais convencionais; os quatro mais modernistas (Disparo; Vingança; Corrida; Galo de Briga) que simplificam suas armações; os dois seguintes voltando a um certo aristotelismo (A Volta do Pistoleiro é seu filme classicista por excelência e Iguana, apesar de toda a estranheza, tem um andamento sem grandes rompantes, beat a beat, cena que puxa a outra cena) até chegarmos a Caminho para o Nada (2010) com um vortex narrativo e estrutura de mise-en-abyme complexificando como nunca seu cinema.

Disparo para Matar, por exemplo, dá todo o contexto necessário em menos de dez minutos. Esse contexto serve para o filme acontecer: ao fim, nós espectadores, conectaremos a estória inicial à vingança da mulher sobre Colin, mas enquanto isso o que temos é um grande in-between, o que vemos são esses personagens vagando por um deserto, se relacionando e o que sai daí.

Corrida sem Fim, por sua vez, não é minimalista como muitas vezes apontado, mas é decidido em não seguir os rumos propostos: um piloto e um mecânico dirigem pelo Centro Oeste americano, conhecem uma caroneira, apostam uma corrida até Washington com G.T.O mas em nenhum momento, Washington torna-se télos. Cada instante dentro do Pontiac de G.T.O é mais valioso do que saber o vencedor da corrida. Como a própria tradução em português do título indica, o filme é uma circular jornada; é preciso então se ater a cada leve curvatura enquanto sentamos no banco carona do filme.

A imagem que fica

Ao chegar na primeira meia hora de Guerrilheiros do Pacífico, vemos um diálogo bem atípico de sua filmografia: Jersey critica a incapacidade de um de seus soldados de matar o inimigo, levando Burnett a questionar certos valores morais nublados pelo frisson da guerra (“Por que? Porque ele começou a ver os japas como seres humanos?”). Dificilmente avistaremos em qualquer filme posterior de Hellman esse tipo de diálogo-pensamento que direciona a uma reflexão extradiegética sobre o mundo. Em Hellman, suas ideias sobre justiça (Disparo e Vingaça), liberdade (Corrida), obsessão (Galo de Briga), crueldade (Iguana), amor (Caminho para o Nada) nunca serão dadas pela boca de um personagem, mas serão sempre inerentes à relação das personagens com aquele mundo.

É nesse sentido que o apontamento de um certo ar europeu ou a vaga referência de uma aura antonionesca ou bergmaniana sobre Hellman são tentativas frustrantes e ineficientes. Disparo para Matar é um filme de uma temporalidade pesada, de uma densidade materializada em esgotamento, mas não existencialista. O deserto do filme não é em primeira instância um absurdo sem sentido, nem as ações cometidas ali. Em Corrida sem Fim não é “o indivíduo que cria sentido pra própria vida”, como diria o “pai” do existencialismo, Kierkegaard, mas a própria paisagem, esta que, como diria Kent Jones, serve como “um tecido conectivo, uma pedra de toque, um lar, uma cura ou uma punição auto-infligida”.

Em um encontro com Jones, Hellman assume ser um intelectual, mesmo não gostando da palavra, apesar de sempre fazer um papel fordiano em entrevistas, sempre recusando “intelectualismos” para além da superfície da imagem. Ao ser indagado sobre intenções, rebate na hora que simplesmente “não pensa nesse tipo de coisa quando você está dirigindo um filme”, como se o crítico ou jornalista fundasse finalidades quando, na verdade, as preocupações de um diretor como ele são outras, menos conceituais, mais práticas, mundanas e diretas. Esse papel de rejeição é mais condizente com seus filmes do que a insígnia de “europeu” (este eufemismo para cerebral). O que vemos em seu cinema não são grandes estudos sobre a condição humana, imposições políticas ou reflexões metafísicas, mas uma impressionante latência das imagens. A rarefação narrativa não tem o mesmo intuito de ambiência imersiva de um Gerry (2002), o esvaziamento psicológico não é metodologia como para Bresson, a temporalidade não quer ser poiesis como em Tarkovsky. Hellman consegue produzir não só um magnetismo imediato, mas uma criação que persiste além filme. Todos os elementos e fatores se coadunam para deixar uma marca que prossiga reverberando no imaginário do mundo. Estes elementos são múltiplos, visíveis e invisíveis, de superfície, de fundo e de intersecção. Essa marca não está em qualquer vã filosofia, mas nas imagens. Sempre elas.

Caminho para o Nada (2010)

Caminho para o Nada (2010)

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