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Miragem na montanha

Como na abertura de Casa Grande (Fellipe Barbosa, 2014), o primeiro plano de Gabriel e a Montanha é de uma eloquência cristalina. Uma panorâmica segura, ritmada e imponente revela dois homens que recolhem capim no alto de uma montanha, até que um deles encontra algo na mata. Gradualmente, a câmera abandona os corpos dos trabalhadores e a paisagem inicial, aproximando-se lentamente do rosto de um rapaz branco, morto em um buraco na pedra. O que acompanharemos a seguir são os 70 dias de aventuras que antecederam esse momento, mas as cartas do filme já estão lançadas.

Um rapaz rico, educado nas melhores escolas cariocas, decide fazer uma viagem de volta ao mundo terminando na África, onde se prepara para um doutorado em Los Angeles enquanto faz turismo barato. Lá, sua extraordinária autoilusão – que o faz acreditar piamente estar fazendo um bem enorme para as famílias africanas que o hospedam (e, no futuro, quiçá, para a humanidade) enquanto economiza uns trocados para saltar de bungee jumping e fazer safáris com a namorada – se transforma em teimosia obsessiva e o leva a uma morte estúpida, ao subir uma lendária montanha sozinho, à noite.

A ficção construída para si mesmo por Gabriel (obviamente, falo do personagem do filme de Fellipe Barbosa) beira o inverossímil. Insatisfeito com a cidade insuficientemente pobre em que vive, decide ir à África para entrar em contato com a pobreza real. Em uma das cenas iniciais, quando chamado de branco pelos locais, se defende com o refrão “não sou branco, sou brasileiro”, que se repetirá alguns minutos depois. Ainda no início, veste uma roupa típica masai e sai pelas ruas do Quênia brandindo seu cajado e dizendo frases amigáveis nas línguas locais, enquanto abraça crianças negras com um sorriso inabalável no rosto. Ao final, na subida da montanha, a miragem torna-se mortal: imbuído do devaneio de seu próprio poder, a teima de Gabriel coloca em risco sua própria vida e a de vários dos que o rodeiam, até o inevitável desfecho fatal.

Gabriel e a Montanha (Fellipe Barbosa, 2017)
                                                        Gabriel e a Montanha (Fellipe Barbosa, 2017)

O material dramático é potente: a obsessão do protagonista que o leva à autodestruição; as doses cavalares de autocomplacência que criam uma casca de imunidade frente às perturbações que vêm de fora; a quimera do poder que transforma o mundo em uma projeção voluntária de si. Mas não é ao mergulho na espessura dessa obstinação que o filme irá se dedicar. Na primeira sequência após os créditos, vemos um plano de conjunto de uma família africana, que dorme na sala de casa. Subitamente, emerge o rosto de Gabriel (João Pedro Zappa) e ocupa o centro do quadro. Nos minutos seguintes, o mito conciliatório da sequência do abraço na favela de Casa Grande se atualiza: Gabriel e os locais conversam amigavelmente, enquanto cantam uns para os outros uma canção de seus respectivos países. Essa cena se repetirá muitas vezes: no baseado compartilhado com Tonny, na conversa com Luke a bordo do caminhão ou na cama dividida com tantos outros. Gabriel fala com os africanos no bar como se conversasse com um mochileiro europeu em um hostel. A encenação exala doçura e João Pedro Zappa é a encarnação da ingenuidade: o rosto imberbe, a expressão plácida, a voz doce, o andar saltitante pelas ruas. O único branco do rolê caminha altivo e imperturbável, imbuído da fantasia que, nas cartas à família, o faz se referir aos prestadores de serviço como seus amigos.

Durante todo o primeiro ato, o confronto entre esse imaginário e o mundo que o recebe está ausente da cena. Tudo o que os separa – todo o amontoado de violência histórica que se atualiza a cada encontro entre um branco rico e um preto pobre – não interessa à câmera, que persegue os sorrisos no rosto, o clima amigável, as palavras hospitaleiras. A insistência na amenidade reiterativa dos encontros indica certa consciência do filme em relação às mistificações da visão de mundo de Gabriel, mas a confrontação da fantasia do poder nunca se fará sentir na cena (ao menos enquanto o protagonista estiver sozinho entre os africanos). A certa altura, uma turma de caçadores prega uma peça no rapaz, dando-lhe de comer a caça que, na cultura local, é reservada aos cães. A cena restitui um mínimo de agência aos que circundam o protagonista, mas o resquício de espírito crítico entre os personagens africanos será confinado ao momento de alívio cômico. Embora o filme seja constantemente pontuado pelas vozes over daqueles que hospedaram Gabriel, a figura que desponta dessas rememorações é sempre a de um rapaz bacana, simpático, bondoso, como se as contradições do protagonista fossem impensáveis por aqueles e aquelas que conviveram com ele. Nas vozes over – instância máxima de legitimidade do protagonista frente ao espectador –, o que se forma é quase a imagem de um mártir.

Gabriel e a Montanha (Fellipe Barbosa, 2017)
                                                         Gabriel e a Montanha (Fellipe Barbosa, 2017)

Essa egotrip de adolescente tardio transformada em parábola neoliberal sobre o amor entre os povos começa a ruir no segundo ato, quando a namorada de Gabriel, Cris (Caroline Abras), chega para se juntar a ele na viagem. Já que os africanos não servem para perfurar a ficção do poder, o filme convoca a namorada de humanas. A sensatez da garota basta para oferecer um anteparo à fantasia expansiva de Gabriel e revelar outras camadas ao espectador. No cotidiano ou nas brigas, percebemos como a relação com ela também é perpassada pelo devaneio tóxico que transforma o mundo em projeção holográfica do eu, ao mesmo tempo em que os encontros com os locais escapam – por um breve momento – ao registro da amenidade. Mas como seria de se esperar, a pirraça de Gabriel é imperturbável e, após a partida de Cris, ele continuará o mesmo. E o filme, novamente sozinho com ele, retomará o passo dessa insólita aventura mortífera

Não há dúvida de que a dramaturgia de Gabriel e a Montanha é plenamente consciente das notáveis contradições de seu protagonista. Os traços da personalidade de Gabriel se espalham por toda a narrativa, em porções bem dosadas. Contudo, o filme anuncia a falência de um mito recorrente: o do personagem complexo construído a golpes de roteiro. Fruto da má consciência dramatúrgica, essa construção faz com que o roteiro explore com notável eficiência e habilidade as arestas do protagonista. Mas não é difícil identificar o recalque que transparece na mise-en-scène. Todo o entrecho com a namorada é uma aula de como problematizar um personagem – irmã dos procedimentos de Kleber Mendonça Filho frente à Clara de Aquarius (2016) –, mas não demora muito até que o casal desfile entre os acessórios decorativos (as crianças africanas). Rashidi, o guia do safári que comete um engano ao passar o cartão de crédito e recebe empurrões de Gabriel, se refere ao brasileiro como “inimigo”, mas seu ressentimento só pode ocupar o espaço invisível da voz over – nunca pode contaminar a cena com sua violência, e a briga será cortada logo ao primeiro safanão.

A miragem da complexidade se transforma no apego a uma outra falácia: a poética dos meios tons. Todo o balanço narrativo de Gabriel e a Montanha é feito de pontos e contrapontos narrativos, como se fosse possível sustentar essa aventura biográfica à base de pesos e contrapesos. Gabriel é também machista, também ingênuo, também arrogante, também isso, também aquilo, até que chegamos perto de esquecer quais eram mesmo as qualidades notáveis que constituíam a aura de bondade tão presente nas vozes over. Mas o contraponto nunca é o bastante. Nunca o suficiente para macular a imagem carinhosa da dedicatória “em memória do meu amigo” que abria o filme. Esse mesmo mecanismo é o que impede o filme de reconhecer no percurso final de Gabriel o que o material dramático parece conter: uma extravagante comédia de erros. Enquanto os últimos raios de sol se esvaem na montanha e anunciam o desastre, o rapaz pede uma segunda foto do salto na cachoeira para o guia, mas a insipidez pudica da mise-en-scène é incapaz de instalar o absurdo da situação.

Gabriel e a Montanha (Fellipe Barbosa, 2017)
                                                          Gabriel e a Montanha (Fellipe Barbosa, 2017)

A engrenagem liberal do filme – com seus checks and balances, sua aparente justiça distributiva, seu equilíbrio bem-pensante –, se não é capaz de embarcar – por excesso de pudor – na obstinação autodestrutiva do protagonista, tampouco consegue disfarçar – por despudor mal dissimulado – o outro nome do empreendimento de Gabriel: uma versão sofisticada e autocomplacente da aventura colonial. Nas constantes rememorações dos personagens africanos que volta e meia ocupam a banda sonora, os autoelogios de Gabriel se transformam na notável autoindulgência do próprio filme: a certa altura, um dos homens que atravessaram o percurso do rapaz começa por repetir o discurso da convivência amigável e da saudade e termina por agradecer ao filme, dizendo que a presença da equipe ali é muito importante, pois é “como se Gabriel tivesse voltado”. É então que toda a construção dos personagens secundários nas vozes over – que, à exceção de Rashidi, sempre apontam para uma relação inteiramente isenta de contradições – revela sua dupla função de carteirada: edulcorar a fórceps o percurso do personagem (ao recusar a cena) e, de lambuja, fornecer as credenciais de competência do filme. Aqui a mimese é total. Se, nas cartas à família, o protagonista se descrevia como uma espécie de pequeno herói do povo africano, ao transferir uns dólares trocados para a educação de uma menina antes de gastar o resto subindo montanhas no país seguinte, o filme incorpora à montagem a gratidão do povo africano por essa biopic que, com a magia do cinema, trouxe o herói de volta aonde o povo está.

Os problemas de Gabriel e a Montanha não são óbvios. O sólido cordão de proteção que se formou em torno do filme na crítica francesa e brasileira é evidência suficiente de seu triunfo inabalável. O trabalho de reconstrução dos últimos dias de Gabriel Buchmann é cuidadoso, da preparação de atores aos figurinos. O roteiro é bem trabalhado, complexo e redondo. Os personagens e os atores africanos têm nome e sobrenome… A enumeração é proposital. Uma crítica cada vez mais acostumada às checklists da correção talvez não perceba que, no mais das vezes, só o embate efetivo com a cena pode revelar o embuste. Não adianta dar nome e sobrenome aos personagens se as crianças continuam a ser filmadas como um bando de criaturas saltitantes que compõem a cena. E quando uma delas ocupa o quadro sozinha, é para mijar na rua, num daqueles planos que a pornomiséria latino-americana sabe fazer tão bem, há tanto tempo, e que seriam arrebentados pela avalanche de Agarrando Pueblo (Carlos Mayolo e Luis Ospina) ainda em 1977. Com a diferença de que, quatro décadas depois, o zoom agressivo no corpo da criança pobre não cola mais. Basta um bom plano geral, de passagem, para compor o ambiente, como um cartão-postal a mais esquecido na montagem.

No filme de Mayolo e Ospina, quando a entrevista da família vestida de pobre em frente à casa é interrompida violentamente pelo morador que escorraça a equipe de filmagem, morde as tiras de película e enfia o dinheiro no cu, é como se o camponês de Zézero (Ozualdo Candeias, 1974) reencarnasse numa esquina de Cali, só que dessa vez armado em fúria para confrontar a sereia-miragem do falso progresso e destruir as imagens da miséria dócil e indefesa. E é justamente o confronto histórico – encarado frontalmente em Agarrando Pueblo na presença de um dos diretores como realizador do documentário exploitation que o filme encena – que Gabriel e a Montanha escamoteia, elide, evita, pois só assim é possível manter a empatia do espectador pelo rapaz e continuar a operar bem colado ao imaginário de Gabriel.

Agarrando Pueblo (Carlos Mayolo e Luis Ospina, 1977)
                                              Agarrando Pueblo (Carlos Mayolo e Luis Ospina, 1977)

Um outro cartão-postal será menos inofensivo. Na sequência de créditos finais, vemos um slideshow com fotos dos atores – que também são as pessoas que encontraram Gabriel Buchmann em seus últimos dias –, até que uma foge do padrão dos retratos: sem cerimônia alguma, o rosto de Rashidi Athuman é substituído por um plano geral de uma manada de gnus. Na lógica implacável do filme, são os animais sonhados a marca do encontro de Gabriel com o guia do safári. A eficiência narrativa é coesa, redondíssima, implacável. Nada – nem mesmo a equiparação entre um homem e um bando de animais selvagens – é capaz de perturbá-la.

Não há dúvida: Gabriel e a Montanha aponta um futuro luminoso para a carreira de Fellipe Barbosa, nos grandes festivais do mundo e além. E aponta também para um cenário que se revela claríssimo: um cinema brasileiro que reaprendeu a falar muito bem a língua dos novos poderes do cinema mundial; que treinou sua própria domesticação até o ponto em que se tornou perfeitamente palatável para as audiências europeias; um cinema que renunciou a qualquer opacidade, a qualquer intransigência, e caminha a passos largos para uma reencarnação dos pressupostos de sucesso da Retomada em chave atenta às demandas de correção atuais.

O colonialismo repaginado de Gabriel e a Montanha fala por si. Não é só nas ruas do país que percebemos dia a dia o recrudescimento da miséria, a destruição do trabalho, a violência neoliberal que se repete como farsa. Os anos noventa estão de volta também no cinema brasileiro, a assombrá-lo com os holofotes da consagração. Como nos dias de Central do Brasil (Walter Salles, 1998), a competência é sua divisa, o craft é seu método, a comunicabilidade é seu trunfo. A armadilha está aí e o preço a pagar é alto. A montanha é a mais eloquente das miragens. E quem tiver de sandália masai não sobra.


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