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Estética do quintal remix: fragmentos ao redor da Filmes de Plástico

Há um plano no curta-metragem Quintal (André Novais Oliveira, 2015) que, diante das mirabolantes invenções do filme, pode passar despercebido. Depois de ser abduzido por um misterioso portal que aparece de repente no quintal de casa, Norberto retorna ao lar na periferia de Contagem e se dirige à porta para entrar. A porta está trancada, como seria de se esperar. A câmera, instalada na sala, mostra a chave no trinco. Sem cerimônia alguma, como alguém que repete o mesmo gesto por décadas, Norberto enfia a mão pela janela aberta, gira a chave e entra. A situação é, do ponto de vista lógico e securitário, paradoxal: por que trancar a porta, se basta enfiar a mão pela janela para destrancá-la com a maior facilidade? E, no entanto, cenas semelhantes se repetem todos os dias, em milhões de lares brasileiros da periferia ou do interior. A surrealidade se entranha no cotidiano o tempo inteiro entre nós, em cada gambiarra que passa a fazer parte da textura das casas, a cada gesto insólito que se transforma em hábito. Noutro momento do filme, quando uma ventania anormal sacode o varal de Zezé e literalmente a faz voar, o gesto seguinte é recolher as roupas magicamente secas e retornar à vida diária, como se nada. Um quintal na periferia pode ser um mundo tão prodigioso quanto um romance fantástico. Mas é preciso ter olhos para enxergar essa imensa reserva de imaginação que se aninha sob a pele da rotina e transformá-la em cinema.

Essa história começa com Filme de Sábado (Gabriel Martins, 2009), curta inaugural da produtora Filmes de Plástico. Filme-manifesto como poucas vezes se viu no cinema brasileiro recente, encena uma situação ao mesmo tempo insólita e familiar: num sábado qualquer, a lonjura do mar faz com que um rapaz decida transformar o quintal em praia. André rouba uns baldes de areia da construção na casa vizinha, seleciona os apetrechos na garagem empoeirada – guarda-sol, cadeira de praia, a baleia de plástico que se tornaria o símbolo da produtora sediada em Contagem-MG –, transforma um refletor de cinema em sol na tarde nublada. O despretensioso conto filmado entre amigos é uma tradução precisa, a um só tempo poética e política, do que há de mais poderoso nesse cinema: quando tudo lá fora diz não, o olhar se volta para o quintal de casa e enxerga ali uma imensidão de possíveis.

O quintal é o lar de furacões passageiros e aberturas para outros mundos: em Quintal, se o rosto de Zezé não demonstra nenhum espanto após a passagem do vento do absurdo, a abdução traz para Norberto a inspiração para uma dissertação de mestrado sobre filmes pornográficos dos anos 1990. Mas a defesa do deslimite da imaginação é também política: a imagem de um homem negro apresentando sua pesquisa em uma universidade brasileira ainda é tão surreal quanto um portal para outra dimensão esburacando a tarde no jardim.

Em Fantasmas (André Novais Oliveira, 2010), o gesto se torna ao mesmo tempo minimalista e extremamente sofisticado. Um plano fixo mostra uma esquina qualquer na periferia – um início de noite, um posto de gasolina – por longos minutos, enquanto ouvimos no fora-de-campo uma conversa corriqueira – deliciosa e hilariante – entre dois velhos amigos. A certa altura, subitamente, a câmera que filmava a esquina passará a fazer parte da história e motivará uma briga entre os dois. Gabriel a instalou ali na laje para filmar a ex-namorada que foi vista na vizinhança – e se livrar dos fantasmas. Maurílio, zeloso dos sentimentos do amigo, tenta impedir o disparate. Na batalha corporal pela posse da máquina de filmar que adivinhamos nas vozes cada vez mais alteradas e na trepidação violenta do quadro, é todo um conjunto de normas canônicas que rui em segundos. A cisão entre campo e antecampo se esfacela nessa imagem trêmula que carrega as marcas de sua fabricação. A separação entre o que é diegético e o que é extradiegético desaparece quando a câmera, o aparelho responsável por criar o mundo do filme, se torna o centro do conflito dramático. A ontologia da imagem cinematográfica e sua relação indissociável com a memória dá um salto no abismo quando Gabriel não filma para lembrar, mas para esquecer. Quando, no auge da briga, o carro da ex-namorada desponta ao lado do posto de gasolina e o rapaz “mete o zoom” para poder enquadrá-la melhor, são os limites entre documentário, ficção e cinema de vanguarda que já não fazem sentido algum.

Pouco Mais de um Mês (André Novais Oliveira, 2013) também coloca os fenômenos da imagem no centro da narrativa. A câmara-escura que se forma entre a cortina e o teto no quarto da namorada do protagonista – e que faz ver a rua lá embaixo refletida magicamente em imagens-movimento, para o deleite do casal recente – é uma imagem-síntese desse cinema: todos os filmes parecem perseguir essa potência de maravilhamento que, subitamente, emerge em meio à cotidianidade mais banal, espalha seus efeitos e depois desaparece, mansamente, até entranhar-se em tudo ao redor; tudo converge para essas fendas – reais ou metafóricas – que se abrem no tecido do dia-a-dia e logo se fecham, para continuar irrigando tudo. Um pouco como um quintal aos olhos de uma criança: um terreno banal, com erva-daninha crescendo pelos cantos, que, numa tarde qualquer, se transforma em cidade, roça, estádio de futebol, teatro, espaço sideral, para depois se desfazer novamente em poeira e mato – deixando um rastro de possível por toda parte.

É essa capacidade de estupefação que dispara Mundo Incrível Remix (Gabriel Martins, 2014): em algum lugar turístico dos Estados Unidos, um músico de rua toca Hallellujah de Leonard Cohen ao piano e canta, enquanto um cara, vestindo um figurino que combina camisas floridas, uma capa com estampa de corações e um papel celofane azul na cabeça, dança sozinho, inebriado pela canção. Em meio a esse rolê aleatório, a câmera se posta no encalço do performer, filmando-o de perto. “You’re amazing, man”, repete a voz de Gabriel no antecampo. Quando o corte nos levar a um outro quintal em Contagem e à tartaruga Binha (“a última encarnação de Jesus na Terra”, segundo o avô do cineasta) entre as imagens de santos e os bonecos no altar, à conversa sobre filmes de super-heróis, será essa disposição para o espanto que percorrerá cada fragmento do filme. Mas se o mundo é incrível, surpreender-se com ele não basta. É preciso dar o passo seguinte: transformar uma partilha de fotos de viagens ao redor do mundo em ocasião para a redescoberta da paixão entre o casal de meia-idade; justapor o rapaz tocando tango ao piano em algum lugar da Ásia ao forró dançado na beira de algum lago do interior de Minas muitos anos atrás; filmar os olhos da namorada e atravessá-los com as texturas de um clipe da Beyoncé; partir das palavras de um sonho para transformar as ruas do bairro em plataforma para o voo ou em cenário de um filme-catástrofe com direito a explosões e raio laser; encontrar o sentido da vida numa cena de sonho num ônibus, na boca de um ET parecido com o Clodovil.

Nessa estética, reconhecer o incrível que há no mundo é só parte do trabalho. A tarefa seguinte é fazê-lo vibrar, desdobrá-lo, transfigurá-lo uma e outra vez – e, para isso, é preciso ficção, montagem, efeitos especiais. Para fazer justiça à transformação ininterrupta do mundo que o faz escapar ao tédio e à previsibilidade absoluta, é preciso deixar-se irrigar alegremente pelos fluxos de criação que hoje surgem em lugares muito distantes da instituição-cinema, para que uma impureza nova possa vir e rachar de novo essa arte indelevelmente impura, que sempre se inventou entre um empréstimo e outro, entre uma fenda e outra.

Mas não nos enganemos: no bojo de toda a leveza e de toda alegria, esses filmes são também um front de batalha. Esse cinema se faz no extremo oposto do olhar contemplativo e apaziguado que faz com que tantos filmes – muito mais numerosos – se dirijam à periferia, ao sertão, ao interior do país com um olhar meramente curioso, desimplicado, que só enxerga esses “outros” mundos a partir de sua diferença mais superficial – e, por isso, só pode se excitar com a mais pueril “cor local” imediatamente celebrada. Fantasmas é também isso: uma implosão cabal do filme de galeria em seu devir câmera de vigilância; uma reação violenta à transformação da periferia em aquário.

Se não é mais a fome ou a violência que atraem o olhar que se dispõe ao espetáculo extrativista – a batalha contra a ética da Retomada sintetizada em Cidade de Deus (Fernando Meirelles e Kátia Lund, 2002) já estava ganha, num certo sentido –, ainda restam a combater a retórica da ingenuidade, a farsa do bom selvagem, o mito da pureza ancestral ou a prisão da excentricidade. Se Fantasmas poderia ser pensado como o filme que anuncia em poucos minutos o fim do que se convencionou chamar de Novíssimo, é porque a vibração do cotidiano num canto qualquer da cidade já não vale mais como ocasião para a composição plástica que se contenta em atestar que o mundo é belo – ver Acidente (Cao Guimarães e Pablo Lobato, 2006), ver Notas Flanantes (Clarissa Campolina, 2009) –, e sim como uma matéria de sonho que é preciso ativar à força dos golpes de encenação, uma piscina de plástico que convida ao mergulho decidido na montagem, uma pista de dança em que é preciso inventar o próximo passo.

Por isso é tão importante que, em Quintal, Dona Zezé destrua sua imagem de inocência para flertar sutilmente com o fortão da academia; que ela se utilize malandramente de sua própria aparência de candura para sabotar o poder do coronel playboy. Se a música brega é a nova boca de fumo, se os galos de briga viraram peixinhos coloridos saltitantes, é preciso caminhar na contramão do neoextrativismo travestido de generosidade e desarmar as armadilhas do paternalismo imperante com astúcia e altivez.

Seria possível, talvez, pensar essa estética do quintal como um dos elos perdidos entre a estética da fome e a estética do sonho glauberianas. Ou melhor: pensá-la como um remix, um mashup entre uma e outra, pois o quintal é ao mesmo tempo fome e sonho, precariedade e imaginação. “Nossa originalidade é a nossa fome”. Como não identificar o plano único de Fantasmas, filme feito com cinquenta reais (incluindo o macarrão), nessa passagem do manifesto de 1965? Por outro lado, “uma obra de arte revolucionária deveria não só atuar de modo imediatamente político como também promover a especulação filosófica, criando uma estética do eterno movimento humano rumo à sua integração cósmica”. Como não reconhecer a dimensão cósmica de Mundo Incrível Remix ao ler essa outra, da conferência de 1971?

Longe dos jardins e das coberturas, perto dos quintais e das lajes, o povo já não precisa mais ser “um mito da burguesia”, pois esse cinema – antiburguês já no nascedouro – pode inventar figuras do povo insuspeitadas, quantas forem possíveis. No interior desses filmes de plástico e arame, feitos com orçamentos de dezenas de reais ou de poucos milhares, com câmeras digitais ou com vídeos caseiros, em planos fixos ou com direito a efeitos especiais, entre conversas arrastadas e explosões de mísseis, aninha-se uma imensa reserva de invenção, capaz de dinamitar as bases das novas hegemonias imaginárias e apontar um possível para o futuro do cinema.

 

*Uma versão anterior deste texto foi publicada em um catálogo lançado pelo festival Curta Cinema em 2018.


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