Chocante (2017) e Bingo – O Rei das Manhãs (2017) são filmes de nostalgia. Não existiriam sem a certeza de conquistar, com pouco esforço, uma parcela do público ávida pela máquina do tempo que a leve de volta a algum lugar do passado. Como máquinas do tempo ainda não foram inventadas, a arte criou seus dispositivos: ficções de ontem que não pretendem contar uma história, mas conjurar um espírito. Filmes que não estão nem aí para o drama ou a comédia. O que interessa, na verdade, é religar o espectador a sensações e lembranças confortáveis. Aprisioná-lo na evocação querida.
Cabe aqui uma velha piada sobre a Paixão de Cristo. Por que sair de casa e pagar ingresso se você já sabe o final? Eis que alguém responde: para renovar a fé. Aleluia, irmãos. Vendo Chocante e Bingo – O Rei das Manhãs o espectador renova sua fé no passado. A casa em Itapecerica da Serra, o tio que morreu, expedições sexuais dentro do quarto escuro. Psicanálise simbolizada em um palhaço meio louco ou uma boy band de araque.
Quem dera fosse só isso. A nostalgia é também uma tour de force, uma façanha que precisa ser milimetricamente investigada. Falar sobre o passado envolve conceitos e preconceitos. A primeira dúvida surge ao estabelecermos quando o passado está no ponto para começar a ser idealizado. Tenho certeza de que esses primeiros vinte anos do século XXI darão um grande e rico passado no futuro. Consiga um print screen do seu perfil no Orkut em 2006. A estética gira entre o ingênuo e o tosco. Já caiu de podre. Imaginem a memorabilia de memes e afins do Facebook. O design do Spotify (é o caso de evocarmos outro print screen: o KaZaA rodando em uma tarde de 2002). Habitantes do futuro viverão mesmerizados, fascinados com tanta porcaria velha.
Pode parecer óbvio que, como na música do Joelho de Porco, hoje é o passado do futuro. A lâmpada de Edson se acende ao mapearmos as escolhas dessas reconstituições. Chocante, por exemplo, se refere a 1996. Porém, qualquer olhar treinado reconhece ali um cheiro de 1987, 88. O clipe da banda, apresentado nas últimas cenas, vai mais longe: recria uma estética clássica do início dos 1980. Coloque lado a lado com “Jóia”, tesouro da Rosemary no Fantástico de 1982, para entenderem o dilema.
Fica a impressão de que, nos anos 2010, a simbologia dos anos 1980 virou cigarro paraguaio dos 1990, em um processo irreversível. Alimentados em canais do Youtube, conversas de bar, os 80 e 90 viraram uma coisa só, tanto quanto hoje os “anos 70” parecem conter Woodstock e hippies. Pogobol, Viva a Noite e o Dominó cantando “P da Vida” nem imaginavam adolescentes surfando no Netscape, a eleição da nova Loira do Tchan ou Ratinho emocionando o país com o calvário do menino Leandro. Disquem para 0900 (1,99 o minuto) e deem um palpite sobre qual dos passados Chocante imprime como sendo 1996.
Bingo… não mergulha no embuste. Estamos em 1983, 84. Acabou-se. Baseado no Bozo do SBT – mais precisamente em um dos Bozos, o ex-ator de cinema Arlindo Barreto – falsifica tão somente a impressão de que Barreto, excelente ator, um dos irmãos Nilsen em A Intrusa (1979), de Carlos Hugo Christensen, foi o melhor e mais original Bozo de todos os tempos. Ora, minhas lembranças avisam que o verdadeiro Arlindo Barreto era Charles Myara, o chamado “Bozo Carioca”: irreverente, politicamente incorreto e malicioso como um personagem dos Simpsons. Pena que restrito apenas às crianças do estado do Rio. Barreto estava na onda, e se deu bem. Duvido que alguém troque Myara, sacana instalado em um estúdio mambembe de São Cristóvão, vendendo pirulito com pozinho e conversando no bozofone com crianças oligofrênicas, pela misancene coxinha dos Bozos paulistas.
Apesar do fantasma solipsista de Barreto, Daniel Rezende (diretor) e Luiz Bolognesi (roteirista) quase acertam. Conseguem um espetáculo adulto sobre palhaços, ressignificam uma porção de fragmentos dispersos no inconsciente dos brasileiros com mais de 35 anos. Infelizmente, aos 40 minutos do segundo tempo, cruzam uma bola errada ao deixarem Bingo… transformar-se em gospelxploitation. Um gospelxploitation cínico, burocrata, sem a simplicidade e a crença verdadeira de outro cineasta chamado Daniel, o mineiro Daniel Evêncio – um talento a ser descoberto, vejam no Youtube – capaz de colocar nas telas as piores atrocidades mundanas (gore, voyeurismo, infidelidade lésbica) coroadas com lições da Bíblia e apologias ao amor e à família. Bingo… segue o padrão de Daniel Evêncio, é um Evêncio hipster, mas não converteria a velhinha de Taubaté.
A praga dos finais edificantes, da mesma forma, diz um alô em Chocante. Você se deu mal na vida, fracassou ridiculamente, tornou-se a sombra da própria juventude? Basta ter um filho, ou conhecer alguém que tenha, e projetar na pobre criatura algum delírio de potência, o sentido que tanto lhe faltou. A pior forma de covardia é a vampirização espiritual dos jovens pelos velhos. O que deveria ser tratado a quatro paredes, em um consultório especializado, termina ostentado em cenas patéticas do pai mostrando para os amiguinhos da filha como se bailava em 1996 (com o tal inexplicável figurino de 1987).
Vivo entre as ruínas, um novo membro da boy band quarentona, Rod (Pedro Neschling), contratado para rejuvenescer o revival, traz o único dado relevante para a história: como se modificaram os métodos e as artimanhas do show business de vinte anos pra cá. E estamos falando dos bailinhos de subúrbio, empresários duvidosos, gente que anda de ônibus e mora longe. Imaginem o Keith Richards lembrando as tretas do Allen Klein em 1969.
Por isso é preguiçoso reduzirmos a dicotomia passado/presente – alma de ambos os filmes – na ideia de que a nostalgia ao século XX existe porque, logo ali, havia diversão e liberdade. Não fomos somente nós que mudamos, envelhecemos ou engordamos; o sistema capitalista passou a impor novas exigências. E do que estamos “sentindo saudade” em Bingo… e Chocante é também de uma contingência antiquada, precária do negócio de entretenimento capitalista. Por mais melancólico que pareça, não podemos nunca perder de vista qual o papel de nossas emoções em uma cadeia de consumo.
Um parêntese interessante sobre “a potência do passado” é que todo o trabalho feito em cima de iconografias – sejam os Beatles ou o Bozo – decorre justamente dessa necessidade de congelarmos o tempo em alguma contingência. Elvis Presley é o melhor exemplo disso: seus inúmeros imitadores firmam-se quase sempre na imagem do artista maduro dos anos 1970. Na época, o que parecia uma deficiência – Elvis não renovou seu visual durante anos, engordando dentro dos macacões – hoje é o grande trunfo, o fetiche de seus impersonators. Congelou-se a imagem do ídolo, gera-se um consenso ao repeti-la. O que temos em Chocante não se afasta muito dos tributos ao rei morto. É a repetição do consenso do que seria uma boy band. Um ponto pacífico, imobilizado para a eternidade.
Claro que, como disse no início, tudo vira identificações projetivas, que sacodem o imaginário em busca de evocações pessoais. Daí a triagem das representações assumir um caráter quase político, de “o que eu quero que você se lembre”. Notável em Bingo… o ufanismo de um “jeitinho brasileiro”, que se dilui no antiprofissionalismo de Chocante. Fato é que a autoimagem do brasileiro nos anos 2010 vem se talhando no cinismo e na inevitabilidade de um destino sórdido. A dolorosa aceitação de que seremos sempre a periferia risível do mundo. Nesse ponto, a nostalgia otimista de Bingo… é antiga – a farsesca de Chocante, moderna.
O que mais desejei, após assistir aos dois para escrever, é que chamem o padre Damien Karras, de O Exorcista (1973), e realizem de vez um banho de descarrego na “Infância 80”, este saco de gatos reacionário e narcotizante, que impede outros passados de brilharem em paz. Sim, vamos fazer filmes dos 1990 com TVs Gradiente 29 polegadas, trilha sonora dos Morenos e do Katinguelê, frango a 1 real, peças do Gerald Thomas. Elymar Santos chorando no Programa do Faustão. Vamos torcer pelo Rubinho Barrichello. Diante do já vivido e de toda a falta de perspectivas, é preciso acreditar.
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