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Balaio de gatos

Em algum corredor da minha infância, lembro da mitologia em torno de uma peça de teatro, chamada Greta Garbo, Quem Diria, Acabou no Irajá. Com o passar dos anos, o que era espanto – muito pela sonoridade do título, que eu adorava, entre chicabons e cigarrinhos de chocolate – transformou-se em algo concreto. Os pedaços foram se encaixando, contextualizei a peça no imaginário GLS, que, assim, ganhou outro sentido.

Pois bem, o mesmo ocorre com Garota de Ipanema (1967). O suburbano Leon Hirszman, quem diria, acabou na Zona Sul do Rio de Janeiro. E o que parecia retrato da juventude carioca ganha outro sentido: o da total esquizofrenia.

Pergunto-me o nível de confusão sofrido por Hirszman, diretor ultra-dialético-marxista-materialista-angryyoungman do Cinema Novo. Saiu dos arrabaldes da Zona Norte e caiu no berço das maravilhas, em 1967: momento em que a antiga capital federal ainda ressoava alguma coisa de útil. Mais do que isso: momento em que a cidade era, efetivamente, a meca das modas e da intelligentsia.

Na tela, vemos a praia e a gente bonitinha. Porém, na essência, Leon fez um balaio de gatos, cheio de gorduras.

Márcia (Márcia Rodrigues), 17 anos, mora em Ipanema. Tem a melhor amiga (Irene Stefânia), o namorado (Arduíno Colassanti) e os pais (João Saldanha – sim, o jornalista e técnico de futebol –, e Rosita Thomaz Lopes). Vai à praia, estuda na PUC. O apartamento de Márcia é de frente para o mar, imitando a residência de Nara Leão, château da Bossa Nova. A família recebe gente como a própria Nara, Chico Buarque, Luiz Eça. Todos, em pleno iêiêiê de 1967, cantando as modinhas do céu, sol, azul.

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Esse contraponto é um problema de espírito. Se a intenção era realizar uma polaroide da juventude praieira, caberia ao filme ter a coragem de enfrentar outros redutos, como, por exemplo, as boates de Copacabana ou o Solar da Fossa. Ou, pegando mais leve, focar na imensidão da classe média carioca, despida de idealizações. Assumir que era atrasada e machistóide, mesmo com o Estatuto da Mulher Casada, de cinco anos antes.

Os bate-papos de Márcia com o fotógrafo trintão (Adriano Reys) transborda de Hiroshima Mon Amour quando, na verdade, o asfalto tinia de quente, o vendedor de mate sorria desdentado, as nuvens de laquê empapavam o ar, os jeitinhos marotos apareciam na fila do banco. Tudo muito distante da sofisticação pretendida por diálogos forçados.

A abordagem de um chato (Joel Barcellos) para cima de Márcia é filmada sem a tranquilidade de espírito – novamente ele –, que outros contemporâneos tinham de sobra. Basta lembrar de Todas as Mulheres do Mundo (1967), de Domingos de Oliveira. Em Garota de Ipanema, a cena da cantada parece um incômodo do Mal. Justamente para ela, a quem escreveram a canção homônima, a observação etílico-amorosa de Tom e Vinícius.

Minha Namorada (1970), de Zelito Vianna, atinge com maior sinceridade a proposta de Garota de Ipanema. Fala dos costumes, das inseguranças, da vida de um casal de jovens, também na Zona Sul do Rio. Delicado e doído, como Junk, de Paul McCartney, que fica rondando no pano de fundo. Copacabana Me Engana (1968), de Antônio Carlos da Fontoura – batedor de ponto no Antonio’s – mostra a boçalidade do personagem Marquinhos (Carlo Mossy). A relação doentia com a família – nada de bom mocismos, nem de papai e mamãe compreensivos –, incluindo o irmão (Hugo, Cláudio Marzo).

Por essas e outras, fato é que o roteiro de Leon Hirszman e Eduardo Coutinho aborda questões que o diretor não operava com tranquilidade: as miudezas e epifanias do cotidiano. A colaboração de Vinícius de Moraes (roteiro e produção) acaba sendo artificial. O que Vinícius projetava de “engajamento social” em Orfeu da Conceição, nos anos 1950, já não resistia a 1967, pré-AI-5. Vinícius era o oposto do cepecismo de Leon.

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De toda forma, a sua participação deve ter garantido a quantidade de aparições-relâmpago no filme, cheio de amigos do “projetinho do Leonzinho”. Aparecem, dentre (muitos) outros, Fernando Sabino, Baden Powell, Braguinha. Como se não bastasse, até Glauber Rocha deu suas pinceladas em Garota de Ipanema. O sururu de estilos comprova o polígono equivocado em que resulta o filme.

A dois anos de Stonewall, Garota de Ipanema fica com um pé indo e voltando na revolução de costumes. O fotógrafo interpretado por Adriano Reys dá a entender que Márcia deve confrontar a sociedade. Será ela noiva, dona de casa, guerrilheira, intelectual? Mas basta Márcia colocar roupas de bofinho que o troço não cai bem aos olhos do moço. Se existisse cara de pau verdadeira no filme, o fotógrafo tiraria de letra. Aracy de Almeida sempre foi jocosa, lésbica e também viveu no Rio de Janeiro de antanho.

Acontece que, em termos de cinema brasileiro, essa flor de uma nova abordagem estava sendo gestada por outras turmas. Explodiu nos anos 1970. Fosse na Belair – citação mais óbvia, produtora de Júlio Bressane e Rogério Sganzerla –, fossem nos desgarrados, como João Silvério Trevisan e o seu Orgia ou O Homem Que Deu Cria (1970). O Cinema Novo penaria para entender a sexualidade e o papel feminino. Helena Solberg – única entre os marmanjos do grupo – que o diga. Sobrou mais-valia e crítica aos meios de produção. Faltou expandir a Nova Era.

Aliás, vale lembrar que o próprio João Saldanha, comunista histórico, imbuído no “avanço social” e escalado para o filme, tinha cacoetes provincianíssimos. Em suas memórias, Aguinaldo Silva conta como provocou o colega de Última Hora. Afirmou ser botafoguense, time do coração de Saldanha – nem era, apenas mentiu para atormentá-lo. Saldanha saiu bufando. Para o ex-treinador da seleção brasileira, “Botafogo era time de macho”. Ainda bem que não tentou acertar Aguinaldo com uma Olivetti pelas costas, como quase fez com Maurício Azedo, outro jornalista da equipe.

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Assistente de direção de Nelson Pereira dos Santos em Rio Zona Norte (1957), Leon Hirszman sentiu-se à vontade em Pedreira de São Diogo – curta-metragem no pacote de Cinco Vezes Favela (1962) –, sobre um motim de operários. No clássico Eles Não Usam Black-Tie (1981), Leon estava maduro e percebeu como o lirismo pode aumentar uma tensão que, originalmente, é econômica. O filho (Carlos Alberto Ricelli) enfrenta o pai (Gianfrancesco Guarnieri), responsável pelo movimento grevista em uma fábrica. Se é preciso matar a figura do pai, nada mais complexo do que assistirmos a essa luta no filme, ao invés da gritaria de clichês da UNE.

Mesmo diante das contrariedades, Garota de Ipanema tem efeito hipnótico. É difícil não assistir a ele sentindo uma cava depressão. Os rostos, as cores, as esquinas, a alma profana e vadia das ruas que parecem de zilhões de éons atrás. A prosódia carioca, arrastada, que se perdeu no miguxês. Como entristece perceber que os anos 1960 soam hoje como para eles soava o século XIX. Neste momento no cosmos, em que somos reféns de uma guerra radioativa sem previsão de fim, a caminhada dos personagens pela orla parece um extrato do Vitascope de Thomas Edison. Cravo minhas fichas na constatação de que, por esse motivo, a eternidade guardará lugar especial para o filme. Não por suas contradições internas – que nem todo observador conseguirá conjugar –, mas porque o espírito – finalmente ele – do tempo empresta a Garota de Ipanema o que de fato não possui.


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