O Brasil dos anos 2020 virou um pesadelo institucionalizado, e é pouco provável que esta nova ideia de país se modifique em pouco tempo. Para chegarmos ao vaticínio hiperbólico, devemos analisar o que nos trouxe até aqui. Antes de qualquer coisa, o país de 2021 veio sendo urdido por uma sucessão de equívocos e delírios que pareceram, em momentos cruciais, decisões equilibradas, triunfos irrefutáveis. Com o distanciamento histórico, conseguimos dizer que, sim, estávamos mesmerizados. E o desatino, o êxtase da impropriedade, termina nos parecendo tão absurdo e fora de contexto, que, para alguns, chegará a ser humorístico.
Você olha imagens da abertura das Olimpíadas do Rio, em 2016, e pensa: em que planeta estavam aquelas pessoas? Você observa as sucessivas obras que destruíram o velho estádio do Maracanã, e se pergunta: como permitiram? Mas narrativas de insanidade só gritam desastrosas quando terminam, ou, melhor dizendo, quando “são vistas de fora”. Até o despertar do consenso, até a hora mágica do arrependimento, os que nadam contra as correntes parecem apenas chatos.
Voltemos, por exemplo, à demolição do antigo Senado brasileiro, o Palácio Monroe, no centro do Rio, em 1976. Em campanha civilizatória, urdida pelo arquiteto Lúcio Costa e pelo jornal O Globo, a demolição do prédio histórico foi dada como justificativa natural para o crescimento da cidade. “O Rio ganha mais uma praça”, alegaram defensores da empreitada. Ainda em 1976, o Jornal do Brasil, rival do Globo, apoiava vozes discordantes. No entanto, para a maioria da população, aquele debate parecia somente um duelo de egos. Hoje, o patrimônio carioca chora de saudades do Palácio Monroe. A própria transferência da capital federal do Rio para Brasília foi outra marcha de insensatez, vendida como arrojo e potência para os contemporâneos dos anos 1950.
Não quero me alongar, nem divagar mais. O importante é termos em conta que um presente ruim é sempre fruto de um passado equivocado. E onde entra o cinema brasileiro nisso? Filmes como De Pernas Pro Ar (Roberto Santucci, 2010), Até Que a Sorte Nos Separe (Roberto Santucci, 2012) e Tô Ryca (Pedro Antônio, 2016) são documentos palpitantes, embora rudes, obtusos, dessas falsas vertigens. Em setembro de 2016, ao analisar Um Suburbano Sortudo (Roberto Santucci, Marcelo Antunez, 2016) para a Cinética, eu os apelidei de moneychanchadas. Naquela ocasião, as repetições espertinhas de Roberto Santucci começavam a dar sinal de esgotamento.
O primeiro Até Que a Sorte Nos Separe trazia uma celebração de possibilidades. Isso porque o preconceito contra pobres (sólida instituição nacional) ganhava fundamental variante: a pobreza poderia ser um estado passageiro, dissolvido no éter de uma hora para outra. E a mudança de status não se dava através de trabalho, evolução ou conhecimento. Acontecia graças a um prêmio da Mega Sena, que transformou o simplório Tino (Leandro Hassum) e a estúpida Jane (Danielle Winitis) em casal milionário do dia para a noite. Se o registro do “casal pobre”, nos primeiros minutos da história, tem algo de idílico, até romântico, a sorte os transforma em seres fálicos, quase repugnantes. Hassum e Winits emulam uma representação pantagruélica, sem sutilezas, no limite do insuportável.
Importante frisar que o sucesso ou a ruína financeira em nada mudavam a essência da dupla. Em eras pré-pandemia, poderiam comprar umas passagens na executiva da Alitalia, descobrir a Galleria degli Uffizi, em Firenze, se deslumbrarem com o Taj Mahal. Talvez um swing de frente para o Louvre, no Hotel Regina, em Paris. Que nada. Tino e Jane gastam 100 milhões de reais dando festas para amigos puxa-sacos, viajando para a Disney, mantendo aparências frívolas em mansões cafonas na Barra da Tijuca. Eram tempos da “nova classe média”, que se consolidava no rescaldo do governo Lula, e o comportamento de Jane e Tino parecia descrição perfeita dos anseios de seu público. A vulgaridade efusiva ocultava um alento. Como diziam nossos avós, um refrigério para ansiosos. Até o duelo com um vizinho chato, Amauri (Kiko Mascarenhas), vinha sob medida para que o espectador acreditasse na liberdade selvagem de Tino e todas as suas redenções.
Estranho pensarmos que o filme não era apenas conto de fadas, mas captava um sentimento difuso da época. Tino devora um cupcake, moda de 2011. O Brasil crescia, caminhava para ser a quinta economia do mundo. Talvez a minha chance, a sua chance, leitor, estivesse próxima. E seríamos todos Tinos, em jogatinas metafísicas. Roberto Santucci e o roteirista Paulo Cursino marcaram gol ao abraçar esse espírito, sem o conjugarem ao esforço do trabalho (por exemplo: da construção lógica de uma bela carreira, surfando uma onda econômica favorável). Quem trabalha, quem faz poupança, é Amauri, o seco antagonista.
Em Até Que a Sorte Nos Separe 2 (2013) esse cálculo fica mais explícito. Camila Morgado vira Jane no lugar de Danielle Winits e eis que a esposa recebe uma herança. Sim, senhores, uma herança. Nada mais brasileiro, nada mais rentista, do que a herança, normalmente vinda de um parente distante, cuja história (e causa da riqueza) se dissolve como mísero detalhe. Tino se esforça, perde tudo de novo, vai parar em Las Vegas. A presença da família nos States enseja flerte deslavado com o pastiche de comédia norte-americana. Lembrem-se daquele perde e ganha alucinado que Chevy Chase viveu no agora clássico Férias Frustradas em Las Vegas (Stephen Kessler, 1997).
Então chegamos ao terceiro filme. Enquanto a plebe dorme, a família de Tino refaz outro atalho para o enriquecimento: o casamento com gente bem. Claro que gente bem não seria a família Matarazzo ou os Mayrink Veiga, mas um arremedo de Eike Batista. O Brasil nasceu de casamentos. Degredados portugueses investiam nas filhas dos caciques para não serem devorados. Tino age como um Caramuru ou João Ramalho às avessas: conquista o poder aceitando o casamento da cria com o filho do cacique. O Tino fálico, impositivo, vai se dissolvendo em malandro antropofágico. A tal “nova classe média” acordava do sonho e grande parte da população brasileira começava a ser puxada (de novo) para baixo na pirâmide social.
Antes de Até Que a Sorte Nos Separe, Santucci dirigiu De Pernas Pro Ar (2010), com uma continuação em 2012, que apostava em premissas gratas às moneychanchadas (fantasmagoria financeira, a utopia de um país moderno e indivíduos merecedores de milagres e bonanças) com o diferencial que Alice (Ingrid Guimarães), a protagonista, é figura pronta em todas suas idiossincrasias. Jane (seja Winits ou Camila Morgado) inaugura, a partir do dinheiro, um rascunho de nouveau riche. Alice já comprou passagem para fora do subúrbio antes do filme começar. Está solidamente assentada na Zona Oeste do Rio, e poderia – a exemplo de quatrocentonas paulistas – dar aulas de etiqueta para os que chegam do Bixiga, ou de Cascadura.
Em breve, anotem, existirá a tradição dos outrora neo-ricos da Barra da Tijuca. Para que exista uma tradição é necessária certa ruína. Nada mais decadente que uma família atávica de algum edifício bacana da Avenida Atlântica ou da Vieira Souto. Pois bem. Alice é dessas tradicionais ainda sem tradição. Encara fantasias sexuais e existenciais, que deságuam em empreendedorismo burlesco. Lá por 2015, Alice deve ter ido às passeatas pelo impeachment de Dilma Rousseff com a camiseta “Não tenho culpa, eu votei no Aécio”. Entre Alice e Tino, eu gosto mais da mulher. Alice é complexa, pin-up contemporânea, que come ao invés de ser comida. Tem uma piroca enorme, assusta o marido e a qualquer homem – homem: espécie em extinção.
A moneychanchada produziu outras pérolas, como Tô Rika (2016), de Pedro Antônio Paes, e Santucci cometeria auto-plágio em O Suburbano Sortudo (2016). São mais do mesmo: dinheiro ao alcance de todos. Digno de nota é Os Farofeiros (2018), que a dupla Santucci-Cursino (com Odete Damico) lançou pouco depois de O Suburbano Sortudo, causando, ao que parece, um inteligente adeus ao universo de Até Que a Sorte Nos Separe. Os Farofeiros é comédia tradicional de luta de classes, em que José Carlos Avellar daria piruetas de felicidade. Devolve ricos e pobres aos estereótipos das piadas ancestrais de humoristas como os Trapalhões, Jô Soares ou mesmo Agildo Ribeiro. É o humor pré-Nova República, pré-TV Pirata. A mulher negra, obesa, tem um filho chamado Enzo (“Só gente rica pode ter nome bacana?”). A riquinha histérica (Danielle Winits) brilha apetecível até que surja outra tetéia mais jovem. Os personagens cultivam o bullying geográfico, estético e sexual como se estivessem em um botequim de 1982.
Os Farofeiros é o país da ressaca, o país da crise. Ficar desempregado soa mais plausível do que ganhar na Mega Sena. Quando Winits vira um monstro na piscina verde, entendemos que nosso destino, aqui em 2021, estava traçado. De lá pra cá, os excelentes No Gogó do Paulinho e Tudo Bem No Natal Que Vem (2020) só atestam a competência e o repertório variado de Santucci e Cursino. Assim como Aquarius (2016), de Kléber Mendonça Filho, não era sobre “Fora Temer” – sim uma crítica ao imobilismo de certa esquerda (e é isso, entre outros predicados, que tornou Aquarius, na minha opinião, o melhor filme brasileiro da década) – as direções de Roberto Santucci não são tão simples quanto parecem. Por trás da autoajuda matreira, por trás da sutileza de telecurso, resistem a amargura, a tragédia. E a política. São filmes ideológicos, que empurram o espectador à concordância ou ao paradoxo.
Digo e repito: nada mais antigo que o passado recente e, olhando de hoje, as moneychanchadas podem ser ressignificadas em contextualização maior do que suas óbvias fragilidades e clichês. Ninguém junta os pontos, mas, no início dos anos 1970, durante o chamado Milagre Econômico, o Brasil viveu outro pequeno surto de moneychanchada. Eu poderia citar o clássico – inspirado em It’s a Mad, Mad, Mad, Mad World (1963) – Como Ganhar na Loteria Sem Perder a Esportiva (J. B. Tanko, 1971), talvez o maior elenco já reunido em um filme brasileiro, ao lado de Solidão, Uma Linda História de Amor (Victor Di Mello, 1989). Porém, prefiro me ater ao obscuro e subestimado O Bolão (1970), de Wilson Silva, protagonizado pelo lendário cantor Taiguara. Aquele mesmo Taiguara que aparece na trilha sonora de Aquarius, cantando Hoje.
O Bolão inicia com uma cena que não passa desapercebida: em um país de 90 milhões de técnicos de futebol, a ganhadora dos 13 pontos na Loteria Esportiva é uma dona de casa que selecionou seus palpites baseada na sonoridade dos nomes dos times. O que o falecido roteirista André José Adler quis dizer com isso? Por mais que parecesse existir uma “ciência” por trás da Loteria Esportiva – ciência amplamente praticada pelos apostadores profissionais – como em toda Loteria, a vitória era apenas obra do acaso. Escreve-se a súmula necessária, reavivada com os filmes de quatro décadas depois: grana voando, em um átimo de iluminação, qualquer néscio chegaria ao nirvana.
Além disso, em O Bolão temos instantâneos poderosos dos usos e costumes brasileiros: Taiguara, no papel de marido reprimido, tomando café com a esposa e a sogra, remete imediatamente a um país que esquecemos. Observem também José Lewgoy, com seu jeito de homem antigo, levando espinafradas do patrão (Fregolente) em uma agência de viagens que parece repartição soviética. Em seguida, vemos o Aeroporto do Galeão – que em breve se tornaria “Galeão Supersônico”, pronto para receber voos de Concorde. Voar, naquela época, era privilégio dos ricos, que tratavam o velho aeroporto internacional da Guanabara como apêndice fidedigno de sua distinção econômica. Para os menos abastados, viajar uma vez para a Europa era o apogeu da vida (por isso, até hoje, muitos idosos narram essas viagens com riqueza de detalhes). Taiguara trabalha (de terno!) em uma loja de LPs, e não manja um simples “bathroom” em inglês. O desenrolar opressivo do pós AI-5, futebol no radinho de pilha, mulheres com lenço na cabeça, a esperança ilógica que ainda nos acomete. Está tudo lá, em menos de 90 minutos, no museu ao alcance da tela.
O céu é o limite para várias analogias entre O Bolão e Até Que a Sorte Nos Separe. Convido portanto os leitores a assistirem um em seguida do outro. É possível que ciclos de prosperidade – como os anos JK, Lula ou o milagre do Delfim Netto – gerem ciclos correspondentes de chanchadas e subgêneros. Nos plúmbeos 1971, 72, tornou-se lugar-comum a ilustração de uma “nova classe média” – normalmente uma família de operários dentro de um Fusca, comprado à prestação. Sabe-se que aquela “nova classe média”, que esperava o bolo do desenvolvimento crescer para abocanhar sua parte, terminou voltando para a indigência aos primeiros soluços do “milagre”. A recente “nova classe média”, empoderada nos governos petistas, decerto está conhecendo a indigência por outras circunstâncias, porém ambas têm algo em comum: fizeram escolhas erradas, desastrosas.
Nos anos 1970, podiam ter pego em armas, se juntado a intelectuais e estudantes para derrubar o regime militar. Por covardia ou anuência, preferiram a inércia. Nos anos 2010, a “nova classe média” renovou a crença nos mitos da direita. E, não por coincidência, caiu justamente na armadilha de uma direita bélica, militarizada. Voilà, o carnaval que redundou em opressão, fracasso e morte está bem documentado no ciclo das moneychanchadas. Afinal, o que é o enredo dessa alienação, senão a chance de mudar de vida jogada fora por inépcia, ingenuidade e deslumbramento? Sem direitos trabalhistas, sem aposentadoria, o sujeito entende que, no espetáculo da moneychanchada, a piada era ele mesmo.
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