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Meu deboche será sua herança

Fada do deboche debochando da mini pastora é uma versão reduzida de aproximadamente um minuto e meio de um vídeo de seis minutos, publicado em 2018, em que uma menina canta canções religiosas e conduz um culto evangélico num lugar público de uma cidade brasileira. A cena urbana gravada na vertical com um dispositivo de celular busca, na maior parte do tempo, enquadrar a personagem principal, de vestido preto e a todo momento tentando secar o nariz com coriza. Outras vezes busca-se enquadrar os presentes, em sua imensa maioria adultos, que a assistem com uma mistura de solenidade e tédio. São homens (em maior quantidade) e mulheres que pararam por ali por alguns instantes, nessa passagem para outro lugar. A veemência da gestualidade da menina, o timbre de seu canto parecem capturar a atenção daquele que filma, e orientar suas decisões. Mas o olhar por vezes se desloca para a audiência silenciosa e passiva, menos por interesse que por dever de ofício, de registrar o outro polo que completa o espetáculo. Nesses polos, portanto, se estabelece um regime de oposições: movimento e stásis, criança e adultos, variação de timbre e silêncio, veemência e tédio.

Esse regime, no entanto, se desestabiliza com o enquadramento de um dos presentes: a tal “fada do deboche” que está no título da postagem e pela qual o vídeo se tornou conhecido. A princípio, essa presença se destaca não só por ser ela uma das poucas crianças em cena (a outra é um menino mais novo que dorme em estado de R.E.M. nos braços da mãe), como ter a mesma idade da cantora. Ela também observa solene, como os demais, mas não necessariamente entediada. É interessante que essa diferença e ao mesmo tempo repetição com as quais a fada se impõe na cena não parece seduzir o autor do registro, que continua buscando o melhor enquadramento da cantora, tomando as decisões com base aos deslocamentos desta. Mas o próprio movimento da performer conduz quem registra à trama que se desenvolve no segundo plano: a fada, segurando um filhote de cachorro no colo, confabula com sua amiga também da mesma idade, enquanto a cantora segue alheia em seu show.

A fada do deboche debochando é uma aliteração, uma redundância, talvez porque seja na verdade uma espécie de tautologia que revela uma dificuldade: o que é realmente o deboche? Palavra insuficiente para a polissemia do gesto com a qual a fada captura o olhar que catapulta seu inesperado vínculo com a minipastora para a fama. No dicionário, “deboche” aparece como uma variação da zombaria. Se esta última desestabiliza por sua ostensividade e violência, o primeiro constitui uma reação até contida, cujo principal poder desestabilizador reside na capacidade de escapar da previsão daquele que age. O que o debochado parece dizer com sua expressão é: você não pode condicionar a minha reação com sua ação. Há um abismo entre a ação e a reação. Esse abismo é tão desestabilizador que aquele que registra se ausenta por alguns segundos do espetáculo – relegado ao fora de campo, mas ainda na luta para permanecer relevante através do canto e da performance da voz sem corpo – para acompanhar a deserção da debochada do próprio registro.

Assim, há um confronto no coração mesmo da repetição e não da diferença entre as únicas crianças na sala. Inverte-se ali a fórmula que coloca em posição hierárquica os presumidos adultos em relação às supostas crianças, dado que se desenha entre elas algo importante demais que está em jogo e não pode ser corretamente dimensionado pelos inocentes. Deslocando-se pela esquerda do quadro, a fada fulmina a câmera com a desconcertante e insondável expressão de seu deboche, calculada e pacientemente desenhada para as lentes quando ainda no segundo plano, levando consigo o cachorro e deixando pra trás a amiga, única guardiã do seu segredo, e o próprio espetáculo tal como previsto pela cantora.

Esse distúrbio na previsão coloca aqui a questão da autoria em sua fragilidade nas mais distintas dimensões, ou seja, para além da dificuldade que o deboche inesperado impõe. Porque a própria autoria da minipastora interessa menos pelo que revela de cálculo (terá ela idealizado o espetáculo?), e mais pelo que, inversamente, escapa ao planejamento. Se pensarmos o efeito estético como uma distância entre o que se pretende produzir e o que pode ou não chegar ao destino, podemos dizer que esse efeito reside aqui não na intenção, mas no corpo resfriado e no olhar extenuado dela, com a temporalidade e o desarranjo muito particulares desse estado corpóreo. Uma temporalidade fugidia, uma vez que o cansaço, nos lembra Deleuze, imprime o insondável do passado no presente do corpo. Ao mesmo tempo, resfriado e exaustão operam uma linha de fuga ao se deslocar da gramática reconhecível do gospel neopentecostal autóctone, a performance vocal corrigida que transita por um espaço limitado entre o cristalino e o rascante. Desloca-se também a gestualidade pregadora dos seus lugares pré-estabelecidos, expondo assim a doença mesma dessa linguagem.

É essa dialética entre o cálculo e o insondável que a debochada leva ao limite com a quebra da quarta parede (os demais presentes evitam com maior ou menor sucesso olhar para a câmera), não tanto para desmascarar a ilusão, mas para disputar o cinema. Nessa batalha pelo convencimento entre espetáculo gospel e deboche, que busca a cumplicidade do olhar na adesão e na não adesão respectivamente, a debochada a princípio levaria a pior, afinal, a versão original do vídeo prossegue por ao menos cinco minutos sem o contágio que ela promove. Mas o deboche viraliza precisamente esse fragmento porque não poderia ser diferente, afinal, com sua insondável encarada, a debochada habita a temporalidade do futur antérieur ou o future perfect. Nesse tempo verbal que descreve ações que já ocorreram num futuro determinado, a encarada na câmera sela o entendimento do mundo do qual fazem parte a debochada e a pastora: o mundo da contingência viral gravada na vertical de um celular. Sob o título redundante e aliterado, entendimento e contingência capturados na vertical encontram um olhar, um investimento sobre essas imagens no presente. Aqui novamente o sujeito desse olhar ou a autoria desse investimento interessa menos pela referência à origem – e particularmente, à originalidade – do registro do que pela oscilação produzida entre a expropriação e a recriação de sentido das imagens por meio do gesto criativo da remontagem.

Na deserção do registro pela fada, mas também pelo corte, que é o preço a se pagar pela deserção do show, o derradeiro statement: é a ressignificação pela moção debochada de desprezo que vai tirar a cena da banalidade descartável e do esquecimento para eternizá-la na posteridade. Ao sair de cena, o silêncio da debochada brada: o meu deboche será a sua herança.


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