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Cinemas da rede, no meio do redemoinho: da mão à rua, da rua à mão (2)

Esta publicação é a segunda parte do texto-conversa escrito por Álvaro Andrade, Juliano Gomes e Victor Guimarães.

Se você está chegando agora, leia a primeira parte aqui: Cinemas da rede, no meio do redemoinho: da mão à rua, da rua à mão (1)

Ao olhar em retrospecto para a última década de imagens fílmicas no Brasil, percebemos que se tornou insustentável para a crítica brasileira uma postura de negligência em relação a uma multidão de filmes realizados em todos os cantos do país, por realizadoras e realizadores diversos, que circulam diretamente por meio de plataformas online, sem a chancela dos festivais ou dos circuitos tradicionais de exibição. A definição mesma desse campo é equívoca e desafiadora. As perguntas se multiplicam. É cinema amador? É cinema popular? É cinema? Na tentativa de cartografar o campo e ensaiar algumas apostas, este texto-conversa foi escrito por Álvaro Andrade, pesquisador há muito interessado nesse universo, e os redatores da Cinética Juliano Gomes e Victor Guimarães. Os encontros de escrita aconteceram remotamente ao longo de duas semanas, no último mês de novembro.

Esta publicação faz parte da série #CinemasdaRede, que integra a nossa retrospectiva #RevisõesAnos10. Ao longo das próximas semanas, publicaremos um conjunto de mais de dez textos que continuam a conversa sobre os #CinemasdaRede.

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Táticas do plano único

Juliano Gomes: Fiquei pensando que o plano único é um dos divisores de base desse campo, e dentro dele há inúmeras subdivisões, em geral, variando e misturando o “performático” e o “direto”. Um dos marcos no debate da teoria do cinema, o realismo do plano, a ontologia da imagem, está sendo altamente solicitado por essa produção. Temos um reavivamento voraz das estratégias de saturação, como no caso do Fundo de Quintal OFC, de uma maneira claramente ligada ao cinema do século XIX, quando a tomada tem uma certa característica de jogo ou de desafio, usando profundidade de campo, ativação de todos os limites do retângulo do quadro. Por outro lado, temos, obviamente, os “flagras”, que é toda a linhagem documental, havendo um campo de mistura imensa entre as duas linhas. O troll é um exemplo disso, do performático e do documental. Mas temos os vídeos de animais como uma linhagem muito forte, que gera imenso tráfego, remontando aí aos pré cinemas, cronofotografia, até as pinturas rupestres. “Para nossa alegria” não está distante da obra do Negão da BL. Temos também o que talvez seja a obra-prima brasileira da saturação do plano pela variedade de modos e tons de encenação que é o “É deus, mamãe, ou O redemoinho”. Que mostra um outro tipo de saturação, que é essa intensa variação de cenas dentro de um mesmo espaço-tempo: o milagre consumado, a tiração de onda, a prece, enfim. Aquilo é uma espécie de gênero em si. Que não me parece, por exemplo, muito distante de algumas estratégias de Copacabana Mon Amour (Rogério Sganzerla, 1970) ou Sem Essa Aranha (Rogério Sganzerla, 1970). Enfim, que linhas vocês veem, ou que exemplos importantes vocês trariam dentro desse cinema de tomada única?

Álvaro: Outra linha importante, ou talvez nem seja uma linha, mas uma característica ou base ainda mais profunda desses planos únicos, é a presença do corpo em cena, seja o corpo que se filma, na selfie-sequência, ou o que narra o mundo que filma. Nunca há impessoalidade nesses planos, pelo contrário, eles quase sempre estão encharcados de pessoalidade. Se são fixos, como no caso do Fundo de Quintal OFC, é para que a trupe o atravesse de todos os modos. Se filmam um acontecimento externo ao corpo, estão em evidência a voz e os movimentos, que trazem a mão e o braço como presenças do extracampo, a respiração, a tensão, enquanto o que ocorre influencia com linhas visíveis ou invisíveis o olhar da lente. Enfim, acho que poderíamos afirmar que essa é uma vertente do corpo.

Juliano: Sim. Que complexifica a ideia de corpo, como tu disse. Porque o próprio uso da câmera é, em muitos casos, intensamente corporalizado. Em muitos desses filmes, é o próprio uso da câmera e não o que está em cena, o principal. Como o da criança correndo com o celular da mãe. Ali é misturado as duas coisas. Mas diria que a própria tomada adquire um caráter particular, né?

Victor: É notável isso que vocês falaram de como muitos desses planos únicos são impregnados do corpo de quem filma. Outro dia recebi um que era um plano-sequência subjetivo de um vaqueiro percorrendo um pasto, no momento em que ele se depara com uma manada de queixadas e decide bater em retirada. É um assombro: nosso olhar vê a cena postado em cima do cavalo, enquanto quem filma comenta. A voz mansa e quase monotônica do vaqueiro, essa mistura milagrosa entre travelogue, filme de apocalipse animal e comédia física, tudo adensado em poucos segundos. Ao mesmo tempo, é o “cinema vivido” do Perrault – agora por nós mesmos. Eu ainda me assombro com a riqueza desse campo. Que esse ponto de vista tão absolutamente singular possa surgir em meio a esse emaranhado de imagens. Pensando nisso, acho que dá pra fazer uma diferença entre o plano único frontal como performance preparada para a câmera, que aposta na repetição diferida do dispositivo – caso Fundo de Quintal, caso Sucrilho Boladão -, e um outro tipo, que são essas fatias milagrosas de cena retiradas de contexto, e que não têm continuidade. Uma espécie de raio polissêmico que desestabiliza tudo de uma vez só. É uma vez e acabou. O raio que não cai duas vezes no mesmo lugar. Estava revendo ontem um que foi nomeado como “Fada do deboche debochando da mini-pastora”, e que tem a ver com essa coisa que Juliano falou sobre a tomada. Esse é um caso muito interessante de descentramento do olhar, de subversão radical do que importa num plano. A câmera inicialmente parece interessada em acompanhar o canto gospel de uma menina na rua, rodeada de gente – persegue a cantora, se movimenta quando ela se movimenta. Só que em segundo plano há uma outra menina, com o cachorro na mão, que destoa inteiramente dos outros espectadores ao redor. E racha o plano por dentro porque tudo nela é recusa à cena. É uma inversão de valores radical: até no título que alguém deu, o que importa no filme não é a performance, mas justamente o secundário. Quem postou chamou isso de “deboche” – e foi por isso que o filme ficou conhecido -, mas talvez o mais interessante seja que o plano inteiro é uma tensão irresolvida, uma multiplicação de vetores de intensidade e sentido operando ao mesmo tempo. O canto é um embate entre a voz profissional e a coriza; o olhar da cantora parece sempre mais cansado do que a cena exige. Ao mesmo tempo e sem separação, a fada instaura um mundo próprio, suga o olhar para a periferia do plano.

Embate de regimes, regimes em embate

Álvaro: A fada do deboche se tornou uma espécie de paradigma dessas tomadas do plano (ou da cena) por dentro. Maravilhosa, com o magnetismo ativado por sua postura corporal, em especial do rosto. Ela parece criar um campo gravitacional, atraindo para ela os olhares. Faz lembrar desde o MC Beijinho, que toma de assalto uma sequência sensacionalista de um programa policial de meio-dia com seu canto insistente, transformando performaticamente uma cena de humilhação em autopromoção de sua música, que naquele ano seria uma das mais tocadas do carnaval da Bahia, até uma travesti que desfila emergindo do fundo de outro take jornalístico, transformando um plano insosso de TV em sua passarela. O corpo e seu movimento atraindo as linhas de força do plano, mudando de dentro sua intenção. Acho que há ainda outra importante figura já bem mapeada e teorizada pelo cinema que emerge como nunca nesse momento: o rosto. Não apenas em sua aparição, por si só um poder que se impõe com facilidade, mas a partir de um gesto especialmente poderoso: o olhar para a câmera. Acho essa característica particularmente preciosa para pensarmos o humor nesses vídeos. Ao invés do riso que sanciona, como bem observou Henri Bergson, muito do humor dos vídeos da internet se dá a partir de uma identificação pelo olhar, um rir de si mesmo e com as/os suas/seus, um riso, portanto, compartilhado, cúmplice, um riso que não pune, mas relaxa e permite, digamos. Tudo isso é bem presente no humor de Leona Vingativa, por exemplo.

Juliano: Queria voltar no filme do Beijinho porque acho ele muito rico. Para mim é um marco da última década. Porque intervém dentro de um dos subgêneros que está dentro de outro: os depoimentos dos homens e mulheres que são presos pela polícia, feitos por programas sensacionalistas. Que está dentro do grupo dos materiais de momentos veiculados antes na TV e que viralizam depois. Mas o Beijinho é para mim uma das grandes performances do nosso tempo, porque é o embate entre gêneros. O golpe do Beijinho revela o parentesco entre o show de calouros e o programa de polícia. O Beijinho transforma o gênero do vídeo de “reificação do bandido” em um número musical. Porque ele não topa as premissas da cena. Ao invés de falar, canta. E muda tudo. E não canta qualquer coisa: canta “me libera, nega”. Ele está sendo preso. Isso é muito forte, isso é o Brasil inteiro, são 500 anos ali, resumidos. É a música negra resumida. No sentido de que é o testemunho da violência genocida constante e, ao mesmo tempo, um vislumbre de um mundo novo, outro, alegre e transtornado. Sinto que está tudo ali resumido. E ele, de mãos algemadas, na mala da viatura, torceu o poder. A força do filme, um dos marcos da performance brasileira do nosso tempo, é a tensão irresolvida de que Victor fala. Ali é um embate entre muitas forças antagônicas ao mesmo tempo. E ainda tem tudo o que aconteceu depois. A viralização, o clipe, a derrocada, enfim. É um episódio-chave, acho, historicamente.

Álvaro: Sim, é um divisor de águas. E é especialmente curioso porque ele diz de dinâmicas do campo que estão relacionadas não com a posse da câmera, mas com essa tomada por dentro e com a possibilidade de recortar, ressignificar e redistribuir conteúdos produzidos pela norma. E essa dinâmica de apropriação, edição e distribuição, me parece, é de algum modo parte da cena. Quando um corpo apresenta, dentro de uma encenação na qual ele foi posto à sua revelia, uma outra possibilidade, ele faz um convite inesperado, surpreendente, a quem assiste. Outra cena nesses moldes é a da prisão de Leona Vingativa por furto. Apesar de contar com a moldura da arte, pois é apresentada já na reportagem como performer, ela leva sua aparição a lugares inimagináveis. Basta citar que ela canta Bad Romance (Lady Gaga) em embromation, enquanto joga por cima do seu corpo as próprias roupas que havia há pouco furtado. Cause I’m a free bitch, baby, como diz a letra. Se é espetáculo o que querem, tomem espetáculo, mas em outra chave. Depois, ela ainda divulga fotos sensuais em que posa diante de coletes da polícia civil e diz que tudo não passou de uma estratégia de marketing. Toma para si, enfim, as armas do sistema. Ao contrário do que poderia acontecer, ou seja, sua desmoralização pública, o resultado faz parecer que a delegacia não passa de um cenário para a performance da artista. Aquele lugar já dado da reportagem, superficial e cristalizador, essa arapuca bizarra que conhecemos bem, enfim, é que sai amarelada, exposta e arruinada.

Victor: Sobre rir de si mesmo e convite, acho que a linhagem do plano único opera aqui também. Outro dia recebi um no zap que era de uma turma de trabalhadores que capinou o lote errado. São poucos segundos, filmados em selfie por um deles, em que o rapaz expõe o próprio vacilo (eles vão ter que capinar tudo de novo). É uma espécie de vingança formal em relação às “videocassetadas”, às “pegadinhas” ou a outros “flagras”, cuja moral televisiva estava assentada na distância entre quem filma e quem vacila. Aqui, é um humor estoico, que faz da própria desgraça motivo de riso – e que demanda contato. É muito impressionante mesmo esse momento que estamos vivendo, em que alguém pode simplesmente mandar um recado filmado, de qualquer lugar do mundo, para qualquer um em qualquer outro lugar. Outro que é impressionante nesse sentido é o do gari que acha uma ponta no meio-fio e manda um recado para todos os maconheiros. São milhares assim. Talvez seja um gênero esse, do filme-carta, filme-bilhete, filme-telegrama. Isso foi imaginado lá atrás, por Vertov, Solanas/Getino, García Espinosa, mas ainda não havia as condições. A possibilidade de que um trabalhador pudesse se dirigir a qualquer outro por meio de um filme. Vertov falava de “vínculos visuais”. E todos esses cineastas-teóricos enfatizaram a convicção de que, desse gesto, não está desterrada a alegria.

Montagem como hipersociabilidade

Álvaro: Isso é que é lindo do cinema, cara. Sua simplicidade e sofisticação tão ali expostas. Quando li isso do Vertov, fiquei maravilhado de ver como, desde aquele momento, do comecinho, esse pessoal soube imaginar tão bem essas potências. Fico viajando na alegria que teriam ao ver tanta gente filmando e montando e sendo personagens de si mesmos e de todo mundo. Acho que agora, nessa imensa teia que começamos a tecer, todo mundo junto, só nos falta lembrar do ensinamento do tio Ben ao Homem-Aranha: “com grandes poderes vêm grandes responsabilidades”. É preciso que essa nova geração, principalmente, se aposse também de outras ferramentas que estão cada vez mais em desuso, como a introspecção, a atenção focada em conteúdos mais longos e densos, na literatura, enfim. São muitos os saberes e as tecnologias, e o vídeo tem essa potencialidade de juntar muitas delas.

Juliano: Fiquei pensando em como, de certa forma, uma certa utopia vertoviana aconteceu, de um jeito que ele talvez não suspeitaria. No sentido do paralelo que funda uma ideia de sociedade que compara a montagem com o processo social. Um certo “comunismo” das imagens, como Rancière chegou a dizer num livro. Nessa produção, falando aqui de Brasil, os processos de montagem, remix, dublagem, retrabalho são essenciais. E intensamente comunitários. Porque em cinema, a montagem trabalha no já feito, em reprocessar modificado o que já existe. É impossível ser um trabalho que se faz só ou individualmente. Vocês, nesses anos, me mostraram alguns grandes artistas dessa linhagem. Pensei que podíamos passar um pouco por alguns nomes desse cinema de montagem de invenção, que não chega às salas de cinema. Digam aí.

Victor: Alguns desses materiais continuam um gesto muito forte na história do cinema, que é a remontagem a partir de arquivos. Isso estava lá no trabalho da Esfir Shub, montadora que influenciou Vertov e Eisenstein. Um dos primeiros trabalhos dela era remontar filmes estrangeiros, transformando o sentido original para uma audiência soviética. Depois ela seria considerada a primeira pessoa a dirigir um filme de compilação, com A Queda da Dinastia Romanov (1927), todo feito a partir de arquivos, muitos deles pré-revolucionários, alguns que eram considerados perdidos e ela recuperou para o filme. De certa maneira, esse gesto contemporâneo continua essa tradição do desvio, da desconstrução, da ressignificação de materiais pré-existentes. E há gestos muito diferentes nesse sentido. Penso em um filme que já citei aqui, “O verdadeiro motivo do programa do Jô ter acabado”, assinado por Rarirama. Ali é um gesto minimalista, de enxugamento radical de um único arquivo – um episódio televisivo do Programa do Jô – que encontra novos e múltiplos sentidos a partir das entranhas do material original. Repetições, relações novas entre imagens, trabalho notável de ritmo. E não apenas de humor. Do meio pra frente vira uma espécie de filme de horror. Perto disso há montadores/remixadores que trabalham a partir de um acervo infinito de imagens, e que criam colagens disruptivas. Roge, por exemplo, que fez “Neymar é encontrado morto apos tentar chupar seu próprio pau” ou “A musica mas triste que eu vi doo Linkin Park”. A colagem trabalha aqui no sentido da multiplicação rumo ao nonsense, com materiais extremamente diversos que vão se sobrepondo e criando um mundo próprio. Os arquivos vão desde fragmentos de desenho animado até outros filmes amadores que circularam na internet.

Álvaro: Outro aspecto interessante que surge a partir da variedade de aplicativos de montagem disponíveis são os deslocamentos mínimos que ressignificam infinitamente certos materiais, numa ação que é adotada pela comunidade como um pré-moldado em vídeo. É o caso de virais como o vídeo do garoto russo numa boate, o Dimitri, ou a cena em que Hitler dá um esporro em seus comandados, do filme A Queda: As Últimas Horas de Hitler (Oliver Hirschbiegel, 2004), situações que são ressignificadas apenas pela junção cena + legenda, servindo aos mais diversos fins, da política à publicidade, e transformando-se em memes, essa partícula que é reproduzida e incorporada à comunicação comum. Mas também o caso de pequenos efeitos de montagem, como a câmera lenta ou a inversão, que produziram pequenas pérolas que lembram muito, como que recuperam, certo deslumbre do primeiro cinema. Há um vídeo em que um grupo de estudantes pula uma grade, rodado de trás pra frente com um beat clownesco de fundo, que é de uma beleza e simplicidade incríveis, realmente hipnótico. Me arrepia sempre que vejo a leveza daqueles corpos que parecem flutuar. Ou outro em que dois garotinhos saem na porrada, fato tão comum na infância que ganha contornos épicos com o uso da música e da câmera lenta, que faz que suas expressões remetam aos bebês das pinturas medievais, homúnculos cheios de dor e pesar em suas faces. O tratamento permite que vejamos essa fase da vida com uma crueza tão estranha… Como se o registro ganhasse uma realidade que só esse artificialismo poderia dar, nos jogando de volta naquelas pequenas-grandes angústias infantis, em sua violência física sempre à espreita.

Juliano: Há também, em outros, um trabalho da literariedade em curto circuito, montagem de falas palavra por palavra, dublagem… Penso no Kaique Brito, por exemplo, e seus trabalhos com as falas. Aquilo é reprocessamento da memória política, é muito forte. Na dublagem, a Alcione Alves, do Teile e Zaga, que virou até propaganda de banco, fez de si um paradigma. A dublagem é um processo queer, de certa forma, né? Não é por acaso o corpo da pessoa que dança no Teile e Zaga. É um devir queer e da rua. O TikTok já é uma plataforma que tem isso como premissa, né? O retrabalho. O dub e o hip-hop, nos anos 70 e 80, eram muito mais do que música, eles eram um projeto de circulação estética comunitária, via reprocessamento, alteração, sample, citação: um circuito de impropriedade. Acho que esse legado até hoje não é suficientemente pensado. Que é uma volta a uma cultura comunitária radical, sem centro nem autor, onde a questão é o ritual coletivo de troca, prática, reprocessamento. É uma roda, como método. Cinema de roda.

Victor: Isso que você falou da tradição do hip hop é muito bom, porque de certa maneira o sample – que era um procedimento musical – hoje se tornou também visual. Na história da pintura isso já estava presente ao menos desde as assemblages de Braque na virada do século, depois foi dar na Pop Art e em muitas outras coisas. Mas agora vivemos um momento em que essas táticas visuais e sonoras se juntaram e é possível trabalhar com arquivos audiovisuais como um produtor musical de rap ou funk ou pisadinha trabalha com os materiais sonoros, ou como os pintores trabalhavam colando um pedaço de jornal na tela. Muitas vezes, um pequeno fragmento audiovisual surge de qualquer lugar e já logo se multiplica exponencialmente em uma miríade fascinante de remontagens. Um dos últimos fenômenos que me lembro foram aqueles segundos em que a Cardi B se espanta com a realidade do coronavírus. Aquilo virou canção no Brasil, virou filme nonsense, virou uma porção de coisas que fazem vibrar essa comunidade da alteração que Juliano mencionou.

Álvaro: Eu fico pirando muito nesse imaginário que estamos construindo, saca? Em como esse ecossistema que é tão recente vai reverberar no que a gente verá daqui pra frente. É uma besteira, mas até hoje desconfio, por exemplo, que a mesma pessoa do canal Rarirama está por trás daquele quadro do Fantástico, “Isso a Globo não mostra”. O que importa é que, independentemente disso, o que tem surgido de forma amadora está se infiltrando em tudo que é canto, já faz parte de nossas vidas, de nosso cotidiano. Enquanto eu pesquisava um link no Facebook para colocar aqui, apareceu um aviso dizendo que o Jonas Mekas tinha adicionado um evento que poderia ser do meu interesse. É isso, agora o Jonas Mekas está ali do lado do/a moleque/a que cria seu canal do YouTube e começa seu freestyle videográfico, com toda a história do cinema e tudo o mais que está sendo filmado agora como material bruto.

Juliano: Acho que o Mekas é um dos que sonhou isso tudo antes, com certeza. Não brotou à toa, não.

Onde estão as interseções?

Victor: Ao mesmo tempo em que esse ambiente foi sonhado como utopia lá atrás, sinto que há algumas reações contemporâneas, no campo do cinema “tradicional” ou “profissional”, a esse novo ambiente. Um retorno. É tudo muito tímido, a defasagem é imensa, mas sinto que cineastas “profissionais” no Brasil têm incorporado algo desses materiais em suas criações. Penso em um filme como Mundo Incrível Remix (2014), do Gabriel Martins, que certamente é irrigado por esses procedimentos de remontagem que elencamos aqui. Ou Demônia – Melodrama em Três Atos (Fernanda Chicolet, Cainan Baladez, 2016), que também parece ser influenciado por algumas dessas artistas. No campo do cinema militante, os filmes de Aiano Bemfica e Pedro Maia de Brito com o Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB) estão atentos a isso – Na Missão, com Kadu (2016), de certa maneira, é um filme construído para abrigar um desses filmes -, os filmes de Dácia Ibiapina são frequentemente atravessados por colagens desses materiais anônimos. Penso também em Lincoln Péricles, que talvez seja o cineasta que mais tem pensado sobre as práticas de expropriação de imagens no Brasil.

Álvaro: Isso me faz lembrar de algo que li recentemente em um livrinho publicado em 1979, “O cinema, arte e indústria”, pelo espanhol Carlos Barbáchano: “Não há que esquecer, por último, a influência que estilística que se estabeleceu entre ambos os meios [cinema e TV]. Muitos dos avanços logrados pelo cinema quanto à estrutura não linear, mistura de realidade e ficção, ou de documento e estilização, etc., puderam também impor-se – além da já marcada influência do romance moderno – graças ao fato de a TV, pela heterogeneidade e fragmentação com que nela se sucedem publicidade, películas, concertos, transmissões diretas, discursos e notícias, ter acostumado o espectador a certas rupturas de distanciação que há vinte anos não aceitaria”. É inevitável pensarmos nesse novo momento, em que a videografia do ambiente da internet é que começa a interrogar o cinema e a TV. Indo por aí, a Cahiers du Cinéma dedicou uma capa em 2016 a essa nova produção, mas parece que ainda há muito trabalho a ser feito. Talvez seja cedo demais para previsões, mas fiquei curioso pra saber quais vocês acham que serão as maiores influências desse momento na produção institucionalizada, pra além do que já temos visto.

Juliano Gomes: O processo de diálogo cultural tem sido extremamente lento. Temos que convir que os “retornos”, isto é, uma porosidade dos setores mais institucionalizados do cinema, são muito poucos ainda. Temos smartphones há dez anos. YouTube há quinze. Já temos mais de uma década nesse campo no Brasil. Acho que há um enorme medo dos nossos colegas, e, ao mesmo tempo, enormes barreiras institucionais. São dois problemas que se juntam e separam. A institucionalidade parece que nunca está preparada para a arte nova quando ela chega, é sempre um parto de vinte, trinta, quarenta anos, que chega quando ela está “fria”. É óbvio que isso acontecerá com essa produção, e o hipster dirá: “bom mesmo eram os virais de 2012…”, a coisa voltará na forma de fetiche, que é também um aprisionamento. Mas acho que a natureza aqui dessa nossa conversa é a urgência de que o “nosso campo” acorde. Porque há enormes coisas para aprender aqui, em matéria de modos, estéticas, textos, distribuição, circulação comunitária, sofisticação moral e ética, enfim. Porque com o legado estético, nós podemos desenhar muitas linhagens com ele, teatro de revista, chanchada, toda essa tendência da atração, da sucessão de quadros, e não uma linha longa geral, mas a sucessão de variedades. E os modos de distribuição, produção, porosidade de classe, tudo isso é valioso demais para não observarmos, porque fica a cantilena de que não há soluções, não há saídas, e as tecnologias comunitárias estão todas na nossa cara. Só que isso obriga o nosso campo a se mexer, em suas premissas mais básicas. Considerar esses filmes como “filmes” é, para maioria dos meus colegas, da produção, realização, instituições, perigosíssimo – porque eles devem ter medo de perder tudo em que sempre acreditaram em relação ao que constituía um “filme”. Mexe em tudo: ineditismo dos festivais, CPB, autoria, direitos de imagem, direitos autorais. É uma revolução real, é revirar as imagens como conhecemos. Só que tá aí, se esfregando na cara do nosso dia-a-dia. Mas não te respondi, Álvaro, porque na verdade, não sei se entendi. Você está falando do futuro ou do passado?

Álvaro: Acho que o que você aponta são fatores superimportantes, já que a estética hegemônica é sustentada por uma ideologia que é a do modelo de negócio, porém plasmada em ideais técnicos, materiais e de produção. O “padrão Globo de qualidade” nada mais é que a sustentação de uma diferenciação técnica na qual se apoia seu poder. Então essas mudanças de modos que você enumera acima podem interferir nisso tudo, liberando a produção da limpidez sonora e imagética reinantes, por exemplo. Mas me refiro ao futuro das formas, principalmente, que tem a ver com o que o Barbáchano diz. Uma expansão que a mim me parece interessante, por exemplo, parece estar acontecendo no conceito de cena. A interatividade faz que ela se derrame para fora da diegese, do espaço interno da tela, para o público, começando a completar-se, em alguns casos, apenas enquanto uma continuação entre o que se vê e o espaço de quem assiste, que de diversos modos é convocado para dentro, geralmente com a quebra da quarta parede. Embora esse recurso já existisse, sendo até bem frequente em comédias, ele costumava funcionar ressaltando a artificialidade da obra, como se dissesse: “olhem, isso não passa de um filme, e daqui sabemos que vocês estão aí”. Muito do que surge na internet, porém, já parte dessa premissa, ou seja, quase não há mais a tentativa de criar a ilusão de um mundo autônomo à parte. Então, nesse novo modo, quando se olha, não é mais apenas um personagem que olha desmontando o artifício. Frequentemente é uma figura híbrida, performática, entre persona e personagem, que busca cumplicidade ou a continuação da cena. Pra mim isso aparece desde os primeiros vídeos de Leona, em 2009, mas também em tiktokers como o Mário Júnior (aquele do “Rói… Letícia, né?”), que filma diálogos sem o contraplano para que seguidoras/es completem como bem quiserem, abrindo o resultado da cena para caminhos não programados. Uma cena sempre aberta, que só se completa como diálogo e interação. Algo que pensávamos que fosse acontecer a partir dos games, ganha assim um funcionamento ainda mais simples e imprevisível.

Um fundo brasileiro

Victor: No campo da comédia, é notável como esses filmes “amadores” estão a quilômetros de distância do rame-rame da televisão ou do cinema da Globo Filmes ou da Netflix ou das parcas tentativas de comédia independente brasileira. Só não vê quem não quer. São eles os verdadeiros herdeiros dessa imensa fonte de invenção a que se deu o nome de chanchada, e não os diretores de comédias globais ou os novos ricos da Netflix, que parecem estagnados em algum lugar entre o século XIX e a teledramaturgia “de qualidade” dos anos 1980. Toda a força contra-hegemônica da chanchada, da paródia à autorreflexividade, da elasticidade dos atores à encarnação da precariedade, da perversão do modelo colonial à aposta no mambembe como vetor criativo, sobrevive e continua em Rony Oliveira, Negão da BL, Quê que pega Zé, Leona Vingativa. Quando a televisão ou o cinema hegemônico se apropriam dessas forças selvagens, parece que é sempre preciso fazer passar os materiais por um filtro envernizado, por um padrão de qualidade ainda baseado no “valor de produção”. Há um imenso medo de que essa barragem de contenção se rompa. Que o Negão da BL possa ser citado em um texto sobre cinema ou convidado para dividir uma mesa de debate com algum cineasta ainda soa como um absurdo. Que um filme como “O Redemoinho” possa integrar um cânone de filmes brasileiros da última década ainda soa como polêmica. E não há nada menos polemista do que olhar para um campo e reconhecer suas forças. Isso é tarefa básica nossa, e estamos chegando muito atrasados no rolê.

Juliano Gomes: A comicidade tem uma relação vital com a rua. Todo trabalhador do cômico quando perde a porta aberta para a rua, tende a se ferrar. E o Brasil é um lugar de riqueza social muito intensa, de muita energia que brota da convivência. Porque, não sei quanto a vocês, mas esse cinema que estamos falando, para mim, ele é um cinema de quem não tem grana nem herança. O cinema de ponta dentro desse cinema desinstitucionalizado me parece ter essa constante, uma relação com uma energia social que não é da classe A. E é por isso também que demanda tanto, que revejamos tudo, desde uma ideia do que é inteligência ou inventividade. Por exemplo, a ideia básica do humor de duplo sentido. Esses jogos sobre essa defasagem polissêmica são um ritual social comum no Brasil que já observei de Porto Alegre a Manaus. Pessoas que não são brancas, ricas e universitárias, tendem ao que se chama aqui no Rio de “esperteza”, por vários dados contingenciais e históricos. Aqui se diz “fica esperto”. Ficar esperto é um estado de intensa sensibilidade, para desde você não ser preso, mas também pro teu parça não te pregar uma peça. Lembro que meu vô tinha isso, ele era negro, do interior da Bahia e tal. Passava trote pras pessoas religiosamente pelo telefone, tava sempre jogando com os sentidos. Porque eu tô dando essa volta toda: pra dizer que os jogos da vida social, em especial os cômicos, trabalham sobre a defasagem de sentidos, polissemia, isso tudo é cotidiano para o brasileiro. E é curioso que a produção institucional morra de medo disso, de abrir essa porta da rua. Aí eu fico perplexo quando vejo esses filmes da Netflix, algoritmizados desde o roteiro, baseados em rapidez, controle e redundância. A algoritmia empurra tudo pro majoritário, principalmente a cognição. É o movimento ético ao contrário do “fica esperto”. É meio “fica lesado, deprimido e online”. O que vocês acham? Sinto que essa sensibilidade pro raciocínio rápido, pra adaptação instantânea – o que podemos sintetizar simplesmente como inteligência – é um dado de classe do Brasil. Porque é também condição de sobrevivência. Rico demora horas pra entender piada. Almoço de domingo no subúrbio, antes de você sentar já te zoaram. Isso tem a ver com nossa história. Tem coisa que é pro patrão ser zoado e não entender. Isso é riqueza sem fim. Enfim, digam aí.

Álvaro: Tem uma inteligência nessa nova produção que é certamente fruto da malandragem popular que o cinemão, a Netflix e a TV só podem absorver se cristalizados, assegurados pelo algoritmo, como cê diz. E isso é o contrário desse jogo de cintura vivo das ruas, né. Esse modo de se comunicar sempre jogando com os sentidos, que te remonta ao seu avô, é muito característico da Bahia, principalmente de Salvador, uma cidade tão negra e desigual. A coisa está muito nas entrelinhas, escapando, sempre solicitando que se seja iniciado/a para que se possa entender sua profundidade, mesmo quando parece escancarada. Por isso, para sacar muito desse humor que surge da internet realizado por pessoas de camadas mais precarizadas, é preciso estar em conexão com essa energia sempre movediça das ruas. Há nomes incríveis surgidos no humor baiano nesses últimos anos, como Dum Ice, Christian Bell, Leozito Rocha, a mesma galera do Sucrilho Boladão, toda uma turma que começou no YouTube, no canal 10ocupados, e que hoje circula bastante no Instagram. Ao mesmo tempo que são parte de um mesmo grupo, eles exploram caminhos bem distintos e interessantes. Dum Ice, por exemplo, criou uma família de personagens a partir do uso de apps que modificam o rosto. Um deles, chamado Zói Pucu, virou um fenômeno no ano passado, dando origem a letras de pagode e matérias na grande imprensa. É um personagem que joga justamente com o duplo sentido, um rapaz com inconfessáveis desejos homoeróticos que usa dos artifícios mais descarados pra tirar uma casquinha dos amigos. Quando é posto na parede quanto a suas intenções, ele se sai com umas tiradas ótimas, joga a culpa na Ambev, diz que estuda “Petróleo e Gás”, que já “pegou em arma” e “botou bazuca pra cuspir”, convoca símbolos de ascensão social e de macheza pinçados pelo duplo sentido, que acabam reforçando, nas entrelinhas, o que ele “tenta” esconder. E, ao mesmo tempo, embora a premissa seja algo batida, tem um frescor, não soa homofóbico nem estereotipado.

Victor: No “Trajetória no subdesenvolvimento” (1973), o Paulo Emílio escreveu sobre a chanchada: “O fenômeno cinematográfico que se desenvolveu no Rio de Janeiro a partir dos anos 1940 é um marco. A produção ininterrupta durante cerca de vinte anos de filmes musicais e de chanchada, ou a combinação de ambos, se processou desvinculada do gosto do ocupante e contrária ao interesse estrangeiro. O público plebeu e juvenil que garantiu o sucesso dessas fitas encontrava nelas, misturados e rejuvenescidos, modelos de espetáculo que possuem parentesco em todo o Ocidente mas que emanam diretamente de um fundo brasileiro constituído e tenaz em sua permanência. A esses valores relativamente estáveis os filmes acrescentavam a contribuição das invenções cariocas efêmeras em matéria de anedota, maneira de dizer, julgar e de se comportar, fluxo contínuo que encontrou na chanchada uma possibilidade de cristalização mais completa do que anteriormente na caricatura ou no teatro de variedades. Quase desnecessário acrescentar que essas obras, com passagens rigorosamente antológicas, traziam, como seu público, a marca do mais cruel subdesenvolvimento; contudo o acordo que se estabelecia entre elas e o espectador era um fato cultural incomparavelmente mais vivo do que o produzido até então pelo contato entre o brasileiro e o produto cultural norte-americano”. Sinto que algo nesse sentido está se processando agora. Enquanto esses filmes que estamos tentando elencar continuam algo que “emana diretamente de um fundo brasileiro”, ao mesmo tempo em que são extremamente porosos, abertos às invenções plebeias da rua – como disseram vocês -, a televisão ou os serviços de streaming que estão sendo hoje vistos como a salvação da lavoura por parte significativa dos cineastas brasileiros contemporâneos são uma espécie de Vera Cruz 2.0. Padrão de qualidade, algoritmo, sala de roteiristas, valor de produção, modelo importado. Não tenho dúvida que um redirecionamento do olhar é urgente. E isso não é um elogio do underground, porque alguns desses filmes são tão vistos quanto as chanchadas da Atlântida foram em sua época. A relação entre quem faz e quem vê esses filmes é também “um fato cultural incomparavelmente mais vivo” do que o que se estabelece entre a pequena burguesia brasileira e a Netflix.

Por uma cinemateca viral

Juliano: Falando em Paulo Emílio, me parece que seria urgente um trabalho de formação de acervo e preservação desses materiais, desse cinema popular do qual estamos falando. Uma cinemateca mesmo. Tem o exemplo do Museu de Memes. Mas penso numa coisa maior, mais institucionalizada. Com uma comissão que escolha a cada ano um conjunto de materiais para o futuro. Porque já falamos aqui da efemeridade desse cinema. Você vê e no dia seguinte sumiu o link. Tudo o que estamos falando aqui pode sumir amanhã. Me parece que seria um trabalho cultural de valor inestimável, mas como temos falado, a ignorância institucional a esses materiais é grande. E, neste contexto, onde o cinema institucional brasileiro está na porta da destruição do pouco que sobreviveu a outros ataques e descasos, me parece improvável que essa ideia, nesta década de 20, se torne uma ação concreta. Esses materiais que estamos abordando aqui são talvez os materiais que mais intensamente darão uma ideia do que é “a vida de um país em determinada época”. Sinto que se tivesse que escolher algo pra mostrar pro extraterrestre do futuro pra ele dar uma sacada na nossa espécie, faria uma playlist e o bicho ia sacar rapidinho. O que vocês acham?

Álvaro: Com certeza. Acho esse momento muito bonito, de verdade. Como se tivéssemos chegado, como grupo, num lugar de expressão muito mais democrático e selvagem ao mesmo tempo, mesmo que as garras do controle (do capital ou qual seja) estejam sempre no meio de nós. Afinal, não há lugares totalmente livres, né, talvez apenas as Zonas Autônomas Temporárias de que fala Hakim Bey. É um conceito ao qual ele chega após estudar as sociedades piratas do século XVIII, e a pirataria está no coração desse mo(vi)mento, desse fluxo contínuo das imagens na rede, que dá uma banana para os direitos autorais. Acho que esse ambiente permite que muito mais gente crie e participe desses pequenos momentos de autonomia. Todo mundo está aprendendo e ensinando ao mesmo tempo. Os formatos que surgem não são propriedade, tudo é remixado, alterado, pode ser implodido e reconstruído a todo instante. Se pensarmos que o TikTok, por exemplo, é a rede do momento entre jovens e adolescentes, que tem uma geração se formando aí também… Como disse antes, acho que chegaremos a um ponto em que todo mundo terá uma compreensão média bem aprofundada do cinema, de suas ferramentas, potências e enganações. E é muito massa que isso esteja sendo construído principalmente pela prática ainda anárquica das redes. Pelo que já podemos observar, há muito a aprender com seus modos de produção mais despojados, por exemplo. E sem dúvida é importante que se preserve os objetos, que algo sobreviva à enxurrada incessante de uploads. Esses arquivos são pequenos, não ocupam quase espaço no HD. Eu acho que, mais do que favoritar dentro dos aplicativos seus preferidos, cada pessoa deveria começar a baixar e ir salvando numa pastinha o que gosta, pra que um dia isso possa ser recuperado. É uma proposta, uma forma coletiva de tentarmos guardar algo desse momento. Que todo mundo comece a curar e colecionar esse cinema tão mínimo, múltiplo e comum.

Victor: Ao mesmo tempo em que combater essa efemeridade contemporânea é crucial, o nosso campo tem muito a aprender com esse novo ambiente, em toda a sua complexidade. Essa “terra sem lei” pode ser um modelo – mais aberto, menos canônico, mais poroso – para repensar o cinema e as artes fílmicas em geral. Nosso papel talvez seja não o de transferir lógicas cristalizadas na história da crítica de cinema – autorismo, hierarquias, rankings – para esse outro campo, e sim o contrário: é justamente essa feição anônima e multitudinária desse mundo que pode nos impelir a rever o nosso trabalho com as imagens. O que esse mundo nos ensina é a praticar uma radical abertura aos materiais, aos trabalhos, que não recusa a feitura de apostas gerais nem a criação de parentescos entre as obras, mas tampouco busca abarcar esse mundo a partir das lógicas hierárquicas que já conhecemos. O pressuposto desse mundo é que a centelha da invenção pode vir de qualquer lugar, a qualquer hora. A utopia do Langlois de “preservar tudo” já não é mais possível há muito tempo, mas o que esses materiais nos ensinam é que estar de antenas abertas para a invenção é uma tarefa cotidiana, que não se separa da vida.

Juliano: Será que a gente poderia chamar essas obras de cinema público? Em oposição a um cinema privado? Porque acho que, em geral, são trabalhos que não param de nos dizer isso, de dizer, pela prática incontida, que a riqueza social, a riqueza de invenção comunitária, de interação entre as pessoas, é infinita, e ela meio que pega os meios e as ferramentas e dá seu jeito de fazer daquilo algo da sua maneira. E todo o cinema, que virou tecnicamente inatingível, pesado, padrão Cinema de Qualidade, até ele foi desbancado pela rua. Acho que esse cinema não para de dizer isso. Mandamento primeiro: nunca esquecer a rua. Mandamento segundo: aprender sempre com a rua, praticando com ela. O que chamo de rua não é só o espaço, mas a prática aberta, mexida, onde se pode entrar, participar, retrabalhar. A história da face privada do que chamamos cinema deixa uma herança pesada e difícil de se desvencilhar. Por exemplo, será que depois de publicarmos os próximos textos sobre alguns desses filmes aqui na Cinética, nós mudaremos os cabeçalhos dos filmes que são considerados, institucionalmente, cinema, onde se reserva um espaço entre parênteses para quem dirige?

Álvaro: Cara, não sei… Mas isso que cê diz me lembrou uns trechos de um ensaio visionário de Vilém Flusser, do livro “Gestos”, originalmente publicado no começo da década de 1990, se não me engano. Ele diz do vídeo que, quando popularizado, sua utilização permitiria novas possibilidades de encenações para as vidas, à medida em que as pessoas começassem a brincar de forma amadora com o formato (naquele momento, o vídeo fazia contraposição ao “filme”, que era o formato artístico profissional), pois “as pessoas que participam da cena com o manipulador não são atores (como o são no caso do filme), mas parceiros seus. São simultaneamente memorizadores e memorizados. Estão em diálogo com o vídeo. O vídeo, ao contrário do filme, o qual é discursivo, é memória dialógica da cena”. E ele segue falando que, por ser um instrumento recente (a popularização do gesto em vídeo, no caso), o vídeo permitiria a manifestação de novas formas de existência latentes, pois estaria ainda menos determinado pelo sistema, ou seja, por essa herança que você diz e pelo status quo que ela costuma promover. A popularização, a chegada da câmera às mãos comuns, de todo mundo, abre o cinema a grupos e a singularidades antes sem espaço de expressão. Queria voltar à comédia, que me parece um bom exemplo. Se pegarmos a história do humor no cinema, é raro encontrar comediantes mulheres, e me parece evidente que, como acontece em outras áreas, isso é resultado de uma cultura, a do machismo, no caso. Bastaram poucos anos de abertura, porém, para o aparecimento de mulheres muito interessantes no humor do Brasil nesse ambiente da rede. Olhando só para o Instagram e o TikTok, penso em nomes como Larissa Gloor, Ademara, Tina, que, além de serem cômicas de primeira, se metem por caminhos formais bem interessantes.

Victor: Lembrei agora do poema que o Waly Salomão dedicou ao Carlos Nader, e que dá título ao filme Pan-Cinema Permanente (2008): “Não suba o sapateiro além da sandália / – legisla a máxima latina. / Então que o sapateiro desça até a sola / quando a sola se torna uma tela / Onde se exibe e se cola / a vida do asfalto embaixo / e em volta”. Pensando com vocês, talvez seja mesmo isso uma parte importante do que nos atrai nesse pan-cinema permanente do século XXI: sua aderência à rua. Esse cinema tá na rua, no meio do redemoinho. A rua é pública. E a rua é, hoje, também essa rede virtual que nos conecta de forma avassaladora, como nunca antes. Algumas distinções que poderíamos talvez invocar, como amador versus profissional, ou privado versus público, ou popular versus elitista, ou coletivo versus individual, apesar de tentadoras, não parecem dar conta do fenômeno. Diante dessas imagens, penso no que Hito Steyerl escreveu: “Elas expressam todas as contradições da multidão contemporânea: seu oportunismo, seu narcisismo, seu desejo de autonomia e de criação, sua incapacidade de se concentrar ou se decidir, sua constante prontidão para a transgressão e a simultânea submissão”. A multidão é ao mesmo tempo anônima e aberta às singularidades, ao mesmo tempo atravessada pela norma e fora-da-lei, assim como esse cinema. Talvez o nosso trabalho seja o de se deixar irrigar mais por essas contradições, mergulhar nelas para encontrar relações e criar parentescos entre os trabalhos, no mesmo movimento em que tentamos fazer vibrar para dentro do campo institucional o que esse cinema tem de fora-da-lei.


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