FICA 2014: Instantâneos do vídeo popular e o pathos formal em Quando a Mãe Chora e o Filho Não Vê

março 1, 2015 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Victor Guimarães

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por Victor Guimarães

“O cinema engajado, ao contrário de sua reputação
de cinema sem estilo, é o campo de invenção formal
mais rico, avançado e complexo da história do cinema”.

Nicole Brenez, 2013

“Hoy en día un cine perfecto – técnica y artísticamente logrado –
es casi siempre un cine reaccionario.
(…)
El cine imperfecto no puede olvidar que su objetivo esencial
es el de desaparecer como nueva poética. No se trata más
de sustituir una escuela por otra, un ismo por otro,
una poesía por una antipoesía, sino de que, efectivamente,
lleguen a surgir mil flores distintas.
(…)
El arte no va a desaparecer en la nada.
Va a desaparecer en el todo”.

Julio García Espinosa, 1969

Uma das mais graves lacunas no debate crítico sobre as artes fílmicas no Brasil é a negligência em relação à potência e à variedade das inúmeras iniciativas de realização coletiva a partir da margem que se espalharam pelo país desde os anos 1980 e que compõem esse território difuso que se convencionou chamar (pelo menos inicialmente) de “vídeo popular”. Há inventários de suma importância (como o livro pioneiro de Luís Fernando Santoro, A imagem nas mãos, e a dissertação de Clarisse Alvarenga, Vídeo e experimentação social), que oferecem bons recenseamentos das práticas, formulações conceituais e algumas análises estilísticas, mas a distância entre eles e a crítica de cinema é patente. Acrescente-se a isso a insuficiência das análises existentes – faltam mais trabalhos que recoloquem esses filmes na perspectiva de uma história das formas – e o que se tem é um abismo: de um lado há o Cinema, aquele feito pelos cineastas; de outro, os “vídeos de oficina” ou os “documentários engajados”, aqueles feitos pelos “jovens aprendizes” ou pelos “militantes”. Basta frequentar um festival (os poucos que, volta e meia, incluem alguma dessas obras em sua grade de programação) para testemunhar a mistura de preconceito de classe, esnobismo e estreiteza de olhar que costumam acompanhar a recepção desses filmes entre a cinefilia. Que um filme absolutamente extraordinário como Bicicletas de Nhanderú (Patrícia Ferreira e Ariel Ortega, 2011) seja tão pouco visto e tenha uma fortuna crítica tão pequena entre nós é apenas mais um sintoma desse estado de coisas.

Aos leitores que estiverem se perguntando sobre a necessidade desse preâmbulo “sociológico” – esse adjetivo que parece ter sido completamente riscado de nosso vocabulário crítico –, cabe esclarecer: não quero postular aqui nenhuma sorte de automatismo estético ou político. Que um filme seja realizado coletivamente, por sujeitos à margem dos processos hegemônicos de produção cinematográfica, não nos garante nada em termos de invenção formal ou relevância política (aspectos que mantenho separados aqui apenas por motivos retóricos, uma vez que não há leitura política que possa prescindir de uma análise formal). Por outro lado, é importante que se diga: o automatismo contrário também é falso e perigoso. Que um filme seja feito no contexto de uma oficina, por jovens sem experiência de realização, tampouco é garantia de irrelevância ou inocuidade cinematográfica.

Por sorte, há a evidência dos filmes, que é real e maior do que qualquer esperança ou argumento prévio. Dentre aqueles exibidos na Mostra ABD Cine Goiás, durante a última edição do Festival Internacional de Cinema Ambiental, nenhum foi tão vigoroso e relevante cinematograficamente – politicamente, portanto – quanto Quando a Mãe Chora e o Filho Não Vê, produzido pelo Movimento do Vídeo Popular e dirigido por R.C.R., M.G.M., L.F.R.O., H.J.F.M., T.H.A.P., W.A.S. e J.A.S., filme imperfeito, irregular (me recuso a adicionar um “mas” à frase) e inventor de formas como nenhum outro que se tenha visto ali. Ainda que o processo de sua realização deposite marcas inegáveis nas imagens e sons que vemos (as siglas que assinam a direção nos créditos são apenas uma delas), o pathos engendrado por esse curta-metragem realizado por jovens participantes de uma oficina de vídeo em um centro de internação de adolescentes infratores de Goiânia não é produto de nenhuma informação anterior, mas resultado de um trabalho visual e sonoro cuidadoso e vital.

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Ao som do refrão de “Dia de Visita”, do Realidade Cruel (o mesmo entoado pelo faxineiro e candidato Dildu em uma de suas caminhadas em A Cidade é uma Só?), vemos as primeiras imagens: pernas, braços, pedaços de corpos que colhem cebolinha na horta, lavam os legumes, preparam comida que será entregue aos filhos privados de liberdade. “Ô mãe / Como andam os manos na quebrada? / Como anda o Duda? / Como anda o Flávio?”, diz a letra do rap embalado por uma harmonia sentimental. Seria um início cafona e inofensivo, não fossem esses rostos que o quadro resolveu deixar de fora, não fosse esse relato pragmático que descreve a rotina das visitas e essa resignação que contamina o tom da voz que interrompe a canção abruptamente enquanto uma marmita é preparada com todo o cuidado. A escolha por reservar à comida o centro do quadro será permanente, e o filme acompanhará o percurso da cebolinha que se transformou em almoço, da marmita que se transformou em sacola nas mãos da mulher que caminha pela rua.

“Quando a gente sabe que morreu, a gente sabe que morreu. Agora o difícil é você estar lá na sua casa, sabendo que seu filho está trancado e não pode estar junto com você”, diz a mãe. Essa separação fundamental entre dois espaços radicalmente distintos – que o belo título do filme já anunciava – diz desses dois dramas, desses dois mundos apartados, e é traduzida nessa arquitetura formal que decide desenquadrar, operar uma cisão no interior da imagem que obriga a imaginar esses rostos que não são vistos. Em vez do pathos imediato do rosto que sofre, a câmera – que treme, que precisa escapar do ônibus que se aproxima da calçada – prefere enquadrar os objetos, esses que, a princípio, não sentem dor. O que essa escolha produz é um redirecionamento das energias do plano: animada pela música e pela voz, toda a tristeza do mundo está contida não em um olhar, mas em uma marmita de plástico que se aninha entre os pés e atravessa a cidade.

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Os relatos da vida na quebrada e do destino trágico dos filhos se acumulam na banda sonora e se misturam a uma nova canção, enquanto as mulheres se aproximam do presídio e são vistas de longe, em uma imagem desfocada e bela. Quando o arroz e o feijão forem revirados pelos policiais e o sabonete for cortado à faca, toda a energia patêmica que se acumulava no interior das sacolas será dilacerada de uma vez. O golpe é seco e brutal, mas só é sentido com tamanha força porque nosso olhar se acostumou a enxergar ali muito mais do que alimentos ou produtos de higiene.

Ao velho problema que atravessa muitos filmes militantes – o de ser um “momento neutro, transmissor sem potencialidade da popularização de ideias elaboradas em outro lugar”, como escreveu Serge Daney –, Quando a Mãe Chora… responde com a imagem de uma revista feminina em um presídio como nunca se viu antes: as botas do poder aguardam displicentemente, enquanto os pés das mães retiram as sandálias. Arquitetura precisa e sintética, iconografia singular que materializa a hierarquia implacável no contraste entre o primeiro plano e o fundo do quadro. Não há discurso possível ou ideia que possa substituir a potência dessa diferença qualitativa entre as duas regiões da imagem.

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Em um plano alguns segundos adiante, um urubu descansa em cima da guarita alta que se projeta sobre o muro do cárcere. O zoom-out descortina o ambiente e, enquanto o plano se torna mais e mais aberto, o pássaro sai voando para fora do presídio. O risco da metáfora reiterativa – e mórbida – é patente, mas esse movimento de abertura do quadro (e não de aproximação ao animal) é o que faz com que o excesso de significação ceda espaço a uma imagem mais complexa: não é a morte iminente que se insinua ali, mas essa liberdade inscrita no voo de um pássaro cuja carga simbólica em nossa cultura quase nos fez esquecer de que ele também pode voar como qualquer outro. Que esse seja o plano mais aberto do filme não é fortuito, e indica um poderoso trabalho de contraste visual entre o plano detalhe dos pés e esse quadro amplo que permite que o olhar se expanda para além da claustrofobia (mas não tanto, uma vez que o espaço continua a ser o pátio mal cuidado de uma cadeia).

Quando a música silencia, é o som da abertura das portas de ferro que vem preencher o campo sonoro por um instante, antes que a voz de um menino volte a animá-lo com sua narrativa entre a decepção e a revolta. Enquanto soam os relatos fortes e convictos, a câmera esquadrinha o espaço do centro de internação. Na única vez em que há um diálogo entre uma mãe e um adolescente, os contrastes novamente sobressaem (dessa vez, na banda sonora): a alegria inscrita na voz feminina que comenta a sensação da sexta-feira de visita é quase infantil, ao passo que a voz jovem que indaga é grave e madura. Os rapazes falam do futuro, do desejo de sair e trabalhar para comprar um carro, enquanto a imagem do pátio retorna (dessa vez, filmada de trás das grades). Num gesto de montagem sutil, a esperança da liberdade é posta em dúvida pelas sombras quadriculadas que se projetam sobre a parede vermelha.

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Na sequência final, o clássico “Fórmula Mágica da Paz” dos Racionais MCs é sobreposto às imagens da volta para casa, enquanto o quadro procura a liberdade nos corpos jovens que povoam a estação superlotada e busca figurar o pôr do sol pela janela do ônibus. Na precariedade vigorosa dessas imagens, nessa economia visual e sonora que só é banal para aqueles que não se dispõem a ver de perto, encontro uma maneira de ver o mundo com olhos livres, imunes à obsessão pela perfeição técnica e à insipidez do bom gosto. A promessa de uma nova estética (potência formal que só poderia surgir a partir da margem) – questão que fora central nos manifestos dos cineastas do Terceiro Mundo nos anos 1960 e na crítica ao Cinema Novo efetuada por autores como Jean-Claude Bernardet e Ismail Xavier – parece ter, em grande medida, desaparecido de nosso horizonte crítico. Embora seja um pensamento que continue a ensinar muito, não é hora de retomá-lo como ideário de futuro. Enquanto filmes como Quando a Mãe Chora e o Filho Não Vê existirem por aí, a multiplicação real e presente das formas será sempre mais importante do que qualquer programa.

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