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O diabo opera no desespero

De todos os capítulos que costuram Canastra Suja, de Caio Sóh, dois se destacam. Incluem a longa sequência que começa aos 71 minutos de exibição e vai até os 103, quando Pedro (Pedro Nercessian) volta para casa, bagunçado e derrotado, após a tentativa de se enturmar em uma festa de jovens michês e clientes endinheirados.

Onde muitos enxergam sordidez, sensacionalismo, vejo augúrio: Pedro é a imagem do brasileiro contemporâneo. Aquele que perdeu as esperanças, que se deixou levar pela própria ignorância, que não tem representatividade e mergulhou na decadência sem ter conhecido um momento de integridade. Então começa a acreditar na redenção através do abuso, da violência contra si mesmo.

Apela para um intermediário, que no fundo é o próprio diabo. O amigo Tatu (David Junior) lhe oferece uma chance de frequentar a festa privada, reunindo os ricos necessitados do sexo dos pobres. Agostinho de Hipona dizia que o homem é quem legitima as sugestões do demônio. E toda a atividade nefasta de Tatu, na família de Pedro, é ratificada pela fraqueza interior dos envolvidos. Podemos acrescentar que o diabo também opera no desespero. Pedro humilha, é humilhado, enquanto a maldade e o conflito o observam. Ao ver o pagante de bruços, esperando sua ação, brocha miseravelmente. Nada mais patético, nada mais triste do que um corpo que se oferece e outro que refuga.

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Faço esta pequena introdução para o leitor ter ligeira ideia da quantidade de elementos que são trabalhados em Canastra Suja. Cada um dos personagens teria sozinho a autonomia de um longa-metragem. Bulir com eles (com os demônios da imaginação) não deve ter sido fácil para o diretor e roteirista. Se muitos filmes deixam o espectador sofrer pela falta de assunto, em Canastra Suja padecemos ao contrário: faltam tempo, recursos, que deem conta das tantas lebres soltas. Sóh realizou um filme competente, mas com o mesmíssimo material poderia ter escrito uma grande série.

É gratificante, para não dizermos surpreendente, que em pleno século XXI alguém ainda consiga realizar uma observação tão caudalosa, tão rocambolesca da miséria humana. Notem que o cinema brasileiro sempre conseguiu entender o inferno das relações familiares, logo é brincadeira fácil encaixarmos Canastra Suja dentro dessa tradição. Em Família (1970), de Paulo Porto, talvez seja o que mais se aproxima da obra de Sóh. Em Família era para ser uma história de velhinhos fofos. Sobreviveu como uma espécie de instantâneo da classe média na virada dos anos 1960 para 70. Já Canastra Suja poderia ser a história de Batista (Marco Ricca), pai alcoólatra, bode expiatório do mundo, a imagem do homem fracassado. Mas as décadas irão transformá-lo na crônica de uma gente corredia, ambígua e sonsa, que habita um país sem oportunidades.

Sendo esse um texto de vereditos, tenho certeza de que toda a família de Batista torceu e votou em Jair Bolsonaro. E acreditam que o país está infestado de corruptos a serem caçados, apenas porque a vida não lhes deu ainda a oportunidade definidora para também se corromperem. A moral de alguns brasileiros não é uma questão de princípios, mas de impotência e irracionalidade. Sim, estou dizendo que parte dos brasileiros odeia a corrupção porque a inveja. O autor das pichações no muro da casa de Batista, no fundo, fala de si mesmo.

Existe outra zona de conforto, quase preguiça intelectual, que assegura a fruição de Canastra Suja: o universo do filme, por infalíveis sinais, parece diretamente inspirado em alguma história de Nelson Rodrigues. Roncando no éter, o pobre Nelson já não aguenta mais tantas comparações espúrias com sua obra. Fato é que o adjetivo “rodrigueano” daqui a pouco venderá carne moída nos açougues da Vila Maria. Ou margarina em anúncios da Rede Record.

Tretas no subúrbio carioca, patologias ocultas, adúlteras em fúria, sempre existiram na literatura brasileira, antes e depois de Nelson. Leiam meia hora de Marques Rebelo, de Cony, de Machado, até de Carlinhos Oliveira – e depois voltamos a conversar. A verdade é que, além da literatura, o cinema também nunca precisou de Nelson para olhar o Rio de Janeiro ou os lares cariocas com sinistra desconfiança. Onde quero chegar? Se o leitor realmente quiser assistir a Canastra Suja com prazer, observe que Caio Sóh, em certo momento, aponta a figura de Tatu explicitamente como um coringa, o trickster. Tatu nunca se encaixaria no sexo culpado, no fervor proibido que habitava o imaginário de Nelson Rodrigues. É uma figura saída de Plínio Marcos, um Paco de Dois Perdidos Numa Noite Suja. Lembrei de Paco para retornar à comparação com o demônio: no desamparo de Tonho, na confusão espiritual do colega de quarto, Paco instalava seu reino de horror. Tatu gosta dos Batistas da mesma maneira. Como um gato curte brincar com a presa agonizante, que acabou de capturar.

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Emília (Bianca Bin), a filha preferida do pai – e, não por coincidência, namorada de Tatu – surge às vezes como único contraponto justo na relação amigo/família. Cava um pretendente rico, dribla adversidades com pragmatismo, embora alimente um dos poucos aspectos repetitivos da trama: a luta de classes. Pobres servindo de iscas para a sondagem sexual dos bem-nascidos. Ricos tolos e caprichosos, como vilões de sociochanchadas. O amante dentista – Emília é auxiliar no consultório – chega a ser caricato nos rapapés interesseiros. Depende da brava (e gostosa) Emília para humanizá-lo.

Já a mãe (Adriana Esteves) coleciona miríade de recalques e histerias tão grandes que, defrontada com Breuer e Freud, colocaria em xeque a competência dos velhos austríacos. Aqui brilha o talento da veterana atriz, em nudez avassaladora, que constrange e deprime. Esteves veio se desconstruindo – de tesão do Brasil em Meu Bem, Meu Mal (1990) e Renascer (1993), até a vilã estereotipada de Avenida Brasil (2012) – mas em Canastra Suja atinge um novo patamar. O medo em seus olhos, ao ter esquecido a filha autista (Cacá Otoni) amarrada, conduz o espectador à náusea.

Ninguém é perfeito e Caio Sóh volta a escorregar quando, fascinado pela própria criatividade, nos empurra um final inverossímil. Somos capazes de perdoá-lo por isso, assim como perdoamos Alberto Salvá pela conclusão didática do brilhante Um Homem Sem Importância (1971). “Final feliz a gente encontra em filme americano”, a letra da canção de Denoy de Oliveira, que encerra o filme de Salvá, trazia uma espécie de autoproteção. O epílogo de Canastra Suja procura se salvaguardar no escracho, no cinismo absoluto. Acaba sendo um niilismo redundante. Mas a trajetória até ali deixa tantos méritos que a descoberta e valorização do filme, por gerações futuras, será exercício incontornável.


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